São Pedro e S. Paulo: duas revelações, dois personagens originais. Comentário de Adroaldo Palaoro

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27 Junho 2025

A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho da Solenidade de São Pedro e São Paulo Apóstolos, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Mateus 16,13-19.

Eis o texto.

“E vós, quem dizeis que eu sou? (Mt 16,15)

A liturgia deste domingo nos situa diante de duas revelações feitas a dois grandes e marcantes personagens que deram uma contribuição decisiva para a identidade da nova comunidade inaugurada por Jesus: uma revelação dirigida a Pedro e outra a Paulo. Mas as duas revelações são profundamente inseparáveis, pois se referem a duas dimensões significativas na vida e na consciência da Igreja, como comunidade seguidora de Jesus.

Uma dimensão centrada na experiência e missão de Paulo, que recebeu o encargo de expandir a Boa Nova do Evangelho para além das fronteiras judaicas; outra, centrada na liderança e ministério de Pedro, que recebeu de Jesus a missão de servir e cuidar dos seguidores e seguidoras d’Ele.

As duas revelações (a Pedro e a Paulo) abrem um espaço e um caminho de universalidade “não excludente”, de maneira que podem vincular-se e enriquecer-se entre si, embora, posteriormente, algumas comunidades tenham dado primazia a Pedro e outras tenham insistido mais no personagem Paulo.

Mas os dois devem ser considerados na sua relação e identificação com Jesus Cristo.

De fato, a Igreja como instituição foi sendo formada ao longo do tempo, inspirando-se nos carismas de Pedro e Paulo. Eles não são os “fundadores” da Igreja; esta nasce da Páscoa, da fé no Senhor ressuscitado; a Igreja nasce a partir do mandato missional dirigido a todos: “ide e anunciai”; a Igreja nasce do lava-pés: “vós deveis lavar os pés uns aos outros”; a Igreja nasce quando se deixa conduzir pelo Espírito de Jesus; a Igreja nasce como sacramento de Cristo, porque, após sua Ascenção, continua presente na história através dos seus seguidores.

A Igreja não nasce como uma “sociedade anônima”, mas como um “movimento de vida”, desencadeado por Jesus. Somos todos a grande assembleia daqueles que creem n’Ele: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”. Por isso, a fé torna bem-aventurada a vida. Ditoso Pedro, ditoso Paulo, ditosos e bem-aventurados somos todos nós. Se não somos felizes, se não vivemos na serenidade e na alegria, talvez não tenhamos chegado ainda a crer profundamente no Senhor.

Uma Igreja, uma comunidade onde predominam intransigências, legalismos, tensões e tristezas, está longe de ser a comunidade dos seguidores que se encheram de alegria ao verem o Senhor (Jo 20,20). O mesmo Jesus que disse a Pedro – “feliz és tu” – também continua dizendo o mesmo a cada um de nós.

A fé não é um peso que alimenta culpa, mas uma libertação, um prazer profundo e um horizonte de sentido. Nem sempre podemos estar contentes, mas sempre podemos viver na paz do Senhor.

Nas leituras bíblicas indicadas para esta festa, a revelação de Paulo aparece como fundamento e princípio da missão cristã junto a outros povos e fora do ambiente judaico. Conforme a tradição paulina, a Igreja se fundamenta na grande abertura missionária, prolongando a missão do próprio Jesus que foi alargando as fronteiras geográficas, religiosas, culturais. Assim, houve na Igreja primitiva, uma grande revelação paulina, vinculada à abertura do Evangelho de Jesus para além-fronteiras.

Por sua vez, a revelação petrina, fundada não só na Páscoa, mas na vida história de Jesus, aparece em Mateus como princípio e justificação da abertura também universal da Igreja judeu-cristã. Nesse contexto, a Igreja de Mateus refletiu sobre o sentido do nome Cefas/Pedro/Pedra/Rocha, dado a Simão.

O evangelista Mateus, ao referir-se à identidade de Pedro, deixa transparecer um jogo de palavras: petros-petra. Quando Jesus diz: Tu és “petros”, Ele está afirmando que Simão, em si mesmo, é simplesmente uma pedra, um pedregulho, um cascalho que não tem consistência. Mas Simão recebeu uma revelação especial de Deus, de tal forma que por ela, ele se transforma em alguém diferente, em mediador e garantidor da “Petra”/Rocha firme da fé, fundamento seguro da Igreja de Jesus.

Mateus vincula a palavra masculina Petros com Petra, no feminino, que significa rocha ou fundamento firme, palavra que o próprio Paulo relacionou a Cristo, desde os tempos antigos (1Cor 10,4).

A Rocha não é a pessoa de Pedro, mas a fé de Pedro. Sobre esta Rocha-fé de Pedro, Jesus edifica sua comunidade. Do mesmo modo, Jesus continua construindo sua comunidade sobre a rocha-fé de todos os seus seguidores e seguidoras.

Nesse sentido, a afirmação de Jesus a Pedro - “Tu és ‘petros’ e sobre esta ‘petra’ edificarei minha igreja” – tem uma ressonância no interior de cada seguidor(a) d’Ele. Há, em todos nós, uma solidez, uma nobreza interior, uma identidade iluminada pela identidade do próprio Jesus.

A pregunta de Jesus – “e vós, quem dizeis que eu sou?” – desvela o “eu sou” de Pedro, de Paulo e de cada um de nós. Na realidade, “nossa identidade está escondida com Cristo em Deus” (Col 3,3).

Nosso coração se encontra diante da revelação do “eu original”, porque está enraizada na própria identidade de Jesus Cristo.

É na vivência do seguimento de Jesus que “descobrimos a nós mesmos”. Começamos a descobrir o nosso ser (único, original, sagrado...) quando “mergulhamos” no misterioso relacionamento com Ele e quando permitimos que o “mistério experimentado” se torne fonte de nossa identidade. Mais ainda, saberemos melhor “quem somos nós”, esquecendo-nos e esvaziando-nos de nós mesmos, aceitando perder-nos, deixando que o amor nos liberte de nosso pequeno e limitado “ego”.

No Evangelho deste domingo descobrimos uma peculiar sintonia entre nosso “eu profundo” e a experiência de encontro com Jesus Cristo. É como se uma misteriosa atração nos levasse a descobrir a nossa nova identidade. O encontro e a contemplação d’Ele é também revelação do nosso “eu” verdadeiro, “escondido com Cristo em Deus”, ou seja, revelação da verdade do nosso “eu”, onde descobrimos os traços de nossa própria fisionomia.

Assim, “Petros” é o que em nós é fragilidade, incoerência, vulnerabilidade, limitação... “Petra”, ao contrário, é o que é sólido, firme, consistente, sobre o qual fundamentamos a vida. “Carregamos um tesouro em vaso de barro” (2Cor. 4,7). Como cristãos somos a integração de “petros” e “petra”.

Nossa própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que temos, para encontrar segurança e caminhar na vida superando as dificuldades e os inevitáveis golpes na luta pela vida. O “eu profundo” constitui-se como um centro sólido, consistente e estável de nosso ser, radicalmente diferente das experiências fluidas que o atravessam. Existem camadas sólidas da experiência do “eu” que devem contrapor-se às experiências passageiras de sentimentos vazios, desejos periféricos, sonhos sem paixão.

Somos ainda, em grande parte, uma “terra desconhecida” para nós mesmos, e a viagem de descoberta é como a viagem imaginária a uma nova terra, estranha e bela, que nos prende aos seus encantos e à novidade de suas mil maravilhas. Percebemos, depois, com surpresa e alegria, que a bela terra nova a que chegamos sem saber é nosso próprio país natal esquecido, subestimado e abandonado.

A redescoberta de nós mesmos é a maior e, sem dúvida, a mais gratificante aventura de nossa vida. Redescobrindo a nós mesmos, vamos encontrar o nosso lugar e missão na história. Quanto mais conhecemos o nosso verdadeiro ser, melhor será o valor de nossa vida para os outros.

Para meditar na oração:

O que em você é “petros” e o que é “petra”?

- Deixe que a verdadeira identidade de Jesus des-vele sua verdadeira identidade, ou seja, seu “eu” original é livre, criativo, transparente, iluminado...

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