17 Setembro 2024
"Para o nosso próprio bem, devemos ser mais cuidadosos e prudentes com as modificações que fazemos no planeta. Devemos aprender a conviver com Gaia em vez de guerrear com ela. Se não o fizermos, a nossa derrota é certa", escreve Eros Moreira de Carvalho, professor associado do Departamento de Filosofia da UFRGS.
Segundo ele, "pode-se sustentar que Gaia regulou adaptativamente os seus processos nos últimos três bilhões de anos para manter a temperatura média da Terra mais ou menos constante apesar da luz que recebe do sol ter aumentado aproximadamente 25% ao longo desse período. Gaia, como qualquer outro ser vivo, traz à tona o seu umwelt, o que é ou não significativo para ela".
No imaginário ocidental, o planeta Terra é compreendido como um aglomerado de recursos disponíveis ao ser humano. O antropocentrismo que nos marca coloca o ser humano no centro e subordina todo o resto a ele. Apenas o ser humano tem valor intrínseco, apenas ele emana a luz da significância. A Terra, as coisas e os animais não-humanos só têm valor por causa de nós, conforme os incorporamos nas engrenagens do nosso modo de vida e os tornamos úteis para nós.
Essa imagem da Terra como amorfa e destituída de significado nos leva a adotar em relação a ela e aos animais não-humanos que a habitam a atitude de explorador, domador e controlador. Também pensamos que a Terra nos pertence, que podemos fazer o que quisermos com ela.
Quando, na modernidade, fomos tomados pela húbris da produtividade, nossa relação com a Terra passou de exploratória para predatória. Sem pensar nas consequências, transformamos a Terra de tal maneira que hoje as condições que tornam a nossa vida na Terra viável estão ameaçadas. Por causa das nossas desmedidas, corremos o risco de sermos extintos.
E se estivermos errados? E se a Terra for um ser vivo? E se seres vivos forem todos eles, cada um a seu modo, centros de significância?
James Lovelock e Lynn Margulis propuseram nos anos 60 a controversa hipótese Gaia, segundo a qual a temperatura e a composição da atmosfera da Terra são ativamente reguladas pela soma da vida no planeta, a biota. O planeta Terra deveria ser entendido como um superorganismo vivo.
Na década de 60, quando a NASA estava planejando o envio de sondas à Marte — o projeto Viking —, ela contratou Lovelock para investigar a possibilidade de vida em Marte. Na época, era sabido que a atmosfera de Vênus e Marte é composta majoritariamente de dióxido de carbono e uma parcela pequena de nitrogênio. Além disso, são atmosferas próximas do equilíbrio termodinâmico, isto é, quase não há reações entre os elementos que as compõem.
Lovelock percebeu que o contraste com a atmosfera da Terra é gritante. A atmosfera da Terra é composta majoritariamente por nitrogênio e oxigênio. O dióxido de carbono, embora presente, compõe uma parcela mínima. A atmosfera da Terra está longe de equilíbrio termodinâmico, o que significa que os seus componentes reagem entre si. No entanto, a composição da nossa atmosfera mantêm-se constante ao longo do tempo. Lovelock então concluiu que algo deve ser responsável por continuamente repor os elementos da nossa atmosfera. Esse algo é a vida presente na Terra. Para a frustração da NASA, Lovelock também concluiu que seria improvável encontrar vida em Marte.
O controle que Gaia exerce sobre o oxigênio no planeta é exemplar. Não só a oxigenação da nossa atmosfera foi fruto da atividade de microrganismos por milhares de anos como hoje a biota mantém os níveis de oxigênio suficientemente elevados para permitir, por exemplo, a vida de milhares de espécies do metazoa, mas não tão altos a ponto de tornar o planeta inflamável.
Argumentos semelhantes foram articulados para sustentar que a temperatura da Terra, a acidez dos oceanos, a diversidade e dispersão de minerais no planeta e até a formação da crosta terrestre é controlada pela vida. Assim como um organismo humano mantém a sua temperatura dentro de limiares que são favoráveis aos seus processos vitais, Gaia mantém as condições terrestres favoráveis à vida.
O que é a vida? No mesmo período em que Lovelock e Margulis desenvolviam a hipótese Gaia, os chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela se debruçavam sobre a natureza da vida. Na visão deles, seres vivos são sistemas que se autoproduzem e se autoindividuam. Tome como exemplo uma célula eucarionte. Seus componentes e processos são interdependentes. As organelas produzem proteínas que são necessárias para a manutenção da sua membrana. A membrana, por sua vez, permite a entrada de nutrientes necessários para o funcionamento das organelas. Pode-se dizer que cada processo ou componente da célula depende e é produzido pela célula como um todo, não por algo externo a ela. Nesse sentido, a célula se autoproduz. O conjunto de processos e componentes assim interdependentes formam uma totalidade individual no espaço, separada do seu entorno. A célula se autoindividua.
Onde começa e termina a Gaia? Gaia envolve não só os organismos vivos, mas também os materiais que eles estão continuamente reciclando e que fazem parte do grande sistema fisiológico de Gaia. Assim, ela começa na crosta terrestre bem abaixo da superfície da Terra e termina nas últimas camadas da nossa atmosfera. Se a princípio soa inverossímil, lembre-se dos inúmeros seres vivos que realizam digestão extracorpórea, ou imagine uma sequoia gigante, composta por células vivas e uma grande quantidade de madeira morta. Segundo a concepção de vida de Maturana e Varela, se a biota em conjunto com uma série de processos e elementos terrestres formam um sistema que continuamente se autoproduz e se auto-individua, então esse sistema vive. Gaia vive.
Gaia, assim como todo ser vivo, é um sistema distante do equilíbrio termodinâmico. Para manter a sua organização e não se dissipar, precisa de energia. Gaia se alimenta de luz solar e emite radiação, assim como uma cianobactéria alimenta-se de gás carbônico e expele oxigênio.
Na mesma tradição de Maturana e Varela, Di Paolo chamou a atenção para uma terceira característica dos seres vivos: a adaptatividade. Seres vivos não só se autoproduzem e se autoindividuam, eles também monitoram os seus processos e regulam as suas interações com o ambiente para mantê-los dentro das suas condições de viabilidade.
Por exemplo, uma bactéria móvel que se alimenta de açúcar se afasta de regiões onde o gradiente de açúcar diminui e se aproxima de regiões onde o gradiente aumenta. Para Di Paolo, essa bactéria avalia os seus encontros com o mundo em termos da sua organização, do que é benéfico e maléfico para ela. Assim, o mundo que a bactéria encontra não é destituído de significância para ela.
A adaptatividade implica que todo ser vivo tem uma perspectiva acerca do mundo, por mais simples que ela seja, ou um umwelt, nos termos do filósofo da biologia Jakob von Uexküll. Pode-se sustentar que Gaia regulou adaptativamente os seus processos nos últimos três bilhões de anos para manter a temperatura média da Terra mais ou menos constante apesar da luz que recebe do sol ter aumentado aproximadamente 25% ao longo desse período. Gaia, como qualquer outro ser vivo, traz à tona o seu umwelt, o que é ou não significativo para ela.
Por que deveríamos nos importar se Gaia vive e tem uma perspectiva própria?
Primeiro, nós não somos os únicos seres que imbuem o mundo com significado. Todo ser vivo o faz. Portanto, todo ser vivo importa.
Segundo, fazemos parte de um todo maior, cuja saúde podemos, pelas nossas atividades, prejudicar ou beneficiar. Gaia cuida para manter as condições que tornam a vida viável. O mínimo que deveríamos fazer é abandonar a atitude predatória e colaborar para que Gaia continue vivendo e, assim, tornando a nossa vida viável.
Terceiro, nós, seres humanos, precisamos mais de Gaia do que ela de nós. Uma Terra mais quente, com maior ocorrência de extremos climáticos e com menos oxigênio pode tornar a vida humana e de muitos outros animais muito difícil ou até inviável, mas ainda seria propícia para muitos seres vivos. Gaia viveu milhares e milhares de anos sem os hominídios e provavelmente continuará vivendo por muitos anos sem eles.
Quarto, a complexidade de Gaia, que envolve os efeitos da modificação do ambiente operada por todos os seres vivos, é algo que mal começamos a entender. Para o nosso próprio bem, devemos ser mais cuidadosos e prudentes com as modificações que fazemos no planeta. Devemos aprender a conviver com Gaia em vez de guerrear com ela. Se não o fizermos, a nossa derrota é certa.
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Gaia Vive! Artigo de Eros Moreira de Carvalho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU