08 Outubro 2014
"Essa amálgama religioso-política deu origem à arrogância e ao unilateralismo nas relações internacionais da política externa norte-americana que perdura também sob Barack Obama", escreve Leonardo Boff, teólogo e escritor em artigo.
Eis o artigo.
Tudo o que é sadio pode ficar doente. A religião, ao contrário do que dizem seus críticos como Freud, Marx, Dawkins e outros se inscrevem dentro de uma realidade sadia: a busca do ser humano pela Última Realidade que confere um sentido derradeiro à história e ao universo.
Essa busca é legítima e se encontra atestada nas mais antigas expressões do homo sapiens. Mas ela pode conhecer expressões doentias. Uma delas, hoje a mais frequente, são os fundamentalismos religiosos. Mas ele se manifesta também onde reina o pensamento único em política.
O fundamentalismo não é uma doutrina em si, mas uma atitude e uma forma de entender e de viver a doutrina. A atitude fundamentalista surge quando a verdade de sua igreja ou de seu grupo é entendida como a única legítima com a exclusão de todas outras, tidas como errôneas e por isso destituídas do direito de existir. Quem imagina ser seu ponto de vista o único válido está condenado a ser intolerante. Esta atitude fechada leva ao desprezo, à discriminação e à violência religiosa ou política.
O nicho do fundamentalismo se encontra, historicamente no protestantismo norte-americano no final do século XIX quando irrompeu a modernidade não apenas tecnológica, mas também nas formas democráticas de convivência política e na liberalização dos costumes. Neste contexto surgiu forte reação por parte da tradição protestante, fiel aos ideais dos “pais fundadores”, todos vindos do rigorismo da ética protestante. O termo fundamentalismo se prende a uma coleção de livros publicados pela Universidade de Princeton pelos presbiterianos que levava como título Fundamentals. A Testimony of Truth (1909-1915: “Os fundamentos, o testemunho da verdade”).
Nesta coleção se propunha um antídoto à modernização: um cristianismo rigoroso, dogmático, fundado numa leitura literalista da Bíblia, considerada infalível e inerente em cada uma de suas palavras, por ser considerada Palavra de Deus. Opunham-se a toda interpretação exegético-crítica da Bíblia e da atualização de sua mensagem para os contextos atuais.
Esta tendência fundamentalista, desde então, sempre esteve presente na sociedade e na política norte-americana. Ganhou expressão religiosa nas chamadas “electronic Churches”, aquelas igrejas que se valem dos modernos meios televisivos de comunicação que cobrem o país de costa a costa e que tem similares no Brasil e na América Latina. Eles combatem os cristãos liberais, os que praticam uma interpretação científica da Bíblia e aceitam os movimentos modernos das feministas, dos homo afetivos dos que defendem a descriminalização do aborto. Tudo isso é interpretado por eles como obra de Satanás.
A vertente política assimilou a religiosa, unindo-a à ideologia política do “destino manifesto”, criada após a incorporação de territórios do México por parte dos EUA segundo a qual os norte-americanos têm o destino divino de levar o esclarecimento, os valores da propriedade privada, do livre mercado, da democracia e dos direitos a todos os povos como o afirmou o segundo presidente dos Estados Unidos, John Adams. Como rezava a versão popular e política, os americanos são “o novo povo escolhido” que vai levar a todos à “Terra de Emanuel, sede daquele Reino novo e singular, que será concedido aos Santos do Altíssimo” (K. Amstrong, Em nome de Deus, Companhia das Letras, São Paulo 2001).
Essa amálgama religioso-política deu origem à arrogância e ao unilateralismo nas relações internacionais da política externa norte-americana que perdura também sob Barack Obama.
Tipo semelhante de fundamentalismo encontraram em grupos católicos extremamente conservadores que ainda sustentam que “fora da Igreja não há salvação”. Afanam-se em converter pessoas o mais que podem para liberá-las do inferno. Em grupos evangélicos, especialmente, em setores das igrejas carismáticas com seus programas de TV revelam discursos fundamentalistas, particularmente face às religiões afro-brasileiras, pois consideram suas celebrações como obras de Satanás. Dai os frequentes exorcismos e até invasão de terreiros para “purificá-los” do Exu.
O fundamentalismo mais visível tanto em grupos católicos quanto o em grupos evangélicos se mostra nas questões morais: são inflexíveis face aos problemas do aborto, às uniões dos homo afetivos, ao empenho das mulheres por sua liberdade de decisão. Movem verdadeiras guerras ideológicas pelas redes sociais e meios de comunicação a todos aqueles que discutem tais questões, embora pertençam à agenda de todas as sociedades abertas.
Infelizmente temos uma candidata à presidência da República, Marina Silva, que manifesta um tipo de fundamentalismo que é o biblicismo. Faz uma leitura literalista da Bíblia, como se nela se encontrasse a solução para todos os problemas. Como disse bem o Papa Francisco, a Bíblia antes de ser um repositório de verdades é uma fonte inspiradora para as iniciativas humanas benfazejas. Ela deve ser posta atrás da cabeça para iluminar a realidade e não diante dos olhos, escondendo assim a realidade.
O Estado brasileiro é laico e pluralista. Acolhe todas as religiões sem aderir a nenhuma. Pela constituição não é lícito que uma determinada religião imponha a toda a nação seus pontos de vista. Uma autoridade pode ter suas convicções religiosas, mas não é por elas, mas pelas leis e pelo espírito democrático que deve governar. Existem quatro evangelhos e não um só. E todos eles convivem entre si na diversidade das interpretações que dão da mensagem de Jesus. É um exemplo da riqueza da diversidade. O próprio Deus é a convivência eterna de Três Divinas Pessoas que pelo amor forma um só Deus. Fecunda é a diversidade.
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A doença do fundamentalismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU