08 Fevereiro 2023
"Para dar consistência ao projeto-Brasil importa trabalhar sobre três eixos dialeticamente imbricados: a educação libertadora, a democracia integral e o desenvolvimento socioecológico. Resumidamente, mister se faz desenvolver uma educação libertadora que nos abra para uma democracia integral, capaz de produzir um tipo de desenvolvimento socialmente justo e ecologicamente sustentado", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
“Que Brasil queremos” nunca sai da pauta de nossas discussões, especialmente na bases que sofrem o peso de um tipo de Brasil marcado por imensas desigualdades e sangrado pelo perverso governante de nossa história: Jair Bolsonaro.
Para dar consistência ao projeto-Brasil importa trabalhar sobre três eixos dialeticamente imbricados: a educação libertadora, a democracia integral e o desenvolvimento socioecológico. Resumidamente, mister se faz desenvolver uma educação libertadora que nos abra para uma democracia integral, capaz de produzir um tipo de desenvolvimento socialmente justo e ecologicamente sustentado.
Partimos do pressuposto de que a Terra não tem mais condições de aguentar a depredação produzida pela voracidade produtivista e consumista do ethos do capital. Esta ordem na desordem somente perdura porque se utiliza a força dura e doce para manter as grandes maiorias em estado de penúria crônica. 18% da população mundial consome irresponsavelmente 80% dos recursos não renováveis com nenhum sentido de solidariedade geracional e de respeito ao patrimônio natural de toda a vida.
Com acerto assinalava Celso Furtado: “O desafio que se coloca no umbral do século XXI é nada menos do que mudar o curso da civilização, deslocar o seu eixo da lógica dos meios a serviço da acumulação, num curto horizonte de tempo, para uma lógica dos fins em função do bem-estar social, do exercício da liberdade e da cooperação entre os povos” (Brasil, A construção interrompida, Paz e Terra 1993, p. 76).
O que se aqui se postula é uma mudança no paradigma do desenvolvimento, indispensável para resguardar a natureza, salvar a humanidade e possibilitar um projeto-Brasil alternativo. A Declaração sobre o Direito dos Povos ao Desenvolvimento da ONU de 18 de outubro de 1993 assimilava já esta necessidade ao definir que o desenvolvimento é “um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa o constante melhoramento do bem-estar de toda a população e de cada indivíduo na base de sua participação ativa, livre e significativa e na justa distribuição dos benefícios resultantes dele” (Declaration on the Right to Development, ECOSOC 18.10.1993). Nos acrescentaríamos ainda, no sentido da integralidade, a dimensão psicológica e espiritual.
Portanto, postula-se que a economia, como produção dos bens materiais, é meio para a possibilitar o desenvolvimento cultural, social e espiritual do ser humano. Errônea e com funestas consequências é a visão que entende o ser humano apenas como um ser de necessidades e de desejo de acumulação ilimitada e por isso da economia como crescimento ilimitado, como se ele fosse meramente um animal faminto e não um ser criativo, com fome de beleza, de comunhão e de espiritualidade. O Papa Francisco, na encíclica Laudato Si', chama este pressuposição de “mentira” (n. 106).
Faz-se mister produzir e consumir o que é necessário e decente e não produzir e consumir o que é supérfluo, excessivo e abusivo. Precisamos passar de um economia da produção ilimitada para uma economia multidimensional da produção do suficiente generoso, para todos os humanos e também para os demais seres da comunidade de vida à qual pertencemos.
Os sujeitos centrais do desenvolvimento, portanto, não são a mercadoria, o mercado, o capital, o setor privado e o estado, mas o ser humano e os demais seres vivos como os principais documentos sobre a ecologia o enfatizam.
