"Mais de 70 anos depois do governo de Juscelino Kubitschek, os prédios de Niemeyer, ao invés de emblemas de uma democracia dinâmica, começam a parecer símbolos da paralisia presidencial", escreve Andy Robinson, jornalista, correspondente 'La Vanguardia' e colaborador do Ctxt desde a sua fundação, que pertence ao Conselho Editorial deste meio. Seu último livro é 'Ouro, petróleo e abacates: as novas veias abertas da América Latina' (Arpa 2020).
O artigo é publicado por Ctxt, 31-05-2023.
Brasília, a capital de um futurismo ultrapassado, é uma prova assombrosa do que pode fazer um presidente brasileiro se tiver amplo apoio social. Especificamente Juscelino Kubitschek, chefe de estado entre 1956 e 1961. Talvez por isso, a modernista Praça dos Três Poderes tenha sido tão violentamente atacada em 8 de janeiro. A agressão não foi apenas contra um Estado que os bolsonaristas consideram uma democracia corrupta e infiltrada pelo “marxismo cultural”, mas também contra a modernidade e o modelo de desenvolvimento de Getúlio Vargas e Kubitschek.
Depois de decidir quase unilateralmente construir uma nova capital política no cerrado do interior brasileiro, a 1.000 quilômetros do Rio de Janeiro, Kubitschek inaugurou a primeira obra em outubro de 1956. Menos de quatro anos depois, em outubro de 1960, Brasília já havia substituído Rio como capital.
Obra do arquiteto preferido de Kubitschek, o revolucionário modernista Oscar Niemeyer, as torres retangulares do Congresso, encimadas por duas estruturas semicirculares – uma côncava e outra convexa – para simbolizar a Câmara e o Senado, tornaram-se ícone de um novo poder e de um presidente ousado.
Com o apoio do Congresso para seu plano de desenvolvimento nacional, Kubitschek lideraria o chamado milagre econômico brasileiro, com uma vertiginosa industrialização impulsionada pelo Estado e taxas de crescimento anual em torno de 10%.
Mas, mais de 70 anos depois, com o governo de outro presidente icônico, Luiz Inácio Lula da Silva, já em seu quinto mês, os prédios de Niemeyer, ao invés de emblemas de uma democracia dinâmica, começam a parecer símbolos da paralisia presidencial. Como em outros países latino-americanos – Colômbia, Peru, Chile – nos quais a esquerda recuperou o poder executivo, mas não o legislativo ou o jurídico, as promessas de mudança da campanha eleitoral começam a se chocar contra um parlamento insubmisso.
“Lula acredita que a correlação de forças está contra ele, mas tem que promover medidas que mudem essa correlação e não está fazendo isso”, disse o filósofo Vladimir Safatle, autor de Só mais um esforço, livro que detalha as diretrizes para a refundação da esquerda na América Latina. Safatle, que está prestes a publicar um artigo na revista Piauí sobre a estética do assalto de Bolsonaro a Brasília, contra a jugular do modernismo, sustenta que se o presidente não souber recuperar a iniciativa, a extrema direita o fará. "Eles cortaram a tela de um quadro de Candido Portinari com uma faca", diz, referindo-se ao grande pintor modernista e militante, como Niemeyer, do Partido Comunista.
Como se verificou em 8 de janeiro, quando soldados do quartel de Brasília conhecido como Forte Apache – outra construção do modernismo de Niemeyer no setor militar –, este talvez menos desprezado pelo bolsonarismo, se recusaram a cumprir as ordens de Lula para deter os insurgentes, nada pode ser descartado no Brasil, dado o apoio que Bolsonaro tem.
A agenda legislativa do governo Lula, que enfrenta uma oposição agressiva de Bolsonaro – 102 das 513 cadeiras do Congresso – e um bloco central de sete partidos – 189 cadeiras alinhadas com os lobbies habituais – ainda não começou.
As 222 cadeiras do bloco governista são insuficientes e cresce o pessimismo no ambiente governista em relação à implementação do ambicioso programa com o qual Lula venceu as eleições, especificamente uma nova fase de desenvolvimento industrial após quase uma década de privatizações e estagnação econômica.
Se a arquitetura modernista do Congresso lembra uma prisão, a imponente torre de concreto e vidro preto do banco central, na outra ponta do eixo monumental, encarna o poder intransigente de uma autoridade monetária determinada a manter os juros reais mais altos do mundo. Na frente está o ex-CEO do Banco Santander Roberto Campos Neto, que ia votar vestido à moda de Bolsonaro: camisa amarela do time de futebol.
Enquanto isso, na elegante sede do Supremo Tribunal Federal (também de Niemeyer), tudo indica que uma ação movida pelo governo contra a privatização da gigante elétrica Eletrobras, aprovada durante o governo Bolsonaro, será arquivada.
Embora a grande mídia, liderada pela Rede Globo, não apoie a extrema direita como em outros países da região, ela ataca qualquer tentativa do presidente de esquerda de reativar a economia por meio de estímulos fiscais.
