24 Junho 2025
"Com todos os discursos que ouvimos repetir sobre o abuso das mídias, esse abuso é até considerado oportuno e adequando a ser promovido no site oficial da associação que conduziu a causa de beatificação. Ninguém se envergonha? Em nome da tradição católica, no melhor sentido do termo, que deve ser preservada, sinto-me escandalizado pelas linguagens distorcidas em torno de Carlo e pelo silêncio institucional e teológico que as acompanha. Se pastores e teólogos não falarem, quem deveria falar?"
O artigo é de Andrea Grillo, teólogo italiano, publicado por Come se non, 20-06-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Foi um evento linguístico. Esse é um dos juízos mais profundos e fundamentados que se podem fazer sobre o Concílio Vaticano II. Uma forma maior e mais intensa de falar do Mistério, com uma profunda renovação do modo de se expressar (e de experimentar) o culto, a revelação, a Igreja e o mundo. Essa passagem investiu gradualmente todos os âmbitos da vida cristã, incluindo a forma de conceber a santidade. É inevitável que, ao lado de âmbitos em que a mudança da linguagem se processou mais rapidamente, existam lugares e formas de vida em que a inércia de uma linguagem clássica luta para evoluir. A experiência que estamos vivendo nesses últimos dias, lendo os documentos produzidos pela Congregação para as Causas dos Santos, sinaliza uma perigosa estagnação da experiência e da expressão em uma linguagem artificial, caricatural, forçada e distorcida.
Mesmo a hagiografia, que também tem suas formas, conhece limites e formas exageradas. Depois de ter examinado a inadequação com que se fala de “milagres eucarísticos” em torno da vida de Carlo Acutis, quero me debruçar em dois aspectos diferentes, mas que contribuem para alimentar uma leitura não equilibrada e com aspectos preocupantes da vida cristã e de seus ideais. Tratarei, portanto, das “palavras sobre Carlo” e das “palavras de Carlo”, para concluir com uma “visão sobre Carlo” que constitui o ponto de máxima crise da autoridade eclesial. Mas vamos seguir pela ordem.
Vamos tentar ler pelo menos algumas passagens dos documentos com os quais se chegou à beatificação e canonização: podem ser encontradas neste endereço. Todos podem lê-los e compreender imediatamente a inadequação da linguagem que foi usada para falar de Carlo. No início, porém, se encontra, como título, uma frase atribuída diretamente ao beato: "Ofereço todos os sofrimentos que terei que padecer, ao Senhor, pelo Papa e pela Igreja, para evitar o Purgatório e ir direto para o Paraíso".
A expressão parece surpreendente, não apenas pela forma como raciocina sobre o sofrimento, mas também pela forma como cria uma correlação entre o sofrimento padecido e o purgatório evitado: uma página da espiritualidade cristã bastante constrangedora e exposta a um juízo não exatamente lisonjeiro. É a expressão de um jovem de 14 anos que não foi formado e que usa palavras de uma forma que não pode, de forma alguma, ser recomendada a outros. Por que colocar como título de uma hagiografia uma frase em que um beato expressa uma opinião repreensível?
Mais interessante, porém, é a reconstrução de sua vida, oficialmente proposta pela Congregação para os Santos, que oferece esta interessante visão: Amor à Eucaristia e devoção à Virgem.
O fulcro da espiritualidade de Carlo era o encontro diário com o Senhor na Eucaristia. Ele repetia frequentemente: "A Eucaristia é a minha autoestrada para o Céu!”. Esse é o centro de toda a sua existência, vivida na amizade com Deus. Isso se traduziu, após a primeira comunhão, na participação diária à Missa, com a permissão de seu diretor espiritual. Grande devoto das aparições e da mensagem de Fátima, na imitação dos Pastores, oferecia pequenos sacrifícios por aqueles que não amam o Senhor Jesus presente na Eucaristia. Quando, devido a compromissos escolares, não podia ir à missa, fazia a comunhão espiritual. Também realizou um precioso apostolado entre seus colegas de escola e amigos, explicando-lhes o mistério eucarístico por meio das histórias dos milagres eucarísticos mais importantes ocorridos ao longo dos séculos. Assim, como apóstolo da Eucaristia, Carlo escolheu usar seu gênio informático para projetar e criar uma exposição internacional sobre os “Milagres Eucarísticos”. Trata-se de uma grande exposição fotográfica com descrições históricas, que apresenta vários dos principais milagres eucarísticos (cerca de 136) ocorridos ao longo dos séculos em países do mundo inteiro e reconhecidos pela Igreja.
O outro pilar fundamental da espiritualidade de Carlo foi a devoção a Nossa Senhora. Expressava-se na recitação diária do Rosário, na consagração ao seu Imaculado Coração e no planejamento de um esquema de piedoso exercício que reproduziu com seu computador. Dedicou uma particular atenção aos Novíssimos, que projetaram sua existência na realidade da vida eterna.
Algumas questões imediatamente saltam à vista: é um "apóstolo da Eucaristia" um garoto que imita os pastores de Fátima e coleciona imagens de todos os milagres eucarísticos? Em vez de educá-lo, preferiu-se deixá-lo seguir por sua conta? Ou trata-se de uma tentativa, através dele, de infantilizar toda a Igreja, propondo a todos como modelo um garoto que não foi guiado pela sabedoria que os adultos (leigos e clérigos) que o rodeavam deveriam ter tido com ele? Por meio de um garoto de 15 anos, que repete estereótipos oitocentistas, promove-se uma espiritualidade e uma Igreja, uma ideia de sacramento e de oração que está atrasada de 200 anos. Uma Igreja em saída, certamente, mas pela porta dos fundos, rumo ao saudosismo e à garantia das formas mais limitadas de devoção individualista e burguesa. Precisamente em nome da fé católica (que não vive nos museus), devemos sair de modelos demasiado estreitos, com os quais identificamos erroneamente o catolicismo.
