12 Abril 2025
A lei de terras adotada no dia 24 de janeiro pela África do Sul atraiu a ira de Donald Trump, que acusa o país de “discriminação racial” contra a minoria branca. Entretanto, para entender as questões que envolvem o texto, precisamos retornar à história, marcada pela contínua expropriação de terras pelos colonos brancos. A cientista política Marianne Séverin descreve os principais capítulos de uma longuíssima luta.
A entrevista é de Nathalie Prévost, publicada por Afrique XXI, 28-03-2025. A tradução é do Cepat.
Revisão dos acordos comerciais, corte da ajuda dos EUA, boicote à presidência sul-africana do G20 e proposta de acolher os agricultores africâneres que desejam emigrar para os Estados Unidos: Donald Trump tem se esforçado nas últimas semanas para castigar a África do Sul após a adoção de uma nova lei de terras [1] “para promover a inclusão e o acesso aos recursos naturais” que permite, em nome do interesse geral, as desapropriações de terras abandonadas sem compensação financeira.
Talvez essa raiva, real ou fingida, deva ser vista como influência de Elon Musk e Peter Thiel, dois chefões iliberais muito próximos do presidente dos EUA, que cresceram nos regimes de apartheid da África do Sul e da Namíbia, respectivamente. Ou o resultado de um intenso lobby de um movimento africâner revanchista, muito ativo na Europa e nos Estados Unidos, que invoca o chamado “apartheid reverso”. Ou ainda um pretexto para sancionar as escolhas políticas internacionais.
Mas, além dos excessos dos EUA, fruto de uma “campanha de desinformação e propaganda” denunciada em 8 de fevereiro por um comunicado de imprensa do Ministério das Relações Exteriores da África do Sul, a nova lei de terras em vigor é bastante criticada na África do Sul por sua timidez e sua incapacidade de redesenhar profundamente a geografia herdada do apartheid. A reparação das injustiças fundiárias, que sempre esteve no centro da luta contra o regime de segregação racial, é, de fato, muito difícil.
Pesquisadora associada do laboratório científico Les Afriques dans le monde (LAM), em Bordeaux, França, Marianne Séverin é especialista no contexto político sul-africano. Ela é autora de uma tese [2] sobre as redes do Congresso Nacional Africano (CNA).
Você pode nos falar sobre a história da política fundiária da África do Sul, especialmente as Leis de Terras Nativas de 1913 e 1936, que limitaram as terras de africanos não brancos a apenas 8% e depois 13% do território da África do Sul?
Temos que voltar para antes do apartheid, ao fim do período colonial e à rivalidade entre os descendentes dos primeiros colonos holandeses e britânicos. A Segunda Guerra Anglo-Boer, de 1899 a 1902, terminou favorável aos britânicos, com um tratado de paz que expressa o desejo de reconciliar a população branca e fortalecer seu controle político e econômico sobre o país, naturalmente em detrimento da maioria africana da população. Era uma forma de proteger as conquistas sociais dos africâneres e, ao mesmo tempo, de dispor de uma mão de obra barata para atender à expansão mineradora e industrial do país após a descoberta, entre meados e final do século XIX, das minas de ouro e de diamante.
A União Sul-Africana foi criada em 31 de maio de 1910. Ela selou a união das duas comunidades brancas, às quais alocou mais de 90% das terras, graças às primeiras leis discriminatórias que aprovou quase imediatamente, incluindo a Lei de Terras Nativas de 1913.
Expulsos de suas terras e confinados em reservas, os camponeses africanos tornaram-se uma mão de obra forçada para os fazendeiros brancos?
Sim. Eles se tornam trabalhadores rurais, mineiros, e as mulheres, empregadas domésticas, as maids. Na verdade, uma força de trabalho a serviço da população branca. Privados de terra, eles não têm outra escolha! Além disso, a grilagem de terras pelos africâneres eliminou a concorrência dos camponeses negros.
O objetivo da criação da África do Sul moderna era desenvolver os interesses agrícolas e comerciais dos brancos, particularmente dos africâneres. A lei de 1913 proibia os africanos de comprar ou vender terras fora das reservas [3] onde estavam confinados. Obviamente, isso coloca muitos problemas para os africanos, com impactos na sua vida cotidiana. Alguns, por exemplo, não têm acesso aos túmulos de familiares enterrados em terras que agora pertencem a brancos.
O Congresso Nacional Africano – CNA nasceu na mesma época, em 1912. É chamado de “CNA dos pais fundadores”. Quando os reinos Bantu foram derrotados pelos colonos, os negros instruídos entenderam a necessidade de se organizar para exigir uma nação africana grande na África do Sul e denunciar as leis raciais. A terra foi sua primeira batalha. O CNA pode ser criticado por muitas coisas, mas a redistribuição de terras sempre foi sua luta.
Quais foram os próximos passos que o apartheid trouxe?
Em 1949, o regime do apartheid chegou ao poder e, em 1950, adotou uma série de leis para garantir a pureza racial, a separação física das populações, a dominação política e o controle populacional. No mesmo ano, uma lei determinou as áreas geográficas em que os sul-africanos deveriam viver com base na cor da pele. Com essa lei, africanos, mestiços e indígenas são expropriados em benefício dos brancos. A partir de 1950, se você fosse africano e vivesse em uma área que as autoridades consideravam branca, você era forçado a se mudar.
Naqueles anos foram aprovadas três leis importantes: em 1950, a de delimitação de zonas geográficas; em 1951, sobre a legislação discriminatória no campo, que limitava a capacidade e a vontade dos africanos de manter uma existência agrícola independente fora das reservas; e em 1954, a Lei dos Nativos, que restringiu o número de africanos em áreas urbanas: os africanos não podiam mais viver em centros urbanos considerados zonas brancas.
A Lei de Terras não diz respeito apenas às terras agrícolas. Ela gerencia todos os espaços, rurais e urbanos. E a cada grupo é atribuída uma proporção com base na cor da pele e na etnia. Após a criação dos bantustões nas décadas de 1960 e 1970, os negros sul-africanos perderam sua nacionalidade porque alguns bantustões se tornaram independentes. A partir de então, a África do Sul é considerada exclusivamente branca. Consequentemente, os não brancos perderam a liberdade de movimento: passam a necessitar de um pass para se locomover.
Após a queda do apartheid em 1994, foi aprovada uma lei sobre a restituição dos direitos à terra às pessoas desapropriadas de suas propriedades após 19 de junho de 1913. Essa lei também prevê a reforma da posse de terras nos antigos bantustões e uma redistribuição permitindo a aquisição de terras com o apoio de subsídios públicos. O que essa lei mudou?
Esta lei de 1994 não foi muito bem elaborada. Houve debates no CNA. Este último não é um partido político homogêneo. Existem diferentes correntes, algumas mais populistas e outras mais razoáveis, que acreditam que a África do Sul deve pertencer a todos. O exemplo do Zimbábue [4], que é constantemente repetido, também levou o CNA a permanecer muito cauteloso.
A redistribuição de terras não foi eficaz. Os brancos não queriam necessariamente vender e, quando vendiam, os preços eram altos. E quando os camponeses negros conseguiam adquirir essas terras, às vezes, por falta de experiência, não fizeram um bom trabalho. Também era muito difícil para aqueles que alegavam se beneficiar das disposições da Lei de Restituição de Terras provar sua desapropriação em 1913. E havia corrupção nos subsídios públicos destinados à aquisição de terras.
Atualmente, 72% das terras agrícolas ainda estão nas mãos de fazendeiros brancos (comparado a 87% após a lei de 1936). Você entende o desconforto quando ouvimos Donald Trump dizer que estamos expropriando os africâneres! Em suma, esta lei não produziu grandes efeitos. Houve muita conversa, mas pouca ação. E algumas das terras colocadas à venda nem sequer eram cultiváveis.
Qual era a opinião do CNA sobre essa questão?