É dentro deste contexto que se planteia a questão da democracia integral. Primeiro como valor universal a ser vivido em todos os âmbitos onde o ser humano se encontra com outro ser humano, nas relações familiares, comunitárias, produtivas e sociais. Em seguida como forma de organização política. Seria o sistema que garante a cada um e a todos os cidadãos a participação ativa e criativa em todas as esferas de poder e de saber da sociedade. Essa democracia seria por definição popular (mais ampla que a democracia burguesa e liberal), solidária (não excluiria ninguém, em razão de gênero, de raça e ideologia), respeitadora das diferenças (pluralista e ecumênica), socioecológica porque incluiria como cidadãos e sujeitos de direitos também o meio ambiente, as paisagens, os rios, as plantas e os animais, numa palavra, uma democracia verdadeiramente integral.
Para ser cidadão-sujeito, são exigidos três processos: o primeiro, o empoderamento, isto é, a conquista de poder para ser sujeito pessoal e coletivo de todos os processos relacionados com o seu desenvolvimento pessoal e coletivo; o segundo é a cooperação para além da competição e da concorrência, motor da cultura do capital, que faz dos cidadãos protagonistas do bem comum; o terceiro, a autoeducação contínua para exercer sua cidadania e concidadania junto com outros sujeitos. Como asseverava Hannah Arendt: alguém pode conhecer a vida inteira sem se autoeducar.
É nesse ponto que o desenvolvimento centrado no ser humano e na democracia integral se articula com a educação integral. A educação integral é um processo pedagógico permanente que abrange a todos os cidadãos em suas várias dimensões e que visa educá-los no exercício sempre mais pleno do poder, tanto na esfera de sua subjetividade quanto na de suas relações sociais. Sem esse exercício de poder solidário e cooperativo não surgirá uma democracia integral nem um desenvolvimento centrado na pessoa e na natureza e por isso o único verdadeiramente sustentado.
A prática, portanto, é a fonte originária do aprendizado e do conhecimento humano, pois o ser humano é, por natureza constitutiva, um ser prático. Ele não tem a existência como um dado, mas como um feito, como uma tarefa que exige uma prática de permanente construção. Não tendo nenhum órgão especializado, ele tem que continuamente se construir a si mesmo e o seu habitat pela prática cultural, social, técnica e espiritual. Isso o sublinhou com profundidade o economista e educador popular Marcos Arruda, discípulo de Paulo Freire, em seu livro Tornar o real possível (Vozes, 2003).
Cabe reconhecer que conhecimento sozinho não transforma a realidade; transforma a realidade somente a conversão do conhecimento em ação. Entendemos por práxis exatamente esse movimento dialético entre a conversão do conhecimento em ação transformadora e a conversão da ação transformadora em conhecimento. Essa conversão não apenas muda a realidade, mas muda também o sujeito.
Práxis, portanto, é o caminho de todos na construção da consciência humana e universal. É acessível a todos os humanos que têm uma prática. O trabalhador manual, portanto, não precisa, para aprender, memorizar uma quantidade ilimitada de conteúdos. O essencial é que aprenda a pensar a sua prática individual e social, articulando o local com o global e vice-versa.
A educação da práxis visa atingir três objetivos principais:
Investir em educação, como sempre repetia Darcy Ribeiro, é inaugurar a maior revolução que se poderá realizar na história, a revolução da consciência que se abre ao mundo, à sua complexidade e aos desafios de ordenação que apresenta. Investir na educação é fundar a autonomia de um povo e garantir-lhe as bases permanentes de seu refazimento face a crises que o podem abalar ou desestruturar como atualmente ocorreu após a devastação do ignóbil governo Bolsonaro. Investir em educação é investir na qualidade de vida social e espiritual do povo. Investir em educação é investir em mão de obra qualificada. Investir em educação é garantir uma produtividade maior.
O estado brasileiro nunca promoveu a revolução educacional. É refém histórico das elites proprietárias que precisam manter o povo na ignorância e na incultura para ocultar a perversidade de seu projeto social que é reproduzir seus privilégios e perpetuar-se no poder.
O projeto-Brasil, do Brasil em fazimento, fará da revolução educacional sua alavanca maior, criando o espaço para o povo poder expressar sua alta capacidade de criação artística e inventividade prática, finalmente, para plasmar-se a si mesmo como gostaria de se plasmar.
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Um Brasil em fazimento. Artigo de Leonardo Boff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU