Vozes de Emaús: desafios e perspectivas das teologias pluralistas da libertação. Artigo de Marcelo Barros

Arte: Laurem Palma | IHU

26 Abril 2025

"Cada vez mais as teologias da libertação se percebem como teologias contextuais. 'São teologias indígenas, negras, feministas, queers e ecocósmicas que, embora todas tenham um DNA de diálogo e de compromisso libertador, precisam se colocar nesse mutirão de teologias pluralistas da libertação', tanto em seu método, quanto em seu conteúdo".

O artigo é de Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e escritor. Assessora movimentos sociais e comunidades eclesiais de base e é membro da Comissão Teológica da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo.


Marcelo Barros (Foto: Arquivo pessoal)

O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui

Eis o artigo. 

No início deste século, a Comissão Teológica da Associação Ecumênica do Terceiro Mundo (ASETT) organizou a publicação de cinco volumes, cuja finalidade era o diálogo entre a Teologia da Libertação e a Teologia do Pluralismo Cultural e Religioso [1]. Esses livros divulgaram no nosso mundo teológico esse desafio. No entanto, puderam apenas formular a possibilidade de tal empreendimento e vislumbrar em que rumo se poderia caminhar. Traçaram um mapa do itinerário, mas não puderam percorrê-lo. As Teologias Pluralistas da Libertação só podem ser desenvolvidas a partir da práxis concreta. Ora, a experiência de uma ação inter-religiosa e interespiritual aberta ao Pluralismo cultural e religioso precisa ser sedimentada, o que exige tempo e algum amadurecimento de convivência.

Cada vez mais as teologias da libertação se percebem como teologias contextuais. “São teologias indígenas, negras, feministas, queers e ecocósmicas que, embora todas tenham um DNA de diálogo e de compromisso libertador, precisam se colocar nesse mutirão de teologias pluralistas da libertação”, tanto em seu método, quanto em seu conteúdo.

Não basta que o pessoal que trabalha com indígenas ou comunidades negras diga: não nos interessa se alguém é do candomblé, ou umbandista, ou pentecostal, pois se trabalhar pela libertação, está conosco. Essa postura separa fé e vida e desrespeita culturas que nunca separam espiritualidade e compromisso social. Ao contrário, interessa à causa da libertação a pertença espiritual de todas as pessoas. Como, desde os seus inícios, percebeu o MST, o mergulho mais profundo no compromisso solidário precisa de uma Mística e esta vem, em primeiro lugar, da história e da pertença religiosa das pessoas. Por isso, é urgente articular espiritualidades e teologias que aceitem entrar na caminhada libertadora. É tarefa de uma teologia pluralista da libertação aprofundar o que cada expressão de fé e de espiritualidade pode trazer à caminhada libertadora e, ao mesmo tempo, em que a caminhada libertadora pode contribuir para a espiritualidade e a autocompreensão teológica de cada pertença religiosa. São Teologias Pluralistas - no plural -, porque de fato, além das teologias cristãs, irmãos e irmãs da umbanda, do candomblé e de tradições indígenas nos oferecem elementos importantes para as nossas Teologias Pluralistas da Libertação.

O primeiro desafio para essa construção é como articular teologias que, por serem contextuais, são muito diversas com a proposta da síntese e da unidade entre elas. Em um capítulo do seu livro “No limiar do Mistério”, Faustino Teixeira se refere a essa dificuldade no campo da Mística e conclui com a proposta de encontrar unidade e semelhanças, mesmo em meio a todas as diferenças [2]. Outro desafio é que diante de um mundo em contínua mudança e com a crise estrutural em que, por vários motivos, as religiões se encontram, a tendência é cada uma se fechar em si mesma. Assim, veem crescer em seu seio movimentos fundamentalistas que tornam mais difícil a abertura ao Pluralismo cultural e religioso.

Para as pessoas abertas a trilhar esse caminho - quase como quem navega contra a corrente -, a partir do que Homi Bhabha denomina de “entrelugar” de cultura. Cláudio de Oliveira Ribeiro propõe o “Princípio Pluralista”, como instrumento hermenêutico de mediação teológica e analítica da realidade sociocultural e religiosa e como critério hermenêutico a ser usado na teologia e na espiritualidade [3].

Por todas as regiões desse Brasil, as pessoas ligadas a tradições espirituais afrodescendentes e aos diversos tipos de xamanismo indígena sempre souberam conviver com as religiões da sociedade dominante, principalmente o catolicismo. Na imensa maioria dos casos, as pessoas não se sentem de duas religiões. São católicas como candomblecistas ou evangélicas como umbandistas. Há décadas, foi essa a experiência do amigo teólogo Raimon Panikkar que afirmava ter, em sua vida, partido como cristão, ter se descoberto hinduísta e isso o fez sentir-se ainda mais cristão. Para o desafio do diálogo inter-religioso e interespiritual, ele propunha que se aprofundasse “o diálogo intrarreligioso”, ou seja, o diálogo, no qual dialogam dentro de cada pessoa as espiritualidades que a habitam [4].

Já há anos, teólogos como Leonardo Boff, Afonso Soares [5] e outros formularam argumentos que derrubam velhos preconceitos sobre o que se denominava sincretismo. Leonardo distingue vários tipos de sincretismo: o de adição, quando alguém frequenta cultos diferentes, sem fazer síntese; o sincretismo de acomodação, quando uma religião de dominados se adapta à religião dos dominadores. Há ainda o sincretismo de mistura, o de concordismo e há o de tradução e refundição [6].

As comunidades de terreiro sempre fizeram conviver os seus cultos com danças como maracatu, congo, jongo e outras. Na espiritualidade negra e indígena nordestina, as casas de umbanda praticam a jurema e começam pela reza do terço. Os templos do santo Daime unem o caboclo Juramidan a Jesus Cristo e dialogam com a cultura kardecista e o catolicismo Popular. Em 2025, no desfile das escolas de samba no Rio de Janeiro e em outras cidades, orixás e inquices se juntaram ao Malunguinho e vieram brincar com seus filhos e filhas no carnaval da vida.

A primeira disciplina para quem desejar aprofundar Teologias Pluralistas da Libertação será o olhar amoroso e o desejo de aprender com as espiritualidades negras e as experiências do xamanismo, seja o tradicional, seja o neoxamanismo urbano.

Em alguns contextos, mesmo sem essa formulação, os diversos grupos de defesa da liberdade religiosa parecem se constituir como um mutirão de pessoas de diversas tradições espirituais para salvar o planeta e apontar caminhos de salvação para a humanidade. No fundo, é como se a realidade atual fosse complexa demais para ser respondida ou atendida por uma única tradição religiosa. Os desafios para reencontrar o que os povos andinos chamam de “bem-viver” e “bem conviver” da humanidade se tornaram tão difíceis que temos de unir a sabedoria espiritual de diversas tradições e, quanto mais numerosas, melhor.

A dimensão transreligiosa da espiritualidade não é algo que vem se somar à substância ou ao estrato fundamental da fé. Para cristãos e cristãs, ela é dimensão constitutiva de uma fé que nos leva a testemunhar a presença divina no outro. Ela é crística, isso é, revive o modo de ser de Jesus, retoma a abertura de Jesus com pessoas de outras culturas e religiões.

O rabino norte-americano Abraham Heschel, um dos maiores pensadores judaicos do século XX, expressa esta realidade quando escreve: "É o sentido do sublime que devemos considerar como a raiz das atividades criativas do ser humano nas artes, no pensamento e na nobreza da vida. A tentativa de comunicar o que vemos e não conseguimos dizer é o eterno tema da sinfonia inacabada da humanidade. Uma pessoa sensível sabe que o intrínseco, o mais essencial, nunca é expresso" [7].

Notas

[1] VIGIL, José Maria, TOMITA, Luiza e BARROS, Marcelo, Pelos muitos caminhos de Deus, Goiás (Rede da Paz, 2002); Espiritualidade e pluralismo (Loyola, 2003); Pluralismo e libertação, teologia latino-americana pluralista da libertação (Paulinas, 2005); Teologia pluralista libertadora intercontinental (Paulinas, 2007); Para uma teologia planetária (Paulinas, 2009). Em espanhol, os cinco volumes foram publicados sob o mesmo nome: Por los muchos caminhos de Dios, Abya Yala, Quito.

[2] TEIXEIRA, Faustino (org.). No limiar do Mistério. Mística e Religião. São Paulo: Paulinas, 2004.

[3] RIBEIRO, Claudio de Oliveira. O princípio pluralista. São Paulo: Loyola, 2020.

[4] PANIKKAR, Raimon. Il dialogo intrareligioso, Assisi: Cittadella, 1988, p. 60.

[5] SOARES, Afonso M. L. Interfaces da revelação: pressupostos para uma teologia do sincretismo religioso no brasil. São Paulo: Paulus, 2003.

[6] BOFF, Leonardo. Igreja, carisma e poder. Petrópolis: Vozes, 1981. A mais recente reedição 2022, p. 179-180.

[7] HESCHEL, Abraham. O homem não está só, São Paulo, Paulinas, 1974, p. 16.

Leia mais