A Freedom Charter (Carta da Liberdade), escrita em 1955 pelo CNA, é o cerne da Constituição Sul-Africana. Ela proclama o seguinte: “A terra será compartilhada entre aqueles que a trabalham! As restrições raciais à propriedade da terra devem ser removidas e todas as terras devem ser redistribuídas entre aqueles que as trabalham, a fim de banir a fome e a falta de terras. O Estado deve ajudar os agricultores fornecendo-lhes ferramentas, sementes, tratores e represas para preservar o solo e ajudar os agricultores; a liberdade de movimento é garantida a todos aqueles que trabalham a terra; todos têm o direito de ocupar a terra que escolherem; as pessoas não serão privadas de seus rebanhos; o trabalho forçado e as fazendas prisionais serão abolidos”.
A Constituição Sul-Africana de 1996 fala em seu preâmbulo da necessidade de reconhecer as injustiças do nosso passado (“recognize the injustices of our past”). Esse aspecto é muito importante. Às vezes fico surpreso com o que alguns sul-africanos brancos escrevem. Existe uma Constituição na África do Sul. Ela foi escrita, negociada e implementada. E a primeira coisa que lemos é: “Reconhecer as injustiças do nosso passado”. Alguns denunciam futuras expropriações. Na realidade, é uma tentativa de reparar a história.
Quando você vê organizações da sociedade civil ligadas à extrema-direita dizendo não sei o quê, essas pessoas parecem estar ignorando sua própria Constituição. Elas fazem isso porque, em seu subconsciente, a África do Sul ainda pertence à minoria branca. Não se pode pedir aos sul-africanos que esqueçam essa história só porque o apartheid acabou. Sim, o apartheid acabou, mas o verdadeiro câncer deste país é a questão fundiária, que remonta a mais de cem anos. O desafio é redistribuir a terra e, ao mesmo tempo, preservar a terra dos africâneres, que são cidadãos deste país há gerações e que garantem a segurança alimentar do país. Ninguém pediu aos africâneres que abandonassem suas terras. Além disso, nem todos os africanos querem trabalhar na agricultura.
Então, o que motivou a elaboração da nova lei e quais são seus objetivos?
O objetivo da Lei de 2025 é alinhar as leis da África do Sul sobre a expropriação com a Constituição do país, particularmente o artigo 25. Este artigo autoriza a expropriação no interesse público. O que se acrescentou à Lei de Terras de 1994 foi o interesse público. Essa lei ampliou a definição de propriedade para incluir bens móveis e imóveis. Isso significa que se você tem terras abandonadas e que não têm mais utilidade, o Estado pode expropriá-las para que voltem a ter utilidade. Temos o mesmo sistema na França! E se diz que a lei é rigorosa, prevê obrigações claras em termos de consultas e notificações aos proprietários das terras em questão, que têm o direito de fazer observações. As regras devem ser seguidas e existem mecanismos para resolver as disputas.
Qual era a necessidade desta lei?
De fato, quando se tem terras não vendidas e que não tem mais outro interesse senão a especulação, o Estado considera que essas terras podem ser utilizadas para projetos úteis para o bem de todos. É também uma forma de reparar injustiças. O debate sobre a terra é um debate que está apodrecendo a África do Sul e impedindo a reconciliação. Não há partilha de riquezas ou terras. E são sempre as mesmas pessoas que detêm o poder econômico em detrimento da maioria.
Como interpreta o improvisado ataque de Donald Trump?
A questão fundiária é um pretexto para Donald Trump. Ele fala de genocídio, de violações dos direitos humanos. Não estou dizendo que não há assassinatos de fazendeiros brancos, mas também há assassinatos de camponeses negros. A África do Sul é um dos países mais violentos do mundo. Alguns brancos, especialmente os africâneres, acreditam que na África do Sul não há lugar para negros, multirraciais ou inclusivos. Devemos traçar um paralelo entre o que está acontecendo nos Estados Unidos hoje e este ataque à África do Sul.
