29 Março 2025
Em debate da Frente pela Vida, sanitarista alerta: política econômica e de alianças do governo impedem o SUS e as políticas sociais de serem retomadas no ritmo que o povo precisa. “Macroeconomia da desesperança” pode ter consequências graves.
A reportagem é de Guilherme Arruda, publicada por Outras Palavras, 26-03-2025.
“O próprio lema do governo, União e Reconstrução, não leva à discussão sobre o quanto a união impede a reconstrução. E mais ainda: não se aponta, com a ideia de reconstrução, para um projeto de futuro, mas para um passado que já levou à frustração do eleitorado”.
A avaliação foi compartilhada pela socióloga e sanitarista Sonia Fleury em seminário realizado na terça-feira passada (19/3) pela Frente pela Vida, uma articulação de movimentos sociais e entidades científicas em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS). O debate, organizado em torno do tema “Conjuntura política e saúde”, contou também com o cientista político Juarez Guimarães (UFMG).
Com gravação disponível no canal da TV Abrasco, a conversa girou em torno do cenário político cada vez mais incerto no âmbito nacional e internacional, que pode trazer diversos percalços à luta por um SUS 100% público, gratuito e de qualidade e pela expansão do acesso à saúde no Brasil. Para Fleury, fatores como o crescimento da extrema-direita em todo o mundo, a “confusão entre governança e governabilidade” no seio do governo e o “círculo de giz criado pelo Arcabouço Fiscal” têm sido determinantes para a dificuldade de que se encontre uma saída para os impasses políticos vividos no país.
Túlio Batista Franco, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e mediador do seminário, também anunciou no evento que a Frente pela Vida promoverá, de abril até agosto, uma série de debates sobre temas centrais para os rumos do SUS. Entre eles, o financiamento da rede, o impulsionamento da participação social e o programa Mais Acesso a Especialistas. A seguir, confira as principais reflexões da instigante discussão da última terça-feira entre Fleury e Guimarães, assim como o calendário de atividades da FpV.
Ao caracterizar as transformações do mundo nas últimas décadas, Sonia Fleury avaliou que algumas de suas características principais são o “aumento exponencial da concentração de renda”, “o empreendedorismo como ideologia hegemônica”, o “controle do narcotráfico sobre os territórios” e a “piora das condições de vida”. Isto é, vivemos uma situação regressiva, que encontra pouca resposta das forças sociais organizadas que anteriormente lutavam pela emancipação da humanidade e um mundo mais justo – e se agrava com os primeiros sinais de uma ofensiva imperial estadunidense, comandada por Donald Trump e Elon Musk.
Em meio a esse cenário já complexo, o Governo Federal tem dado poucos passos no sentido de cumprir com o programa que o elegeu. Este propunha um leque de transformações significativas e reversão das reformas neoliberais, para virar a página da destruição do Estado nacional, do SUS e dos direitos da população promovida pela gestão de Jair Bolsonaro. Além disso, não foram corrigidos os limites da estratégia de inclusão pelo consumo, que substituiu a politização e organização em massa das camadas populares para lutar por um país mais digno. Para Sonia, “infelizmente, o governo Lula 3 não parece ter feito uma análise crítica que lhe permitisse mudar o rumo de sua estratégia de inclusão, e tentar incidir sobre as causas da exclusão, e não só nos seus efeitos”.
O problema da falta de projeto estratégico e da flexibilidade no compromisso com o programa de mudanças esteve no centro da análise de Sonia. Seja no Brasil ou no mundo, “a ausência de projeto coletivo faz as pessoas se sentirem desgarradas”, ela explica, e esfria o caldo político para as transformações mais amplas que se mostram cada vez mais urgentes.
É nesse sentido que a sanitarista sublinha a profundidade das contradições no interior da estratégia sintetizada no slogan “União e Reconstrução”. Afastando-se da tese de que a comunicação está no âmago dos problemas de Lula, Sonia aponta que é exatamente a “união” com elementos do Centrão e da direita liberal, a quem o governo constantemente cede, é que está pondo põe um freio no cumprimento da promessa de “reconstrução” do país e o SUS. Enquanto o governo confunde “governança e governabilidade”, as emendas parlamentares “esvaziam ministérios e estatais” e tornam o Brasil cada vez mais refém de oligarquias desinteressadas no bem-estar da população.
