05 Abril 2025
Sendo o discernimento ainda mais necessário, maior se torna a necessidade de o fazer em grupo, no seio de comunidades que ajudem a encontrar o sentido dos acontecimentos, aprendendo a discernir o que contribui ou não para enriquecer a verdadeira humanidade.
O artigo é de Manuel Pinto, publicado por 7Margens, 03-04-2025.
Ao abrir um trajeto de três anos para uma Igreja Católica mais sinodal e, portanto, mais fiel ao Evangelho de Cristo Jesus, o Papa Francisco não deixa de apelar à paz nos quatro cantos do mundo e no coração de cada pessoa; não esquece o sofrimento, a indignidade e a crueldade com que são tratados tantos grupos humanos e tantos povos; nem os graves riscos de que sofre a nossa ‘casa comum’.
A sinodalidade não pode ser, por conseguinte, nem uma forma de pôr os cristãos mais envolvidos e voltados para dentro das suas comunidades, nem igrejas centradas sobre si mesmas, por muito funcionais e animadas que sejam. Virar as costas ao ‘mundo’ seria trair a sinodalidade, uma vez que esta é, antes de mais, caminho e convite a caminhar juntos.
Houve, sobretudo com o Concílio Vaticano II, um período em que se valorizou, para alguns porventura excessivamente, a ação dos cristãos leigos nos seus meios de vida – nas fábricas, nas escolas, nos campos, na ação social e caritativa… Nomeadamente a Ação Católica foi uma escola de atenção à realidade envolvente e às pessoas e grupos que nela viviam, às suas condições de vida, seus anseios e dramas.
A ideia que se tem é que a Igreja perdeu em boa medida essa dimensão de atenção à vida real das pessoas, nos seus meios de vida. E a pastoral parece ser, hoje, uma pastoral de animação ou reanimação, que vive de soluços e de ‘eventos’, mas que não forma, não acompanha, não gera projetos e movimentos significativos e sustentáveis.
Cabe perguntar o que significará, hoje, para o dia a dia da experiência cristã, a célebre abertura da Gaudium et Spes, n.1, que diz: As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos seres humanos de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração.
E como está a Igreja a pôr em prática o que a mesma constituição pastoral sublinha no início do n. 4, que é necessário “conhecer e compreender o mundo em que vivemos, as suas esperanças e aspirações, e o seu carácter tantas vezes dramático” e que isso se pode e deve fazer através do “escrutínio, a todo o momento, dos sinais dos tempos, interpretando-os à luz do Evangelho”?
Há aqui um programa de ação à espera de ser concretizado e que passa por:
– Analisar a realidade (por vezes dramática) do mundo em que vivemos a todos os seus níveis (local, nacional, internacional);
– Pôr em evidência os sinais dos tempos – ou seja, aqueles processos, acontecimentos ou situações que, de forma significativa, contribuem para a promoção ou para a negação da dignidade humana, da paz, da justiça social e do equilíbrio do planeta;
– Interpretar esses sinais à luz do Evangelho (nomeadamente as bem-aventuranças, a parábola do samaritano ou o Reino de Deus em Mateus, 25);
– Discernir pessoalmente e comunitariamente o que é urgente e possível fazer para escutar, compreender melhor, e intervir;
– Encontrar formas de tornar presentes estes esforços e empenhamentos na oração e celebração da fé, particularmente na Eucaristia.
Num texto que li recentemente[I], o autor observava dois pontos que me pareceram importantes. O primeiro é que a consciência de cada pessoa no que respeita ao bem moral constitui o aferidor da relação entre a (des)ordem do mundo que temos e o mundo prometido ou sonhado, a que os cristãos chamam Reino de Deus. O segundo, ligado ao primeiro, é que o dever e o direito de discernir acerca dos sinais dos tempos não é monopólio dos cristãos, antes compete a todos e a cada um dos seres humanos, ainda que, nessa tarefa, os cristãos possam ter um contributo único e específico a dar. Por outras palavras: essa leitura pode ser feita através de um esforço colaborativo e num diálogo entre crentes e não crentes. Daqui decorrem outras consequências, também sublinhadas no artigo referido: que o discernimento dos sinais dos tempos implica cada pessoa, mas desenvolve-se de forma fecunda em comunidade (pequeno grupo); e que a disparidade de experiências e a diversidade de situações em que cada pessoa se encontra faz com que a consciência da realidade e a leitura dos sinais dos tempos possam ser diferentes, inclusive entre cristãos.
A proliferação da informação em que vivemos, sobretudo com a emergência de canais e de plataformas e redes digitais, já neste século, pode criar a ideia de que já todos conhecemos o que se passa e quais são “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos seres humanos de hoje”, se não mesmo os sinais dos tempos. Tudo parece óbvio, simples e dado de bandeja. E, no entanto, nunca como hoje, foi tão penoso distinguir o verdadeiro do falso, o fictício do real e a informação da desinformação.
Sendo o discernimento ainda mais necessário, maior se torna a necessidade de o fazer em grupo, no seio de comunidades que ajudem a encontrar o sentido dos acontecimentos, aprendendo a discernir o que contribui ou não para enriquecer a verdadeira humanidade.
Como é que estes tópicos nos podem ajudar a sintonizar a vida e o mundo, sem que tal signifique necessariamente aceitar de forma acrítica a vida e o mundo? Como é que os pequenos grupos de crentes, as pequenas comunidades, as formações que todos dizem ser cruciais, poderiam concorrer para uma sinodalidade não só na Igreja, mas também na sociedade?
[I] Himes, M.J. (2002) Reading the Signs of the Times: Theological Reflections.