05 Abril 2025
"Na era da informação e do ceticismo esclarecido, seria de se esperar que a fé encontrasse outras maneiras de se sustentar, longe do fetichismo macabro do cristianismo medieval. No entanto, continuamos a testemunhar a exibição de mortalhas sagradas, dedos incorruptos e bolhas de sangue que se liquefazem em momentos oportunos", escreve José Carlos Enríquez Díaz, em artigo publicado por Ataque ao Poder, 03-04-2025.
O cardeal Stanislaw Dziwisz, antigo secretário pessoal e sombra de João Paulo II, revelou com devoção indisfarçável que o Papa Francisco começou a melhorar depois de receber uma relíquia contendo o sangue de seu antecessor. Como se fosse uma pílula mágica, a mera proximidade da substância sagrada teria feito maravilhas pela saúde de Bergoglio, que continua se recuperando na Casa Santa Marta. Milagres de fé, alguns nos dirão. Superstições medievais, dirão outros. Um novo episódio de marketing eclesiástico, dizemos nós, aqueles de nós que não engolem esse absurdo.
É curioso como o catolicismo oficial continua apegado a práticas que já provocavam descrença nos pensadores romanos há dois mil anos. O fascínio pelos restos mortais de santos, ossos, sangue coagulado ou roupas impregnadas de santidade nada mais é do que a versão cristã dos amuletos pagãos tão criticados pelos primeiros apologistas da Igreja. Teólogos progressistas há muito debatem a fixação obsessiva da Igreja em relíquias, que não apenas distorce a mensagem original do cristianismo, mas também perpetua uma visão mágica da fé que entra em conflito com qualquer tentativa de modernização.
Não é de se admirar que seja justamente Dziwisz quem promova tais explosões teológicas. Não esqueçamos que esse mesmo cardeal foi investigado por encobrir abusos sexuais dentro da Igreja, uma sombra que lança ainda mais sombra sobre seu papel como guardião da memória de João Paulo II. Afinal, foi ele quem guardou zelosamente a memória de João Paulo II e conduziu cuidadosamente sua canonização rápida como um raio. Não importava que Karol Wojtyla tivesse dado a comunhão a Augusto Pinochet, um ditador com um histórico de tortura e desaparecimentos que faria qualquer defensor dos direitos humanos corar. A Igreja demonstrou repetidamente que política e santidade podem coexistir sem escrúpulos quando as circunstâncias o exigem. E se isso exigir recorrer a milagres de credibilidade duvidosa e relíquias de autenticidade questionável, então vá em frente.
Na era da informação e do ceticismo esclarecido, seria de se esperar que a fé encontrasse outras maneiras de se sustentar, longe do fetichismo macabro do cristianismo medieval. No entanto, continuamos a testemunhar a exibição de mortalhas sagradas, dedos incorruptos e bolhas de sangue que se liquefazem em momentos oportunos. E o pior é que ainda há crentes que se apegam a esses espetáculos como prova irrefutável da divindade.
O cristianismo primitivo já era ridicularizado por esse tipo de prática. Os pagãos ficaram escandalizados que os seguidores de Jesus venerassem os restos mortais de seus mártires com tanto fervor. Cícero e Plínio, o Jovem, escreveram sobre sua perplexidade com a adoração excessiva dos mortos e seus pertences pessoais. E agora, dois mil anos depois, o Vaticano continua a abraçar as mesmas tradições com a mesma seriedade com que os camponeses do século XIV eram obrigados a acreditar na santidade de um dente de São João Batista.
O grande problema com esses discursos é que eles perpetuam uma visão infantil da religião, na qual os milagres se tornam substitutos da reflexão teológica e desculpas para evitar abordar problemas reais. Não é que um Papa seja curado ou não graças a uma relíquia, mas que a própria história infantil reforça a ideia de que a intervenção divina é reservada a alguns poucos selecionados, enquanto o resto de nós deve se resignar a ela.
Mas talvez o aspecto mais irônico de tudo isso seja o fato de que um Papa jesuíta, pertencente a uma ordem caracterizada por seu intelectualismo e ceticismo em relação às devoções populares, foi vítima involuntária dessa anedota milagrosa. Bergoglio poderia ter melhorado graças aos cuidados dos médicos, ao repouso ou ao simples acaso. Mas não, é melhor atribuir sua recuperação a algumas gotas de sangue coagulado guardadas em um medalhão de ouro. A fé move montanhas, mas também é capaz de levar a razão em direção a abismos insuspeitados.
Talvez, no fundo, esse episódio seja um lembrete de que a Igreja continua presa entre a modernidade exigida por uma sociedade secular e a nostalgia de seu passado sobrenatural. Um passado em que os Papas abençoavam os tiranos e em que a santidade podia ser vendida em pequenas garrafas de vidro. Um passado que, para alguns, continua mais confortável do que o presente incerto de uma religião em declínio.
E assim, entre relíquias e superstições, a Igreja continua brincando de ser a dona da verdade. Enquanto isso, no mundo real, a razão, a justiça e a memória histórica continuam aguardando o milagre que realmente importa: o desaparecimento da hipocrisia.