01 Mai 2025
O problema não são apenas as emissões de CO2, mas também o desmatamento local e a infraestrutura urbana que promovem as inundações. Porém, a destruição em larga escala de florestas, áreas alagadas e outros tipos de vegetação é um dado que costuma ser subestimado, mas está alterando perigosamente os padrões de chuva — uma teoria proposta décadas atrás por um cientista espanhol pouco conhecido.
A reportagem é de Gerry McGovern e Sue Branford, publicada por Mongabay, 18-04-2025.
Em 2024, duas cidades em diferentes continentes se viram ligadas por meio de uma tragédia em comum: Porto Alegre, no Brasil, e Valência, na Espanha, ambas acometidas por fortes chuvas que deixaram traumas e traços de destruição, ainda sentidos mesmo um ano depois. Enquanto pessoas se perguntam por que isso vem acontecendo com mais intensidade e frequência, cientistas tentam fornecer respostas. Não com certa surpresa, eles têm encontrado padrões semelhantes de causalidade entre os incidentes ocorridos — padrões que servem como um aviso para o mundo, mas que se revelam mais complexos e assustadores do que o esperado.
Porto Alegre foi a primeira a ser atingida. As chuvas torrenciais começaram em abril de 2024 e duraram seis semanas, transbordando rios e grandes deslizamentos de terra. A barragem de uma hidrelétrica se rompeu parcialmente. Pelo menos 180 pessoas morreram e meio milhão foi expulso de suas casas. Foi a pior enchente registrada na história do Rio Grande do Sul, com 1,6 milhão de hectares afetados.
Como em todos esses desastres climáticos recentes, histórias de perdas ressoam em um mundo em aquecimento, onde as pessoas começam a se perguntar se sua comunidade será a próxima. Só o Brasil registrou um aumento de 460% nos desastres relacionados ao clima desde a década de 1990, de acordo com um estudo recente.
As inundações de Valência em outubro de 2024 impactaram 450 mil hectares, menos do que a área inundada no Rio Grande do Sul. No entanto, o tamanho não define o terror: a velocidade com que o dilúvio se desdobrou e afetou vidas humanas foi maior do que no Brasil. Os alertas de inundação chegaram tarde demais. Pelo menos 205 pessoas morreram — o pior desastre da Espanha em décadas.
De acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), eventos climáticos extremos que geram inundações e secas de grande impacto estão se tornando mais frequentes e graves devido às mudanças climáticas causadas pela espécie humana, que desestabilizaram o ciclo hidrológico histórico.
Em Valência e Porto Alegre, cientistas continuam fazendo análises forenses cuidadosas dos desastres. A impressão digital da mudança climática, induzida pelo excesso de carbono na atmosfera, está em todas as catástrofes, mas novas impressões estão sendo detectadas — algumas identificadas décadas atrás por um climatologista pouco conhecido.
Cientistas concordam que a causa imediata das inundações em ambos os países foi uma confluência de condições meteorológicas extremas, descritas apenas agora.
No Brasil, vários sistemas climáticos colidiram sobre o Rio Grande do Sul: uma umidade excepcionalmente alta se encontrou com os ventos do oeste, em parte devido ao aquecimento do Oceano Pacífico durante o El Niño, os quais se depararam com uma onda de ar úmido da Amazônia. Esses ventos carregados de umidade se chocaram então com frentes frias vindas do sul.
As frentes frias normalmente viajam para o norte sem dificuldade, mas desta vez, explica Paulo Brack, professor do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, elas encontraram uma obstrução e pararam. “O bloqueio atmosférico, chamado de cúpula de calor, estava relacionado ao desmatamento e à falta de vegetação [no centro do Brasil]. Isso bloqueou as chuvas, impedindo-as de viajar para outros estados.”
Marcelo Seluchi, do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), completa a história: “Sem ter para onde ir”, disse à Mongabay, “as chuvas acabaram caindo caoticamente no Rio Grande do Sul, com precipitação de 420 milímetros entre 24 de abril e 4 de maio”.
Em Valência, as inundações foram atribuídas a um “sistema de tempestades de baixa pressão”, quando ventos frios de outono desceram do norte da Europa e colidiram com uma massa de ar e umidade fortemente aquecida sobre o Mar Mediterrâneo. O resultado foi uma tempestade repentina, levando a região a atingir o nível de precipitação previsto para um ano (445,5 mm) em apenas um dia.
Cientistas reconhecem que as mudanças no uso da terra podem tornar esses eventos meteorológicos extremos.
