17 Mai 2025
"O agostinismo e o realismo moderno compartilham uma desconfiança na capacidade da humanidade de usar seus poderes da razão para promover reformas progressivas que levem a uma paz duradoura, bem como em conceber a justiça e a ordem política como compatíveis", escreve o cientista político italiano Francesco Strazzari, professor de Relações Internacionais na Scuola Universitaria Superiore Sant’Anna, em Pisa, na Itália. O artigo foi publicado por Il Manifesto, 15-05-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um espectro paira sobre a Europa, ou melhor, o mundo: o agostinismo. Depois de ter invocado a paz “desarmada e desarmante” em sua saudação, Leão XIV disse ser “filho de Agostinho” e, entre as figuras escolhidas para governar a Igreja, algumas vêm da ordem agostiniana.
Agostinho de Hipona teve um impacto no Ocidente que vai muito além da esfera teológica e religiosa, e é conhecido por aqueles que estudam política internacional como o pai da doutrina da guerra justa. Tendo se convertido em 386 em Milão com Ambrósio, na época do saque de Roma (410), Agostinho era bispo no Norte da África, onde trabalhou arduamente contra a heresia donatista a ponto de justificar a coerção para proteger a fé.
Agostinho viveu o fim do Império Romano, agora cristianizado. Seus textos se tornaram um ponto de referência para os cristãos nos séculos incertos que viriam. O tema da relação entre a Cidade dos homens e a Cidade de Deus (poder espiritual e temporal) estaria presente ao longo de toda Idade Média, também graças ao Papa Leão I, enquanto a leitura das Confissões afetaria profundamente Martinho Lutero.
Agostinho não é um pensador pacifista: ele reconhece que a guerra pode ser um mal necessário. A doutrina da guerra justa, que é retomada por Tomás de Aquino, baseia-se em dois pilares argumentativos: a existência de uma ofensa preexistente e a decisão de uma autoridade legítima (derivada de Deus), além da existência de condições de proporcionalidade e "reta intenção".
Agostinho fala da força militar para se defender das invasões e, com relação ao "não matar", distingue o princípio ético para o soldado daquele para o cidadão comum.
Seu pensamento contribuiu, especialmente por meio do teólogo reformado estadunidense Reinhold Niebuhr, estudioso de relações internacionais, para o desenvolvimento do realismo político no século XX, partindo de uma visão pessimista da natureza humana. Niebuhr recorreu a Agostinho para conciliar a desilusão com a política liberal progressista e a recusa, mesmo como fervoroso anticomunista, de recuar no mais cínico conservadorismo. Na realidade, Agostinho é mais radical do que os realistas modernos, pois nos convida a questionar o poder motivador da racionalidade humana: em seus escritos, a capacidade do estadista de ler os vínculos estruturais e elaborar estratégias de resposta está sujeita à influência volúvel de uma multiplicidade de anseios, incluindo as personalidades (mentes) dos chefes de Estado e seus hábitos.
O pensamento agostiniano fala ao presente na medida em que reflete sobre uma ordem social que brota de um vívido senso de propósitos contrastantes, incertezas de direção, lealdades divergentes e tensões irresolúveis. Certamente, Agostinho e o realismo compartilham um ceticismo básico quanto às perspectivas de progresso moral e político. No entanto, enquanto os realistas estilizam a política mundial como uma arena de interação estratégica e um quebra-cabeça tático, Agostinho parte da psicologia do indivíduo, muitas vezes atormentado internamente, e duvida da possibilidade de uma ação estratégica racional, debruçando-se sobre a possibilidade e a necessidade de agir moralmente em um mundo dominado pelo chamado realismo. Dessa forma, Agostinho nos desafia a reexaminar a autoevidência das verdades dos realistas.
Embora Agostinho admita que homens de estado são muitas vezes forçados a escolher entre bens rivais e incompatíveis, não demonstra complacência com a duplicidade ou o engano que favorecem os interesses estratégicos da nação. O agostiniano é menos inclinado do que o realista a perdoar condutas que se revelam uma ameaça à virtude cívica do que uma ameaça estrangeira.
Portanto, o agostinismo e o realismo moderno compartilham uma desconfiança na capacidade da humanidade de usar seus poderes da razão para promover reformas progressivas que levem a uma paz duradoura, bem como em conceber a justiça e a ordem política como compatíveis. Eles também compartilham uma certa ambivalência ao defender um sistema político doméstico em detrimento de outro. No entanto, a própria doutrina da guerra justa de Agostinho foi construída pela extrapolação de passagens escritas em contextos e períodos muito diferentes, muitas vezes sem referência nem à evolução intelectual de Agostinho nem à história do império. A redação da Cidade de Deus, em particular, está agora livre de qualquer tom de celebração: Roma está em profunda crise, e Agostinho, agora avançado nos anos, não vê a graça da salvação marchando sob a bandeira do império cristão.
É redutivo definir o agostiniano Leão XIV como o papa da paz. O empenho em lembrar o Concílio de Niceia, onde o credo foi estabelecido há 1.700 anos, foi assumido por Francisco, mas é significativo, considerando a dimensão identitária que o evento tem, caso acabe se tornando a viagem de estreia do novo papa.
O tema da humanidade que, tendo virado as costas a Deus, vive na confusão, a referência ao ateísmo de fato de muitos que acham a fé absurda enquanto adoram tecnologias e consumos, são temas agostinianos sobre os quais Leão XIV já quis se debruçar. Como cardeal, Prevost polemizou com J.D. Vance, rotulando como equivocada sua visão hierárquica do amor cristão. É provável que, como papa, propiciará argumentos contra uma presidência que propõe suspender o habeas corpus para os migrantes.
J.D. Vance foi batizado e crismado em 2019, em uma igreja agostiniana em Cincinnati. No ano seguinte, ele escreveu que ficou impressionado, durante seus anos de estudo, com o quanto as pessoas inteligentes ao seu redor fossem ateias, enquanto aquelas estúpidas professavam ser crentes. Depois de se encontrar com Francisco, J.D. Vance retornará ao Vaticano para a missa que marca o início do pontificado de Leão. Algo entra em tensão em torno do papel da fé na política, enquanto em alguma mesa se discute a paz e a guerra.