Defensores do SUS reconhecem pontos positivos nas diretrizes de governo anunciadas terça-feira, mas notam ausência de propostas que movimento sanitarista construiu há muito. Lacunas expõem importância da Conferência Livre de Saúde.
A reportagem é publicada por Outra Saúde, 24-06-2022.
Na última terça-feira (21-06-2022), em evento oficial, foram lançadas as diretrizes para o plano de governo de Lula. O ex-presidente continua demonstrando chances reais de vencer a disputa à presidência ainda no primeiro turno. Elas foram confirmadas ontem por nova pesquisa Datafolha, que registrou uma diferença de 19% acima do segundo colocado, Jair Bolsonaro – Lula teria 53% dos votos válidos, se as eleições fossem hoje. Porque a probabilidade de vitória é real, as Diretrizes para o Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil são indicação de um futuro possível, a partir do ano que vem. Pelo desejo de contribuir na reconstrução do país, figuras importantes ligadas ao movimento sanitarista e às lutas pelo SUS analisaram o documento com lupa – e diferentes opiniões despontaram.
Parece ser consenso que, de maneira geral, as diretrizes são positivas e muito importantes. Lúcia Souto, presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), elogia o esforço de lançar um documento que “faz um diagnóstico e, ao mesmo tempo, sinaliza propostas interessantes”. Ela lista as mais importantes, que dizem respeito lateralmente à Saúde: a luta contra a fome; a reforma tributária, necessária para reverter a desigualdade; a defesa da soberania do país e da interação do Brasil com a América Latina e com o mundo; a garantia de direitos sociais; a questão do meio-ambiente e a defesa contundente dos povos indígenas; a revogação do teto de gastos (EC-95), sem a qual o financiamento do SUS não sai do lugar.
“O documento traz questões muito interessantes, algumas delas são tratadas com detalhe, aprofundamento e clareza de rumo, do ponto de vista técnico-político”, afirmou Rosana Onocko, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Mas, em sua avaliação, o texto dá pouco espaço para os pontos que tratam diretamente da Saúde e do SUS, e os aborda de maneira “morna”. “Alguns de nós demonstraram preocupação porque há um acúmulo de discussões e alguns consensos no movimento sanitário”, explicou. As diretrizes, para Rosana, limitam-se a exaltar a importância do Sistema Único e defender programas que fizeram parte dos governos passados do PT, como o Mais Médicos.
“São programas bons”, concorda a cientista política Sonia Fleury, lutadora histórica pela reforma sanitária. “Mas não resolvem os problemas centrais do SUS”, provoca ela. Em sua opinião, as diretrizes do plano de governo de Lula deixam a Saúde no limbo, apenas com críticas ao governo atual, mas sem propostas reais. “Qual é o compromisso com o financiamento do sistema? Quais programas serão mais importantes na área assistencial?”, questiona Sônia, que percebe que a Atenção Primária à Saúde não chega a ser referida no documento. Ela também reconhece que questões como o combate à fome, a valorização do emprego, o compromisso com o desenvolvimento e o reconhecimento de questões de sexo, raça e classe estão bem representadas nas diretrizes, e fazem parte dos determinantes sociais da Saúde. Mas decepciona-se ao perceber que muitos dos debates em torno do SUS não se refletiram nas propostas iniciais da coligação de partidos que tem chances reais de vencer o bolsonarismo e livrar o Brasil de um período tormentoso.
Já o ex-ministro da Saúde do governo de Dilma Rousseff, Arthur Chioro, pensa que as críticas são precipitadas. Ele imagina que, no processo de construção da chapa Lula/Alckmin, haverá espaço para propostas muito além das elencadas na última terça-feira. Um dos responsáveis pela articulação da área de Saúde no PT, Chioro afirma: “As diretrizes não são o ponto de chegada, mas o de partida”. Para ele, o programa deve refletir as necessidades mais urgentes do povo, sugerindo o enfrentamento da desigualdade e de questões fundamentais como a revogação do teto de gastos. Um sinal de que a versão recém-divulgada não deve ser a definitiva é o fato de ter sido aberta, no próprio ato de lançamento das propostas, uma plataforma online que aceita colaborações.
Rosana Onocko pensa que esta abertura não precisaria levar à omissão de propostas construídas em anos de lutas e reflexão coletiva, pelos movimentos da Saúde. E o que deve ser proposto não é um retorno ao passado, mas uma guinada: “a gente precisa fazer melhor do que foi feito no passado”. Ela insiste não num programa detalhado, mas em pontos centrais, como a retomada do caráter público do SUS, a expansão da Atenção Primária, o fim da lógica de terceirização e a priorização dos gastos em Saúde Pública – ao contrário do que se dá hoje. “Há propostas concretas”, reforça Sônia Fleury, “que não estão refletidas ali”.
Todos parecem concordar que, mesmo após a possível vitória sobre o bolsonarismo, a luta será árdua. Por isso, a importância da Conferência Livre, Popular e Democrática de Saúde, que será realizada em 5 de agosto em São Paulo e já tem a presença de Lula confirmada. “Eu acho que a Conferência é decisiva”, frisou Lúcia Souto, e “para criar a base para essas reformas e a reconstrução que o Brasil precisa realizar, é importante uma sociedade organizada com consciência crítica para ser sujeito dessa transformação do Brasil”.