O coração inquieto da Igreja. Artigo de Vito Mancuso

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"O conceito de unidade remete ao relacionamento da Igreja consigo mesma, o conceito de inquietação, por outro lado, remete ao relacionamento da Igreja com o mundo: mas é possível que uma Igreja que se relaciona com o mundo, deixando-se inquietar, mantenha a sua unidade? Esse é o desafio que aguarda Leão XIV: compor “cor inquietum” e unidade eclesial."

O artigo é de Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele, de Milão, e da Universidade de Pádua, publicada por La Stampa, 19-05-2025.

Eis o artigo.

Foi muito bonita em sua simplicidade, clareza e brevidade, a homilia do Papa Leão XIV para a missa no início de seu pontificado. Mas, o que a tornou particularmente preciosa aos meus olhos, foi o fato de ter delineado, sem formulá-lo explicitamente, mas fazendo-a surgir de baixo, o problema fundamental que seu pontificado terá de enfrentar imediatamente e por um longo tempo. Qual? Aquele que inevitavelmente surge da dialética estrutural entre os dois conceitos mais importantes da homilia: inquietação e unidade. Há também um terceiro conceito que desempenha um papel relevante, o amor, e só poderia ser assim para um agostiniano, mas o amor aqui está a serviço da unidade, de modo que só reforça o verdadeiro âmago conceitual do discurso que consiste na dialética da inquietação e da unidade.

A inquietação emoldura a homilia papal, é o primeiro e o último conceito evocado, aparece imediatamente após as saudações rituais e retorna no final, nas últimas palavras. No início, o Papa cita o famoso incipit das Confissões do “seu” Santo Agostinho, que se dirige a Deus assim: “Fizeste-nos para ti, e o nosso coração não encontra repouso enquanto não repousa em ti”, texto famoso que merece ser lembrado também na beleza do original latino: “Fecisti nos ad te et inquietum est cor nostrum donec requiescat in te” (sonho que a primeira encíclica do Papa Leão tenha este título: Cor inquietum).

A inquietação retorna no final, quando Leão afirma que é necessário construir uma Igreja “que se deixe inquietar pela história”. Um coração inquieto, portanto, ou melhor, muitos corações inquietos, aqueles de todos nós, seres humanos, e uma Igreja que esteja aberta às muitas inquietações desses nossos corações.

O outro conceito, a unidade, é a mensagem mais enfatizada, a ponto de identificar “nosso primeiro grande desejo”, como expressa o Papa, com “uma Igreja unida, sinal de unidade”. A passagem do Evangelho lida durante a Missa era sobre São Pedro, e o Papa Leão falando de Pedro estava obviamente falando de si mesmo como sucessor de Pedro, afirmando nessa perspectiva a centralidade absoluta do amor “de” Deus e do amor “por” Deus: ou seja, de um amor que desce do alto e é recebido por Pedro (ou seja, o Papa), e de um amor que sobe de baixo e é manifestado por Pedro (ou seja, o Papa). Se não houver esse amor, não se pode ser Papa, afirma Leão, porque “o ministério de Pedro é marcado justamente por esse amor oblativo”. É um amor, entretanto, que é funcional à unidade, que se explicita como serviço à unidade e à harmonia dos irmãos, àquela ação que o evangelho descreve ao dizer “apascenta os meus cordeiros”. O amor a Deus e o amor a Deus se tornam, portanto, para o Papa, amor à Igreja e à sua unidade.

Assim, chegamos ao ponto crítico: como é possível manter unidas as duas dimensões da inquietação e da unidade? Como podemos nos abrir às inquietações do mundo e preservar a unidade da Igreja? Como a Igreja pode se deixar inquietar pelo mundo e, ao mesmo tempo, ser testemunha de um amor que chega de Deus? Como a inquietação que vem de baixo pode ser reconciliada com a missão que vem de cima? Como fazer conviver um coração inquieto pelos dramas da história com uma mente confiante que proclama com alegria o credo católico com todos os seus dogmas?

O conceito de unidade remete ao relacionamento da Igreja consigo mesma, o conceito de inquietação, por outro lado, remete ao relacionamento da Igreja com o mundo: mas é possível que uma Igreja que se relaciona com o mundo, deixando-se inquietar, mantenha a sua unidade? Esse é o desafio que aguarda Leão XIV: compor “cor inquietum” e unidade eclesial.

Na maioria das vezes, ao longo da história da Igreja, as inquietações do coração e, consequentemente, da mente, foram reprimidas para favorecer a harmonia, ou melhor, a harmonização, e assim produzir uma unidade pelo menos de fachada. Isso aconteceu precisamente a partir de Santo Agostinho, duríssimo ao reprimir, não sem violência, as inquietações levantadas pelos donatistas e pelagianos. Mas, em relação aos dois predecessores imediatos do papa Leão, pode-se dizer que o papa Bento XVI continuava a linha tradicional que privilegia a unidade em detrimento da inquietação, enquanto o papa Francisco, ao contrário, muitas vezes sacrificava a unidade para privilegiar a inquietação.

O Papa Bento dava tanta importância à custódia do “depositum fidei” a ponto de fechar sem hesitação a porta às expectativas do mundo, na medida em que se revelavam um perigo para a doutrina: basta pensar na luta contra a teologia da libertação, na relutância em relação ao diálogo inter-religioso, no cancelamento de dois séculos de exegese histórico-crítica na trilogia dedicada a Jesus, na qual Bento defende a perfeita equivalência entre o Jesus da história e o Jesus dos evangelhos.

O Papa Francisco, por outro lado, vivia tão intensamente os dramas e os sofrimentos do mundo a ponto de se tornar o seu porta-voz em primeira pessoa, muitas vezes com palavras e gestos proféticos inesperados, e como tais aptos a compreender e voltar a expressar a inquietação do mundo (que de fato se sentia acolhido pelo Papa argentino e por isso o amava), mas ao mesmo tempo tais a desestabilizar a unidade e a harmonia da Igreja, organismo por definição levado à preservação e à custódia da tradição.

O Papa Leão traçou perfeitamente o retrato da missão que o aguarda quando, em sua homilia, descreveu assim o Papa: “um pastor capaz de preservar o rico patrimônio da fé cristã e, ao mesmo tempo, lançar o olhar ao longe, para ir ao encontro das perguntas, das inquietações e dos desafios de hoje”. Aqui está mais uma vez a dialética: por um lado, “guardar”, preservar, proteger, ou seja, permanecer firmes e mentalmente atentos; por outro lado, “ir ao encontro”, mover-se, abrir-se, deixar-se inquietar, mudar de posição e assumir a posição alheia para sentir realmente empatia e, assim, ser verdadeiramente capazes de acolher.

Qual das duas almas prevalecerá, a inquietação ou a unidade? Ou será que o Papa Leão terá sucesso na empreitada de conciliar esses polos dialéticos produzindo uma formidável complexio oppositorum? Espero que sim, é claro, e gostaria de concluir destacando a passagem em que o papa lembrou a importância de caminhar junto com as outras igrejas, com outras religiões, “com aqueles que cultivam a inquietude da busca de Deus” e, finalmente, “com todas as mulheres e homens de boa vontade” para construir um mundo novo no qual reine a paz. Nenhum complexo de superioridade, portanto, mas, ao contrário, um espírito de serviço para oferecer a todos aquele amor que, na experiência espiritual, chega ao Papa do amor de Deus.

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