21 Fevereiro 2025
O artigo é de Felipe Poroger, publicado por Folha de S. Paulo e reproduzido no facebook de André Vallias, 18-02-2025.
Felipe Poroger é cineasta, mestre em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP e autor do romance “Alguém Sobrevive nesta História” (Todavia)
De todas as perguntas que movem "O Brutalista", de Brady Corbet, não há outra que revele com tanta assertividade os propósitos do filme e de seu protagonista. Renomado arquiteto judeu húngaro, lançado às atrocidades dos campos de concentração nazistas, László Tóth, vivido por Adrien Brody, nos é apresentado como sobrevivente de uma guerra que, aniquiladora de vidas e projetos, transformou um artista ilustre em imigrante alquebrado e anônimo, recém-chegado aos Estados Unidos de 1947.
Recebido por um primo — dono de uma loja de móveis nos arredores de Filadélfia —, Tóth irá, de início, se ocupar em projetar cadeiras e peças decorativas, além de interiores de residências milionárias. Agente involuntário do chamado "american way of life", verá seu talento ser revertido para retroalimentar a autoimagem de uma nação que posiciona o consumo doméstico e a privacidade dos lares como vitrines de liberdade individual e harmonia familiar.
Arquitetura para Tóth, no entanto, não é domesticidade passiva.
"Então, me responda, Tóth: por que arquitetura?", alguém pergunta ao protagonista em certo momento.
Ele responde: "Nada pode ser explicado por si mesmo — haverá melhor descrição de um cubo do que a sua própria construção? Havia uma guerra, mas, até onde sei, muitos dos prédios que projetei sobreviveram. Quando as terríveis recordações do que aconteceu na Europa deixarem de nos humilhar, espero que sirvam de estímulo político para desencadear as convulsões que tão frequentemente ocorrem nos ciclos da humanidade."
Na resposta, desprendem-se ao menos três mandamentos: em primeiro, a prevalência da forma e do olhar em detrimento de explicações racionais. Em segundo, o desejo de permanência e eternidade. Por fim, o impacto político e público da arquitetura como motor de transformações históricas.
Os alicerces da profissão, ao menos de acordo com Tóth, fazem do ofício uma arena de conflitos; uma vocação que, se exercida como se deve, se contrapõe às promessas redentoras da racionalidade, à descartabilidade industrial e ao culto excessivo da vida privada — valores que a trama associa incessantemente à sociedade americana.
Em cena, um artista indomável, à moda clássica dos gênios atormentados, e sua saga de adaptação em um país que, ao acolhê-lo, não raro o dilacera. Um país de fachada impecável, que faz da construção civil uma aliada não só para o crescimento econômico, mas, principalmente, para envernizar a vitrine da modernidade e, sob ela, confinar a falência moral de seus habitantes.
"O Brutalista". Já no título, a associação óbvia a um dos ramos mais proeminentes do modernismo arquitetônico. Surgido no Reino Unido do pós-guerra e rapidamente popularizado nos EUA, o brutalismo teve seu período de maior influência de 1950 a 1970, intervalo no qual, não à toa, se desvela a maior parte do filme.
Convencionado como um estilo baseado na funcionalidade, para o qual a leveza e a ornamentação devem dar espaço à crueza exposta dos materiais, ao uso do concreto e do aço e à geometria massiva das formas, o brutalismo —ao menos tal qual Corbet o concebe— servirá como ilustração didática à fortaleza da hegemonia norte-americana: inviolável por fora, em sintonia com a modernidade, mas em cujo interior se sedimenta a ética em ruínas.
Formado pela Bauhaus — escola-símbolo de uma Europa que flertou com o progressismo antes de ser tomada pelo regime hitlerista—, Tóth na história ergueu teatros, sinagogas e bibliotecas de Budapeste. Em oposição ao individualismo e à espetacularização americana, o húngaro legou à sua cidade espaços de contemplação para uso coletivo. A barbárie da guerra, no entanto, somada à vida que lhe será apresentada no novo país, se ocuparão de desafiar suas utopias.
Se Tóth respondia sobre seu ofício com a paixão febril daqueles que acreditam no papel cívico da arquitetura, o contraponto está em Van Buren, vivido por Guy Pearce e um magnata que dará ao protagonista a missão de construir um gigantesco centro comunitário cristão na parte rural da Pensilvânia. Quando perguntado sobre o interesse repentino em arquitetura, a frivolidade desromantizada dá as cartas: uma vez que a sua adega está cheia, Van Buren diz precisar de um novo hobby.
Ao longo de 3h45 — duração que nos faz supor que Corbet quer afrontar a sensibilidade americana até mesmo na minutagem —, "O Brutalista", apesar da recepção entusiasmada e das dez indicações ao Oscar, tem acumulado desafetos no campo arquitetônico.
Em janeiro, o crítico britânico Oliver Wainright publicou, no The Guardian, "Why The Architecture World Hates The Brutalist"?, ou "Por que o mundo da arquitetura odeia 'O Brutalista'?" em português —um compilado de imprecisões conceituais e factuais perpetradas pela obra, segundo estudiosos.
Purismo acadêmico ou decepção justa daqueles que amariam amar o filme, as críticas deverão passar despercebidas por aqueles que não têm na área o seu objeto de estudo. Com o intuito declarado de celebrar a arquitetura, "O Brutalista" termina por dar uma piscadela extra aos cineastas: há mais de 60 anos não se fazia nos EUA um filme em VistaVision — tecnologia dos anos 1950, que, ao rodar os negativos da câmera em sentido horizontal, amplia o campo de visão e aumenta a qualidade da imagem.
Afeito aos formatos e tendências caras à época, o filme também não esconde sua filiação à tragicidade crítica da dramaturgia americana propulsionada a partir do pós-guerra: o teatro de Tennessee Williams e Arthur Miller, o cinema da Nova Hollywood, a literatura de Philip Roth — exemplos notórios de tramas que fazem da vida privada dos Estados Unidos um palco de cinismo.
Épico eloquente, ainda que não raro maniqueísta, "O Brutalista" ganha se visto como o que de fato é: uma ficção que, licenciada da precisão do campo arquitetônico, investiga a intimidade de um país pelo olhar de um forasteiro. Sob a sombra do brutalismo, revela-se uma nação que, quanto mais se vangloria da solidez de seus alicerces, mais se liquefaz a olhos vistos.