No Rio Grande do Sul, há uma estimativa de perda de cerca de 3,5 milhões de hectares de vegetação nativa, aproximadamente 22% da cobertura total do estado, entre 1985 e 2022. Grande parte da floresta desmatada foi substituída por fazendas de soja, com a safra agora sendo a principal exportação agrícola do Brasil.
Eduardo Vélez, pesquisador do MapBiomas, que usa imagens de satélite para rastrear mudanças no uso do solo, disse à BBC News Brasil que um terço dessa conversão ocorreu na Bacia do Rio Guaíba, onde a cidade de Porto Alegre está localizada. Pesquisadores sugerem que, se a vegetação ao longo das margens do Guaíba tivesse sido preservada, os níveis de água teriam sido até 1,5 metro mais baixos, limitando a escala do desastre ocorrido em Porto Alegre.
As mudanças no uso da terra também exacerbaram as inundações em Valência. Hossein Bonakdari, professor do curso de Engenharia Civil da Universidade de Ottawa, Canadá, comenta: “O rápido desenvolvimento urbano (…) contribuiu significativamente para a gravidade das inundações, aumentando as superfícies impermeáveis, como estradas e edifícios, que impedem que a água seja absorvida pelo solo. Nas áreas rurais, práticas como a compactação do solo devido à expansão agrícola e ao desmatamento reduziram a capacidade da paisagem de reter naturalmente a água, causando um escoamento rápido que intensifica as inundações a jusante”.
A maioria dos cientistas hoje concorda que, embora essas mudanças no uso da terra desempenhem um papel nas inundações, o aumento das emissões de carbono é o fator causal mais importante.
“Sem dúvida, essas chuvas explosivas foram intensificadas pelas mudanças climáticas”, afirmou Friederike Otto, do World Weather Attribution do Centre for Environmental Policy, Imperial College London, à Euronews. Ela acrescenta: “A cada fração de grau de aquecimento dos combustíveis fósseis, a atmosfera pode reter mais umidade, levando a rajadas mais pesadas de chuva. Essas inundações mortais são mais um lembrete de como as mudanças climáticas já se tornaram perigosas com um aquecimento de apenas 1,3°C [desde os tempos pré-industriais]”.
Linda Speight, professora da Escola de Geografia e Meio Ambiente da Universidade de Oxford, concordou em entrevista à Euronews: “Infelizmente, essas [tempestades violentas] já não são eventos raros. As mudanças climáticas estão mudando a estrutura de nossos sistemas climáticos, criando condições em que tempestades intensas param em uma região, ocasionando chuvas recordes — um padrão que estamos vendo repetidas vezes.”
Contudo, outros cientistas sugerem que, embora o foco no aumento das emissões seja válido, ele dá a falsa impressão de que a mudança climática pode ser combatida apenas com a redução das emissões de CO₂, o que, segundo eles, esconde outra impressão digital de intensificação do clima extremo.
Millán Millán, cientista espanhol, passou a maior parte de sua vida alertando que ignorar essa verdade hidrológica ameaçaria a própria sobrevivência da humanidade. Antes de morrer em 2024, aos 83 anos, ele temia que poucos tivessem escutado, lamentando: “Falhei com todos nós”.
Quando Millán se formou como cientista na década de 1960, havia um amplo consenso de que a vegetação, o solo e a água desempenhavam papéis cruciais na regulação do clima global, moderando o clima.
De fato, os cientistas acreditaram nisso por séculos. O filósofo grego Teofrasto, há mais de 2 mil anos, demonstrou que, quando as florestas eram desmatadas, o clima mudava: “A maior parte do distrito secava e se transformava em área cultivável”, escreveu ele. “[A] derrubada das florestas revelava a terra, expondo-a ao sol e provocando um clima mais quente.”
Em 1800, o explorador Alexander von Humboldt escreveu sobre a devastação devido ao desmatamento na Venezuela: “Quando as florestas são destruídas, como foi feito em toda a América pelos colonos europeus, de forma obscena, as nascentes secam completamente ou se tornam menos abundantes. Os leitos dos rios, permanecendo secos durante uma parte do ano, são convertidos em torrentes de água sempre que grandes chuvas caem nas regiões mais altas”.
No Brasil, alguns cientistas simpatizam com as visões holísticas de Millán, destacando a urgência existencial da conservação florestal em toda a paisagem — ideias malvistas entre os formuladores de políticas que desejam promover o crescimento econômico.