“Lula vive um paradoxo: foi eleito com mais ambições do que nas eleições anteriores e estava determinado a não fazer concessões. Mas agora ele tem muito menos poder do que antes”, explicaram assessores do presidente, ouvidos pela jornalista Mônica Bergamo. O veterano dirigente do PT sente-se "ansioso e até triste", segundo estes assessores.
Lula precisa mobilizar as ruas como os presidentes desenvolvimentistas dos anos 40 e 50 e como o próprio PT dos anos 80 e 90. Mas não está claro se há um movimento de mobilização. Nem mesmo o deputado de esquerda Guilherme Boulos, que fundou o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, parece ter condições de colocar seu povo nas ruas, apesar dos milhares de sem-teto dormindo nas ruas de São Paulo e do Rio. Enquanto isso, a mídia de direita e de centro-direita rotula o histórico Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra como terrorista, apesar de não ameaçar as lojas de produtos naturais nos bairros progressistas de classe média de São Paulo.
Por enquanto, Lula e seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, foram obrigados a apoiar a criação de um arcabouço orçamentário mais restritivo do que desejavam, que dificilmente permitiria a expansão econômica e que vem sendo criticado por líderes do Congresso. grupo, o Partido dos Trabalhadores (PT).
Lula, sim, conseguiu aumentar o salário mínimo e implantar um novo sistema de benefícios para as famílias pobres, além de um novo programa habitacional popular. Além disso, acaba de anunciar a queda dos preços dos combustíveis (fixados pela estatal Petrobras) para ajudar a estimular o consumo.
Mas outras medidas, como a proibição de notícias falsas geradas pelo “gabinete do ódio” de Bolsonaro ou a reversão da privatização do saneamento público, foram derrubadas no Congresso. O presidente da Câmara, Arthur Lira, um apoiador de Bolsonaro em sua época, insiste em não permitir "um passo atrás" em relação às medidas pró-mercado adotadas no governo anterior na área de privatizações e desregulamentação.
Até o plano de Lula para salvar a Amazônia pode estar em risco. O compromisso presidencial de criar novas reservas de conservação esbarrou no lobby dos grandes monocultores e na poderosa bancada ruralista, com 350 deputados na Câmara. Para apaziguar o lobby, Lula nomeou o empresário da soja Carlos Bávaro como ministro da Agricultura. Mas crescem as pressões para reduzir poderes à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, politicamente formada no movimento de defesa da Amazônia.
“O governo não tem uma base consolidada na Câmara dos Deputados enquanto a frente parlamentar agrícola é uma das bancadas mais organizadas do Congresso”, alertou o jornal Folha de São Paulo.
Embora o desmatamento já esteja começando a diminuir após a devastação dos anos Bolsonaro, novas concessões a grandes grupos do “agronegócio” podem enviar sinais perigosos aos criminosos ambientais.
Nem mesmo Lula, com seu conhecido pragmatismo, parece saber o que fazer. Ele tem optado por uma série de viagens ao exterior onde a reconstrução da imagem externa brasileira é mais fácil do que a construção de uma política interna. De sua casa no Palácio da Alvorada (outra obra espetacular de Niemeyer) ele anseia não apenas pelas façanhas de presidentes como Kubitschek, mas também pelo poder que ele mesmo exerceu durante os primeiros governos do PT (2003-2011).
Assim, Lula ganhou apoio do Congresso para a maior parte de seu programa de transformação social; aumentos constantes do salário mínimo, subsídios e empréstimos baratos aos mais pobres, fortes investimentos públicos. Dezenas de milhões de pessoas excluídas ingressaram no mercado de trabalho formal e saíram da pobreza e da marginalização.
Claro: às vezes, em um sistema político profundamente clientelista, o apoio parlamentar é obtido fechando os olhos para o presidente, como no caso do financiamento irregular de partidos, conhecido como Mensalão.
Agora, depois de uma campanha eleitoral em que Lula prometeu reconstruir o país depois dos anos Bolsonaro, os obstáculos são enormes. "Lula nunca teve tanta dificuldade em criar uma base no Congresso Nacional", alerta Matheus Leitão, na revista Veja.
“Há necessidade de novas articulações na Câmara ou de uma forma de pressão da mídia ou de empresários ligados ao Congresso”, disse Jorge Chaloub, analista político da Universidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais. A alternativa seria convocar "manifestações de massa em apoio a Lula", acrescenta. "Mas tudo isso é muito difícil".
Se serve de consolo para o presidente em seu labirinto, Kubitschek também teve problemas nos anos dos milagres, começando com duas tentativas de golpe. Três anos depois de ter sido afastado da presidência, os militares tomaram o poder em uma ditadura que duraria até 1984. Mas, como escreve Michael Reid, ex-correspondente do The Economist no Brasil, Kubitschek era dotado do “mais cobiçado patrimônio político de todos: um otimismo sem limites”.