Nos Estados Unidos, estão tentando eliminar todo esse aspecto de solidariedade, de inclusão. Você tem, ao contrário, um país que está fazendo exatamente o contrário, o que não corresponde à visão de Trump. Nem estou falando de Elon Musk, que cresceu no contexto do apartheid com um pai notoriamente racista. Também vemos ligações com a extrema-direita estadunidense e a disseminação de informações falsas. Durante seu primeiro mandato, Donald Trump já havia falado sobre genocídio branco. Este senhor nunca pôs os pés neste país ou em qualquer outro lugar da África, ele não está interessado e se permite insultar todo mundo!
Outra fonte de descontentamento dos EUA é que a África do Sul faz parte dos países que não condenaram a Rússia pela guerra na Ucrânia. Os laços com a Rússia remontam à luta contra o apartheid.
Também não agrada o fato de a África do Sul fazer parte do BRICS. E, para piorar a situação, Pretória entrou com um processo no Tribunal Internacional de Justiça contra Israel. Os Estados Unidos pediram que ela recuasse; mas se recusou a ceder. Mesmo sob o governo Biden, houve um incidente diplomático entre os dois países. Poucas pessoas sabem, mas a Palestina contribuiu para a luta antiapartheid. Em 1994, na posse de Nelson Mandela, Yasser Arafat foi convidado. Isso causou comoção, mas Nelson Mandela disse: “Os palestinos nos ajudaram”.
Em suma, se a África do Sul não se alinhar com os Estados Unidos ou o Ocidente em relação a Israel e suas ações na Faixa de Gaza, será punida.
Eles não são os únicos com um pé em cada lado!
Não, mas é muito mais fácil atacar este país! Tudo isto é também o resultado da agitação liderada por duas organizações da sociedade civil africâner [5] próximas dos círculos trumpistas. Depois recuaram quando Trump propôs dar status de refugiado aos africâneres. Tudo isso é baseado em notícias falsas! O ministro da Agricultura, John Henry Steenhuisen, disse: “No momento, não vejo nenhum agricultor [branco] que queira deixar a África do Sul”. Alguns pensaram: “Há problemas em nosso país, mas vivemos confortavelmente aqui. O que vamos fazer nos Estados Unidos enquanto os fazendeiros estadunidenses reclamam?”
Lembre-se do que o ex-presidente Thabo Mbeki disse sobre os Estados Unidos: “Eles não precisam nos dar sermão porque não nos apoiaram durante o apartheid”. A Constituição está escrita. A lei foi aprovada. Este país é uma verdadeira democracia, mesmo com problemas sociais e econômicos. Os Estados Unidos não têm o direito de interferir na política interna da África do Sul, ditando o que ela deve ou não fazer e punindo-a, ao suspender, por exemplo, o acordo econômico entre os Estados Unidos e a África do Sul [o African Growth and Opportunity Act, promulgado em 2000 por Washington, nota do editor]. A ironia da história é que a Europa, diante dos ataques de Trump, agora apoia Pretória. O futuro se anuncia convulsivo!
[1] Lei nº 13 sobre Desapropriação de 2024. O PDF está disponível aqui.
[2] Marianne Séverin, Les réseaux ANC (1910-2004) – Histoire de la constitution du leadership de la nouvelle Afrique, 2006.
[3] As reservas, que foram criadas a partir de 1850 durante as guerras dos Kaffirs (ou Xhosa), tornaram-se bantustões ou pátrias nas décadas de 1960 e 1970.
[4] Em maio de 2002 [o presidente do Zimbabué] Robert Mugabe ordenou a expulsão de 2.900 dos 4.500 proprietários de terras brancos do país, como parte de uma reforma agrária destinada a redistribuir parte dos 40% das terras agrícolas na antiga Rodésia que pertenciam a brancos, o que causou uma grande crise política e agrícola.
[5] O AfriForum, que visa proteger os direitos e interesses da comunidade africâner, e o movimento Solidariedade, que afirma que os africâneres são tratados como cidadãos de segunda classe.