Um desses cientistas, hoje aposentado, é Antonio Donato Nobre, que trabalhou no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Ele argumentou que há “uma profunda conexão entre o desmatamento na Amazônia e a intensificação de eventos climáticos extremos no Brasil, como as inundações catastróficas no Rio Grande do Sul e as secas prolongadas no Pantanal e em outros lugares”.
Como Millán, ele vê secas e dilúvios como “gêmeos terríveis”, criados neste caso pelo desmatamento da Amazônia e pelo aumento das temperaturas globais.
Nobre destaca o papel da floresta tropical não apenas na garantia do clima tradicionalmente benigno do Brasil, mas na regulação do clima da Terra. A floresta tropical, explica, atua como um poderoso “ar condicionado” natural através do processo de evapotranspiração e está associada a uma bomba biótica que impulsiona ventos úmidos para o interior. As árvores, particularmente em ecossistemas florestais densos, não apenas resfriam o ar na superfície da Terra mas também liberam umidade, que sobe para a atmosfera, formando nuvens que refletem o calor e provocam chuvas.
As inundações de 2024 em Porto Alegre e Valência recuaram. No Rio Grande do Sul, crescem as preocupações com os indícios de uma nova ameaça: a seca, a outra gêmea terrível.
Em Valência, o esforço de recuperação continua; não menos importante, entre as exigências assustadoras, está a necessidade de encontrar um local de descanso final para os 100 mil carros destruídos durante as chuvas. As pessoas temem a chegada de um verão quente, com temperaturas chegando a 40° C e as chuvas regulares de verão, agora uma memória desbotada. As pessoas também temem uma próxima inundação.
Há caminhos a seguir, embora o espaço para a recuperação diminua a cada ano que a crise continua sem controle.
Ao buscar esperança, Millán voltou o olhar para os canais de irrigação que ele e seu pai costumavam pular durante as caminhadas regulares em direção à Serra Nevada. Esses canais, chamados acéquias, foram construídos pelos mouros entre os séculos 8 e 9, um dos muitos legados árabes deixados na Espanha. “As acéquias eram redes de armazenamento naturais e artificiais criadas em terras secas para que o pouco escoamento de água que havia pudesse ser capturado para beber ou para outros fins”, explicou Millán. Ele as via como uma das muitas práticas ambientais tradicionais com as quais o mundo moderno poderia aprender. Tais práticas são universais, com amunas no Chile e eris na Índia servindo a propósitos semelhantes, para citar apenas mais dois exemplos.
Willem Ferwerda, fundador da iniciativa Commonland, à Mongabay: “Embora as previsões de Millán estejam agora se tornando realidade no clima extremo que estamos vendo no Mar Mediterrâneo, não é tarde demais para parar o ciclo vicioso da degradação da natureza e do desastre climático. A recuperação integrada da terra pode restaurar a função ecológica de paisagens degradadas, tornando a agricultura mais regenerativa, renovando florestas e zonas úmidas para reconstruir os ciclos naturais da água e estabilizar os climas regionais. No entanto, resolver o problema levará tempo. Este é um compromisso de longo prazo.”
Nobre também encontra esperança no poder regenerativo da natureza. Ele abraça a “tecnologia milagrosa” das sementes, que encapsulam milhões de anos de inteligência evolutiva, permitindo que os ecossistemas se auto-reparem, mas apenas se tiverem chance.
O que precisa ser mudado acima de tudo é a maneira como vemos o mundo natural, particularmente a água. O escritor e poeta Rob Lewis esteve regularmente em contato com Millán antes deste morrer em janeiro de 2024 em Valência, a cidade que nove meses depois enfrentaria a catastrófica inundação. Lewis resumiu os pensamentos de Millán sobre a água:
“Os seres humanos são 60% água, aves [aproximadamente] 75%, peixes de 70% a 84%. Um gato típico tem 67%, enquanto [as partes em crescimento ativo das árvores, de] 80% a 90%. A quantidade de água que uma paisagem pode conter é, portanto, proporcional à quantidade de vida na paisagem e no solo. Quanto mais vida em uma paisagem, mais água ela pode ‘extrair’ dos fluxos oceânicos. É um círculo de auto-amplificação: água, através da vida, gerando mais água, gerando ainda mais vida, coletando ainda mais água, e assim por diante. O resultado seria o aumento do resfriamento climático e a moderação dos ciclos naturais.”
Mas o inverso é verdadeiro: corte as florestas e drene as áreas alagadas, e você seca a terra até que ela fique sem vida e perca sua capacidade de moderar o clima. É a trágica história da civilização e do nosso tempo.