A sabedoria não tem idade: é possível ser muito sábio como adulto, ou como idoso, mas também como jovem. Jovens sábios são uma grande dádiva, precisamente porque são raros. O desejo de encontrar “palavras sagradas” em um santo é totalmente razoável. Mas as palavras de Carlo, aquelas que são repetidas com mais frequência, são realmente sábias? No site oficial da associação, encontramos 7 frases que seriam o “melhor” do que Carlo disse. Aqui estão elas:
“O Rosário é a escada mais curta para subir ao Céu”
“Uma vida só é verdadeiramente bela se chegarmos a amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos”
“Criticar a Igreja é criticar a nós mesmos! A Igreja é a dispensadora de tesouros para a nossa salvação”
“A única coisa que devemos realmente temer é o pecado”
“Por que os homens se preocupam tanto com a beleza de seus corpos e depois não se preocupam com a beleza de suas almas?”
“Não eu, mas Deus”
“Todos nascem como originais, mas muitos morrem como fotocópias”.
Se as examinarmos, veremos que não são muito originais. Ouvimos algumas delas nos sermões de párocos de 50 anos atrás ou as extraímos, mais ou menos diretamente, das escrituras. Há também um registro apologético contra as críticas à Igreja que soa realmente estranho em um garoto de 14 anos. Mas talvez as frases mais famosas sejam as duas últimas: uma que contrapõe eu e Deus e a outra que coloca em tensão o original como nascimento e a fotocópia como morte. A primeira é um lugar-comum das leituras extáticas da identidade, a segunda mais se parece com uma frase contra a "homogeneização". Mas essas proposições são realmente tão espirituais?
Vamos começar com a penúltima: parte do princípio de que afirmar Deus significa negar a si mesmo. Em tudo isso, há uma ingenuidade compreensível em um garoto de 14 anos, mas menos compreensível naqueles que relançam esse estereótipo. Uma das mais belas pesquisas sobre a maneira de compreender o sujeito, escrita pelo jovem teólogo Rousselot, falecido durante a Primeira Guerra Mundial, nos alerta contra a ideia de que o amor de si próprio possa ser um mal. Na frase "não eu, mas Deus", inclina-se para uma contraposição que a encarnação e a Páscoa releem em profundidade. Em vez de "não eu, mas Deus", dever-se-ia dizer: "eu em Deus" ou "Deus em nós". Ter capturado de forma tão drástica uma expressão de Carlo no caminho de sua formação e tê-la tornado "absoluta" é uma operação teológica e eclesiasticamente pouco sábia.
Sua sabedoria merecia um espaço de formação que não existiu, nem antes de sua morte, nele; nem depois de sua morte, naqueles que lhe sobreviveram.
O mesmo vale para a última frase, talvez a mais repetida. Não devemos ser fotocópias, devemos "permanecer originais", costuma-se dizer. Mas será mesmo assim? Somos realmente "originais ameaçados de nos tornarmos fotocópias"? Não somos também fotocópias que podem tornar-se originais? Não é talvez igualmente verdade, e talvez ainda mais verdade, que cada homem e cada mulher, ao tornarem-se capazes de usar as mãos, a palavra e o pensamento, tornam-se um original precisamente por crescer, elaborar, pôr em uso, entrar em comunhão? Também aqui, uma frase demasiado unilateral, isolada, perde de vista uma sabedoria mais completa e mais santa. Não somos de saída originais, mas tornamo-nos originais nas relações, com Deus e com o próximo.
Aqui, como é evidente, as palavras de Carlo, pelo menos aquelas escolhidas como mais significativas, permanecem dentro de uma compreensão tanto da fé como do culto que parece profundamente limitada. Por outro lado, a insistência com que as biografias oficiais falam de "proximidade aos últimos" não corresponde em nada às frases colocadas em primeiro plano. Diz-se dele, por exemplo: "ele nunca discriminou nem excluiu ninguém. Embora pertencesse a uma família muito rica, em sua curta vida nunca manifestou apego aos bens materiais, pelo contrário, os compartilhava com os indigentes. Seu testemunho de caridade para com os pobres, os sem-teto, os cidadãos fora da comunidade europeia e os marginalizados é exemplar". Há uma espécie de discrepância entre o que se diz sobre ele e as frases que lhe são atribuídas.
Em carloacutis.com, a linguagem da santidade sofre uma última e decisiva degradação, da qual Carlo não é responsável, mas que pesa sobre ele devido à imprudência dos adultos. De fato, encontramos um menu em lista intitulado “Visite o Túmulo de Carlo”, onde entre as opções que se abrem está a expressão “vídeo ao vivo do túmulo de Carlo”: abre-se uma janela para uma webcam que filma, em tempo real, o túmulo do beato (disponível aqui). O fato de esse “menu em lista” ser imposto ao beato “padroeiro da internet” constitui, na minha opinião, o ponto crítico mais grave. Com todos os discursos que ouvimos repetir sobre o abuso das mídias, esse abuso é até considerado oportuno e adequando a ser promovido no site oficial da associação que conduziu a causa de beatificação. Ninguém se envergonha? Em nome da tradição católica, no melhor sentido do termo, que deve ser preservada, sinto-me escandalizado pelas linguagens distorcidas em torno de Carlo e pelo silêncio institucional e teológico que as acompanha. Se pastores e teólogos não falarem, quem deveria falar?