29 Abril 2025
"As violências às quais o segmento LGBTQIAPN+ está submetido são amparadas por fontes diversas: a compreensão cristã tradicional sobre gênero e orientação afetiva; o sentimento de nojo automático incutido culturalmente contra tudo o que é considerado anomalia ou imoralidade; os interesses políticos traduzidos em votos a partir do campo majoritário; a maldade humana inerente que torna mais fácil a agressão verbal, moral, social e física contra grupos minoritários", escreve Eduardo Ribeiro Mundim, médico endocrinologista formado em 1986, especialista em 1990.
A partir de 2017 iniciou o acompanhamento de pessoas transgêneres através do SUS em Belo Horizonte (Hospital Eduardo de Menezes / FHEMIG) e também na clínica privada.
Protestante por criação e opção consciente, presbítero discente da Igreja Presbiteriana Unida, Mundim procura articular a fé cristã com as questões de gênero e de afetividade. A articulação se tornou e permanece necessária pelo contato profissional com mais de 900 pessoas trans de 2017 até o presente. Fruto deste trabalho foi o livro "Transgêneros e fé cristã", publicado em 2021, já esgotado.
Há várias possibilidades para definir fundamentalismo religioso. Este fenômeno é, provavelmente, universal. Haverá alguma expressão de fé em que ele não esteja presente? Cada uma terá sua história. A do campo cristão evangélico se inicia nos fins do século XIX, como reação à chamada alta crítica: a compreensão não lastreada na tradição sobre a redação das Escrituras. Mas não somente neste ponto teológico. A teoria da evolução, uma ameaça da ciência à fé; o socialismo, uma ameaça da política a uma forma da sociedade tida como plenamente adequada; o secularismo, o fim do modo único de pensar a sociedade, abrindo as portas para novas possibilidades éticas, onde o sagrado não conta.
O que não aparece em destaque é o ambiente político e ideológico do início do século XX. As grandes potências europeias assumem o status de colonizadoras - disfarçadas de civilizadoras, de luzes para os continentes não iluminados como a Europa era. Iluminados tanto pela fé cristã majoritariamente cultural quanto pela sua oposição, as consequências do Iluminismo. Tal tarefa (qual a diferença da colonização ibérica que levava a cruz de Cristo nas suas naus?), era apoiada pela força militar superior, propiciada por uma ciência que evoluir geometricamente. Violência política-cultural e fundamentalismo se relacionam no berço como gêmeas siamesas.
O movimento fundamentalista nasce do medo. E se minha crença não for tão sólida como sempre pensei? E se minhas justificativas éticas forem consideradas tolas pela maior parte das pessoas? E se for possível ser feliz através de uma vida pautada por outros valores? Curiosamente (seria este o termo correto?) ele teme a Divindade. Contrariando a mensagem de que Ela amou o mundo de tal maneira teme a Sua ira se por um acaso suas falhas criaturas humanas Lhe virarem as costas.
Por razões que merecem posteriores reflexões, a cristandade saiu do Abba de Jesus para o terror de Isaque. O Primeiro, um Deus amoroso que busca suas criaturas não importa onde e como estejam, as acalenta no colo para consolá-las e levá-las até onde conseguem ir. O Segundo, um Deus que demanda sacrifícios sem justificativas porque Lhe interessa, em primeiro lugar, Sua glória, compreendida como a anulação do desejo de suas criaturas e o cumprimento de Sua insondável e soberana vontade, que ignora toda individualidade e sonhos da humanidade.
Para as potências europeias, e a nascente norte-americana, uma fé lastreada na força da vontade inquestionável superior era mais conveniente. O progresso tecnológico é admissível desde que não interfira na ideologia que sustenta a submissão de culturas e sociedades mais fracas, nem faça perguntas teológicas que extrapolem os já dois mil anos de fé cristã. Dois reinos separados e que não se relacionam. E como ciência e fé são ideologicamente formatadas, haverá justificativa nestes dois campos.
As pessoas intersexo demolem a noção de que gênero e genitália são interdependentes. Mas basta desenhar a genitália inesperada como doença para restaurar a articulação que nem biologia, nem genética, nem sociologia sustentam. Teologicamente são pessoas fruto de uma sociedade pecaminosa, que justifica sua anomalia. O divórcio entre fé e vida permite isso. O fundamentalismo não trabalha em uma fé encarnada, mas em livros de teologia sistemática (e só quem os domina é que pode abrir as Escrituras para reafirmar o que eles dizem). Fosse uma fé que respondesse às questões vitais das pessoas não seria monolítica, não estaria a serviço das potências dominadoras, sejam políticas, bélicas, culturais ou religiosas.
As pessoas homoafetivas, incluindo as biafetivas, têm uma condenação teológica explícita da compreensão dos textos paulinos a partir da teologia sistemática (aquela que protege as pessoas fiéis e as distingue das heréticas, condenadas ao fogo eterno). Como a homofobia institucionalizada incute desde cedo a repugnância à manifestação de amor entre gêneros idênticos, a moral tradicional alia-se a uma teologia nascida do nojo para condenar toda expressão de devoção mútua intensa que não seja entre pessoas de gêneros diferentes.
Às pessoas transgêneres não é permitida a possibilidade de questionar como as categorias de gênero são determinadas pela sociedade. A leitura bíblica fundamentalista usa uma aproximação do texto literal, escamoteando as óbvias incongruências que esta escolha implica. E ela rejeita qualquer contribuição que venha de outros saberes (história, sociologia, arqueologia, ciências literárias , medicina, etc.), exceto se for para corroborar o que já dispôs.
Nos nossos dias a aliança entre fundamentalismo religioso, ignorância científica, força militar e poderio econômico está exposta aos olhos de todas as pessoas que usam a faculdade da visão. Mas nada de novo, porque esta associação sempre existiu. Instrumentos de morte se sustentam mutuamente, e dependem da existência mútua. Tendo estas reflexões como fundo, faz sentido a definição de fundamentalismo de Zenon Lotufo, em “Cruel God, Kind God”: visão que crê que Deu atue de forma cruel em relação às pessoas, e não de forma completamente amorosa.
As violências às quais o segmento LGBTQIAPN+ está submetido são amparadas por fontes diversas: a compreensão cristã tradicional sobre gênero e orientação afetiva; o sentimento de nojo automático incutido culturalmente contra tudo o que é considerado anomalia ou imoralidade; os interesses políticos traduzidos em votos a partir do campo majoritário; a maldade humana inerente que torna mais fácil a agressão verbal, moral, social e física contra grupos minoritários.
Desarmar este mecanismo de morte implica em esforços múltiplos, aparentemente destinados ao fracasso. Teria razão o padre Júlio Lanceloti quando diz que sabe que vai perder a guerra?
Mas vai lutar assim mesmo…