Ditadura: Justiça mantém condenação ao Estado brasileiro por violações ao povo Krenak

Foto: A flecha e a farda/Migue Antunes Ramos/reprodução | Agência Pública

12 Abril 2025

Decisão foi celebrada no Acampamento Terra Livre como exemplo de reparação histórica para os povos indígenas

A reportagem é de Isabel Seta, publicada por Agência Pública, 09-04-2025.

Depois de décadas de impunidade por uma série de violações cometidas contra povos indígenas durante a ditadura militar, a Justiça brasileira deu mais um passo para que esses danos sejam, enfim, reparados. O Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6), com sede em Belo Horizonte, condenou, nesta terça-feira (8), o Estado brasileiro por danos coletivos contra os Krenak.

“É uma vitória muito significativa para o povo Krenak e, consequentemente, para todos os povos indígenas no Brasil”, disse a liderança Douglas Krenak à Pública logo após a decisão.

O regime militar expulsou os Krenak de suas terras, em Minas Gerais, o que acabou com o modo de vida tradicional e provocou a desestruturação social do povo. Também torturou e prendeu indígenas, além de obrigá-los a realizar trabalhos forçados.

A decisão em segunda instância manteve todas as condenações que já tinham sido definidas em primeira instância no julgamento de uma ação civil pública do Ministério Público Federal. Em 2021, a 14ª Vara Federal Regional de Minas Gerais determinou que a União, a Funai e o governo mineiro reconheçam as violações cometidas em uma cerimônia pública e façam um pedido público de desculpas ao povo Krenak – o que ainda não aconteceu.

Naquele ano, a Justiça também condenou a Funai e o Estado de Minas Gerais a realizarem ações para o registro e o ensino da língua Krenak. A Funai foi sentenciada, ainda, a concluir a identificação e delimitação da Terra Indígena Sete Salões em um prazo de seis meses. Essa etapa, no entanto, só foi realizada em 2023 – e ainda restam outras para que o território seja oficialmente demarcado, como a declaração pelo Ministério da Justiça.

Já a reparação ambiental das terras degradadas no território Krenak, também determinada à Funai, nem começou. Isso porque, na época da condenação em primeira instância, o governo Bolsonaro recorreu da decisão. O governo Lula manteve parte dos recursos, o que levou ao julgamento no TRF-6. Agora, com as condenações mantidas, resta saber se a Advocacia Geral da União voltará a recorrer da decisão.

No ano passado, em processo paralelo, a Comissão de Anistia, órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos que tem por objetivo reconhecer e reparar os danos causados pela ditadura militar, concedeu anistia coletiva aos Krenak, numa decisão histórica.

Traumas da ditadura

A história desse julgamento concluído nesta terça pelo TRF-6 tem início em 2015, quando o Ministério Público Federal entrou com uma ação civil pública, na qual expôs as violações cometidas contra os Krenak em três episódios produzidos pelo regime militar.

O primeiro deles foi a criação, em 1969, da Guarda Rural Indígena, um grupo militarizado formado por indígenas de diferentes povos, obrigados a realizar o policiamento ostensivo em seus próprios territórios, o que provocou vários conflitos entre indígenas de um mesmo grupo. Em 1970, durante a formatura da primeira turma da Guarda Rural Indígena, um indígena foi exibido para as autoridades amarrado em um pau-de-arara, em uma cena explícita do tipo de tortura sofrido por eles na época.

O segundo foi a instalação, também em 1969, do Reformatório Krenak no território tradicional do povo indígena, à margem do rio Doce, no município de Resplendor (MG). O reformatório era, na realidade, um presídio, onde foram mantidos pelo menos 94 indígenas de 15 povos de todas as regiões do país. 