Por isso mesmo, formula a pesquisadora, a reconstrução das políticas públicas e instituições de Estado de antes não bastaria: só um plano de reformas estruturais que apontasse para o futuro, dialogando com os novos anseios da população e a nova situação internacional, é que poderia realmente responder às necessidades do país. Sonia destacou que, em tese, o Brasil até mesmo reúne condições para assumir “um papel de liderança, articulando a América Latina e também outros países do Sul Global”. Porém, “essa liderança dificilmente se consolidaria com a tendência de queda continuada da popularidade do governo e na ausência de um projeto de país que conquiste corações e mentes”, ela opina.
Para a sanitarista, para começar a mudar essa situação, é preciso “romper o círculo de giz criado pelo Arcabouço Fiscal”, que asfixia a possibilidade de um emprego mais ousado do orçamento público. Além disso, ela aponta que “a saída será através da sociedade”, envolvendo a população na formulação dos rumos de uma nova política emancipatória. Um exemplo decisivo: as importantes mobilizações estimuladas pela presidente mexicana Claudia Sheinbaum, que dão fôlego e força política às transformações de vulto sendo promovidas naquele país.
Em sua participação no seminário, Juarez Guimarães se concentrou em uma análise das últimas sondagens sobre a popularidade do Governo Federal. Para o cientista político mineiro, a característica mais relevante da perda de apoio observada é que ela se concentra nas bases políticas mais sólidas de Lula: os mais pobres, nordestinos, mulheres e não-brancos.
Este não é um fenômeno sem explicação. Para Guimarães, é fato que as melhorias na situação econômica e social são tímidas, e têm acontecido em um ritmo essencialmente “incremental”. Elas não empolgam a população da mesma maneira que as transformações promovidas nos mandatos iniciais do presidente – ainda que estas também tenham sido marcadas por uma forte dose de incrementalismo. Um exemplo claro é o do salário mínimo: em 2010, ele comprava 2,5 cestas básicas, índice que caiu para 1,5 ao fim do governo Bolsonaro. Hoje, ele já permite adquirir 1,7 cestas, mas trata-se crescimento ainda muito aquém do poder de compra que o brasileiro já teve.
No cerne dessa morosidade para promover mudanças, defende o professor da UFMG, está a orientação econômica que não dá sinais de enfrentar a política de juros altos e servidão ao financismo. Ele avalia que o governo Lula III parece capturado por uma “macroeconomia da desesperança” – e o país, padecendo de “uma doença chamada neoliberalismo”.
Contudo, a hegemonia neoliberal sobre o mundo e os impasses em Brasília não significam que a situação seja de caso perdido para o SUS ou para o início de um processo de transformações do país. No entanto, para dar corpo a uma “agenda renovada”, é indispensável inverter a fórmula: faz-se necessária uma “construção e o anúncio de uma macroeconomia da esperança”, para estar à altura das aspirações do povo brasileiro para a saúde pública e também por uma sociedade mais justa e digna para todos, concluiu o cientista político.
Ao fim das exposições, o membro da operativa da Frente pela Vida, Túlio Batista Franco, apresentou um calendário dos próximos seminários , sempre transmitidos ao vivo e abertos ao público. Confira as datas e os temas:
• 8 de abril, 19h: Programa “Mais Acesso a Especialistas” (Coordenação: Rômulo Paes – ABRASCO/Operativa da FpV)
• 21 de maio, 19h: Financiamento, Orçamento Participativo Nacional e SUS (Coordenação: Francisco Funcia – ABRES/Operativa da FpV)
• 18 de junho, 19h: – Comunicação, redes sociais, big techs e a defesa do SUS (Coordenação: Carlos Fidelis – CEBES/Operativa da FpV)
• 16 de julho, 19h: Participação social, gestão participativa e o SUS (Coordenação: Elda Bussinger – SBB/Operativa da FpV)
• 20 de agosto, 19h: – Emergência climática, eventos extremos e a saúde (Coordenação: Jacinta Senna – ABEN/Operativa da FpV)