29 Março 2025
"O filme é um libelo pela emancipação; ao mesmo tempo que desnuda a indiferença do grande capital diante do sofrimento dos comuns. O cinema mistura ficção e realidade, o material que a imaginação precisa para inventar a manhã em liberdade – com a coragem dos sobreviventes", escreve Luiz Marques, docente de Ciência Política na UFRGS; ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul, publicado por Sul21, 26-03-2025.
O sul-coreano Bong Joon Ho, depois do premiado Parasita com a Palma de Ouro e outras quatro estatuetas do Oscar, apresenta-nos agora a ficção científica Mickey 17. O filme aponta a exploração do trabalho em uma grande corporação, na qual um dedicado empregado participa de missões perigosas e, em caso de morte, é reimprimido com o mesmo corpo e memória sucessivas vezes. Ele é o típico funcionário padrão, sempre disposto a qualquer empreitada. A reimpressão recende um processo de precarização do trabalho e as indefectíveis terceirizações do mundo contemporâneo.
A trama baseia-se no romance homônimo (Mickey 17, Editora Minotauro), de Edward Ashton, com dois personagens centrais: (a) o operário Mickey (Robert Pattinson), no automático até que uma falha no mecanismo de produção cria um duplo seu, o Mickey 18, e ele sente a possibilidade real de extinção sem direito à volta e; (b) o empresário Kennet Marshall (Mark Ruffalo), um excêntrico que suscita a imagem de políticos de baixo quilate, como Donald Trump e Javier Milei, e os “programas de despesas” que aludem aos ajustes fiscais (“austeridade”) para cortar os investimentos sociais.
Para se adequar ao espírito do tempo, cimentado em muros que separam fronteiras nacionais para passar o sentimento de segurança, existe um terceiro personagem: os “invasores”, representados por “bactérias” enormes. “O inimigo parece croissant mergulhado em merda”. Palestinos identificarão o asco com Benjamin Netanyahu; brasileiros, com Jair Bolsonaro e a destruição do Estado de direito democrático em prol do regime de exceção. O refluxo gastroesofágico é idêntico. É preciso juntar as frases soltas em diálogos, no grand écran, para conseguir montar as peças do quebra-cabeças.
Do ponto de vista dos subalternos a serviço da megacorporação, o que acontece é obra “dos caras da ciência”. “A humanidade não está pronta para essa tecnologia de multiplicação por impressoras”. “Os múltiplos rejeitam a ordem natural – um corpo, uma alma”. “Como usar para nosso benefício econômico a designação de ‘dispensáveis’?” Numa cena, se exprime a vontade de um planeta da raça branca, associada a uma saudação caricata (nazista). Mas há algumas fissuras no sistema.
A sensação é de que, afora os raros que o Movimento Occupy Wall Street designa de 1% contra 99% da população, todos somos estepes de um “poder desconhecido”. Em troca, a rebeldia sugere a harmonização de brancos e pretos ao estilo da mestiçagem freyreana para celebrar a diversidade humana. Antes da engrenagem colonialista, “cada um vivia sua vida”. Quando os colonizadores chegaram, “minha vida inteira foi um interminável castigo”. O filme registra a consciência nascente de um processo de decolonização. “As bactérias talvez acabem gerando super-homens”; a saber, os indivíduos prescritos por Nietzsche para questionar os valores de rebanho, o conformismo político.
Bong Joon Ho, no Parasita, substitui a consciência pela inveja em uma sociedade com hierarquia rígida de classes. Já em Mickey 17, a hierarquia deixa explícito o poder de vida e morte por parte de quem detém a soberania e controla os avanços tecnológicos (leia-se Big Techs). Neste contexto, a chance possível de uma vida autônoma está na formação de uma corrente de afeto entre os Mickeys descartáveis, na lógica sistêmica. A “abolição permanente das impressoras” (desalienação) é então anunciada por uma mulher negra, símbolo da resiliência dos oprimidos e explorados no Ocidente.
O filme é um libelo pela emancipação; ao mesmo tempo que desnuda a indiferença do grande capital diante do sofrimento dos comuns. O cinema mistura ficção e realidade, o material que a imaginação precisa para inventar a manhã em liberdade – com a coragem dos sobreviventes.