O regime justificava o confinamento por motivos como embriaguez, roubo, homicídio, saída dos territórios sem autorização, “vadiagem”, entre outros. Na prática, eram prisões arbitrárias e desproporcionais – indígenas chegaram a denunciar que foram presos por falarem em suas próprias línguas ou por saírem de suas aldeias para vender artesanato. Segundo a Comissão Nacional da Verdade, o reformatório funcionava como um “campo de concentração”. 

Por fim, a ação civil pública destaca a expulsão dos Krenak de seu território tradicional. Em 1972, a ditadura transferiu os indígenas à força para uma fazenda no município de Carmésia, doada pela Polícia Militar para a Funai. Depois da extinção do Reformatório Krenak, a fazenda também funcionou como um centro de detenção arbitrária. No local, além de viverem confinados, os indígenas eram obrigados a realizar trabalhos forçados. 

Todas essas violências seguem vivas na memória do povo Krenak, que, até hoje, luta para recuperar suas terras ancestrais. 

“O meu pai sofreu muito na ditadura”, lembra Douglas. “Foi construída uma escola para que o povo não falasse mais a nossa língua e aprendesse, forçado, a falar português. Meu pai não gostava, ele gostava de fazer o que fazia antes, como caçar e pescar. Um dia, ele não foi para a escola, um soldado descobriu, foi atrás e encontrou meu pai pescando na beira do rio. Esse soldado pegou meu pai, amarrou ele com um corda na cela do cavalo e arrastou ele, uma criança, para toda a comunidade ver. Para servir de exemplo”, conta ele. 

“São coisas que ficam. Tem muito trauma no nosso território”, diz Douglas. 

Foi para enfrentar esses traumas que Douglas e seu pai, Valdemar Krenak, iniciaram um trabalho de registro das memórias e reunião de documentos que, depois, viriam a ser formalizados na ação civil pública. 

“Quando falamos para o MPF que queremos um pedido de desculpas, queremos que isso venha com responsabilidades do Estado: demarcação do nosso território, políticas públicas que atendam os danos psicossociais e todos os prejuízos que esse Estado nos causou”, afirma Douglas

A Terra Indígena Krenak de Sete Salões fica no Vale do rio Doce e está em sua maior parte sobreposta ao Parque Estadual Sete Salões – o nome faz referência a um conjunto de grutas interligadas, um espaço sagrado para o povo Krenak. Segundo Douglas, há no local mineradoras e fazendeiros que receberam títulos indevidamente pelo Estado brasileiro, o que dificulta a finalização do processo de demarcação. 

Ainda assim, com a condenação em segunda instância, os Krenak se sentem fortalecidos para cobrar a regularização fundiária do território e as reparações relacionadas à desestruturação da organização social e enfraquecimento da cultura perpetrados pela União durante a ditadura militar.

Lembrar para resistir

No momento em que os Krenak saíam vitoriosos do tribunal em Belo Horizonte, a vitória deles era anunciada para uma plateia de centenas de indígenas de todo o país, reunidos em Brasília para a 21ª edição do Acampamento Terra Livre, a maior mobilização nacional indígena.

“É possível, sim, demarcar terras indígenas através da justiça de transição [processo em que, após um período repressivo, o Estado adota medidas para investigar e responsabilizar os envolvidos em crimes contra os direitos humanos, além de garantir reparações às vítimas e criar mecanismos para evitar a repetição dessas violações]. Os Krenak já colecionam duas vitórias, ou seja, vamos aprender com os Krenak”, disse a advogada Maíra Pankararu, arrancando aplausos da plateia.

Logo depois, Itamar Krenak, outra liderança, subiu no palco para celebrar a decisão. “O Estado brasileiro tem essa responsabilidade de nos proporcionar a vida, a gente precisa do nosso território Sete Salões, que está em processo de demarcação.”

As declarações ocorreram durante uma sessão plenária que era realizada nesta terça-feira justamente para discutir o direito à memória, a reparações e à justiça de transição. No evento, lideranças das cinco regiões do país compartilharam lembranças de violência na ditadura e falaram sobre como muitas dessas violências continuam acontecendo no país e sobre a importância de preservar a memória e lutar por uma reparação integral aos povos indígenas.

Celso Jopoty, do povo Avá-Guarani, do Oeste do Paraná, falou sobre o impacto da construção da usina hidrelétrica de Itaipu, que alagou boa parte do território tradicional do povo, além de um cemitério. “Até agora a gente não teve nenhuma reparação, mais de 40 anos sem território. Aquele cemitério que ficou debaixo do lago, que tem os parentes alagados, a gente nunca vai conseguir reparar aquilo. Reparar o sagrado vai ser difícil”, disse ele, lembrando que as violências continuam – há meses os Avá-Guarani enfrentam uma série de ataques de homens encapuzados e armados. 

Os mega empreendimentos da ditadura militar, caso da hidrelétrica de Itaipu, não só expulsaram povos de seus territórios, como levaram doenças e todo o tipo de violência para grupos que ainda não tinham tido muito contato com povos não-indígenas, principalmente na região amazônica.

“Quantas mulheres indígenas foram estupradas no processo de construção da Transamazônica?”, questionou Braulina Baniwa. “A gente consegue quantificar essas mulheres? Não temos esses dados”, disse ela.

“A memória é fundamental para a gente resistir”, afirmou Eliel Benites, do povo Guarani-Kayowá, do Mato Grosso do Sul. “Temos que pensar a memória como uma estratégia de reconstrução dos territórios, como uma extensão do território.”

Essas lideranças vêm atuando no projeto Justiça de Transição para Povos Indígenas, uma iniciativa da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), do Instituto de Políticas Relacionais e do Observatório dos Direitos e Políticas Indigenistas da Universidade de Brasília.

O projeto já disponibilizou mais de 2 milhões de páginas de documentos do período militar no site Armazém Memória Viva. Também vem trabalhando para levantar, em um processo de escuta nos territórios, sete casos de violações ocorridas na ditadura. O objetivo é aprofundar a pesquisa sobre esses casos e entender como cada povo quer trabalhar essas memórias e como gostariam de ser reparados.

Em paralelo a esse trabalho, foi lançado, em setembro do ano passado, o fórum “Memória, Verdade, Reparação Integral, Não Repetição e Justiça para os Povos Indígenas”, coordenado pelo Ministério Público Federal, pela Apib e pelo Observatório Observatório dos Direitos e Políticas Indigenistas da Universidade de Brasília.

Um dos objetivos do fórum é propor ao governo federal a criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, o que, segundo o procurador regional da República Marlon Alberto Weichert, que compõe o fórum, deve acontecer “em breve”.

“Trabalhamos com uma Justiça de Transição feita pelos indígenas para os indígenas – mas também para os não-indígenas, para que a sociedade como um todo possa compreender o tamanho de sua dívida”, disse Weichert durante a sessão no ATL.

Como resumiu Braulina Baniwa: “é preciso pensar na dor de ontem e de hoje para pensar em um futuro sem dor”. Douglas faz coro: para ele, a garantia de um futuro digno passa pela reparação das violações que foram cometidas. No caso Krenak, trata-se até de recuperar a beleza de seu nome.

“Para parentes mais velhos, de 80 anos, falar o nome Krenak era sinônimo de coisa ruim, porque quando os parentes estavam resistindo em um território, por exemplo quando a ditadura foi fazer a Transamazônica, eles falavam: ‘vocês vão para o Krenak’, que era como eles chamavam o presídio”, conta Douglas. “Mas Krenak é um nome muito diferente. Significa ‘cabeça na terra’, em sinal de agradecimento, porque entendemos que a terra é um dos espíritos mais sagrados que temos. A ditadura colocou nosso nome como sinônimo de coisa ruim.”

Já nesta terça-feira (8), no que talvez seja uma reparação ainda pequena, o nome Krenak foi sinônimo de justiça.

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