É uma "impropriedade" julgar o governo Lula "na base dessa imagem [dos cem dias] emprestada do New Deal de Roosevelt", diz Rubens Ricupero ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, ao ser convidado para avaliar os primeiros três meses do governo. O critério, segundo ele, não é adequado porque as características do Brasil atual não são as mesmas que marcaram o governo Roosevelt.
Sobre o terceiro mandato do presidente, o diplomata e ex-ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal e do Ministério da Fazenda no governo Itamar Franco, observa: "É se tratar de uma reprise, de uma volta ao poder de alguém que o tinha deixado 12 anos antes. Não se trata de fato corriqueiro no Brasil nem em outros países. Entre nós, o único precedente foi, há mais de 70 anos, o retorno de Getúlio Vargas, nas eleições de 1950, cinco anos depois de ser deposto em outubro de 1945. Voltar a governar sobretudo depois de tanto tempo significa que, nesse ínterim, o governante envelheceu e mudou, o seu país mudou, o mundo mudou. Em termos gerais, esse será o desafio central de Lula: até que ponto ele saberá interpretar as mudanças no mundo e as mudanças talvez ainda mais profundas no Brasil? Em seu favor, funciona a maior experiência acumulada na política e na vida".
Rubens Ricupero é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Atualmente, ocupa a Cátedra José Bonifácio, da USP. Empossado em janeiro, cabe a ele conduzir os trabalhos neste ano do bicentenário da Independência.
Diplomata de carreira desde 1961, exerceu, entre outras, as funções de assessor internacional do presidente Tancredo Neves (1984-1985), assessor especial do presidente José Sarney (1985-1987), representante permanente do Brasil junto aos órgãos da ONU sediados em Genebra (1987-1991) e embaixador nos Estados Unidos (1991-1993). Serviu de embaixador na Itália e secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento – UNCTAD, órgão da ONU, deixando o cargo em setembro de 2004, quando se aposentou como diplomata. Entre suas obras, destacamos A diplomacia na construção do Brasil: 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal, 2017).
Cem Dias: Não acho adequado o critério. Ele se inspira na experiência do presidente Franklin Delano Roosevelt, que tomou posse no primeiro mandato em 04/03/1933, em meio à maior depressão econômica da história, com um terço da força de trabalho desempregada, a indústria praticamente paralisada, a maioria dos bancos fechados, a agricultura em colapso. O presidente teve de convocar o Congresso para uma sessão que durou mais ou menos três meses. Nos primeiros cem dias, foram aprovadas quinze leis principais e nada menos de 77 leis menores. O presidente dispunha de maioria esmagadora no Congresso e a população desesperada exigia remédios rápidos. Nenhuma dessas características existe hoje no Brasil, daí a impropriedade de julgar o governo na base dessa imagem emprestada do New Deal de Roosevelt.
Governo Lula 3 Cem Dias: Como bem observou o colunista Bruno Carazza em "Os dois ciclos de cem dias de Lula III", os melhores momentos foram antes da posse e depois do 8 de janeiro (Valor Econômico, 10/04/2023), Lula começou a governar no dia seguinte ao 2º turno, devido ao auto apagamento de Bolsonaro e sua saída do país. Antes de tomar posse, obteve duas vitórias marcantes dos outros Poderes: 1ª) a aprovação da PEC da Transição, que lhe disponibilizou um extra de R$ 165 bilhões, viabilizando o novo Bolsa Família, o relançamento de Minha Casa, Minha Vida, Farmácia Popular, Mais Médicos, ademais do reajuste real do salário mínimo e da correção da tabela do Imposto de Renda; 2ª) a decisão do Supremo Tribunal Federal da inconstitucionalidade do orçamento secreto. No fundo, como afirma o jornalista, os primeiros cem dias reais, não formais, se concluíram em 8 de fevereiro.
Característica Principal de Lula 3: É se tratar de uma reprise, de uma volta ao poder de alguém que o tinha deixado 12 anos antes. Não se trata de fato corriqueiro no Brasil nem em outros países. Entre nós, o único precedente foi, há mais de 70 anos, o retorno de Getúlio Vargas, nas eleições de 1950, cinco anos depois de ser deposto em outubro de 1945. Voltar a governar sobretudo depois de tanto tempo significa que, nesse ínterim, o governante envelheceu e mudou, o seu país mudou, o mundo mudou. Em termos gerais, esse será o desafio central de Lula: até que ponto ele saberá interpretar as mudanças no mundo e as mudanças talvez ainda mais profundas no Brasil? Em seu favor, funciona a maior experiência acumulada na política e na vida.
Principais acertos: A ênfase no aquecimento global e no meio ambiente, a escolha de Marina Silva como Ministra do Meio Ambiente, a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a nomeação de indígenas para seus principais cargos, a importância atribuída aos Ministérios de Direitos Humanos, Igualdade Racial, da Mulher, da Cultura e, em alguns casos, não todos, as escolhas acertadas de titulares e principais postos.
Outro grande acerto foi a reação rápida, pessoal, à tragédia dos yanomamis, a ida do presidente acompanhado de oito ministros a Roraima, a operação contra os garimpos.
Merece também destaque a decisão de não confiar aos militares a repressão ao quebra-quebra de 8 de janeiro. Nesse particular, a ação do ministro Alexandre de Morais foi tão ou mais decisiva que a do Executivo.
Política: A inclusão no ministério de Geraldo Alckmin, Marina Silva, Simone Tebet, foi decisão acertada. A composição do ministério propriamente dita reflete o presidencialismo de coalizão, como em governos anteriores. Embora as pastas tenham sido distribuídas a diversos partidos, o gabinete como um todo não representa um governo de ampla aliança de forças democráticas, como esperavam pessoas como eu, que apoiaram na campanha não o PT, mas a ideia da frente ampla. Para merecer o nome, o ministério deveria não apenas ser composto de políticos de partidos diversos, mas obedecer a um programa e a uma estratégia comuns, estabelecidos previamente. Isso não ocorreu. Alguns dos ministérios foram entregues a pessoas sem nenhuma qualificação e, em alguns casos, até de baixíssimos credenciais.
Congresso: O governo não dispõe de maioria clara, sobretudo na Câmara. Até agora não foi testado em nenhuma votação importante.
Relações Exteriores: O governo tem cumprido bem o propósito de mostrar que “o Brasil está de volta”, deixando para trás o isolamento diplomático e a posição de pária da comunidade internacional. As três visitas iniciais – Argentina (Uruguai), Estados Unidos, China – destacam as principais prioridades da política externa brasileira, complementadas pela visita do Primeiro Ministro da Alemanha, a futura do Presidente da França, a ida a Portugal. A ênfase no aquecimento global, no meio ambiente, no combate ao desmatamento na Amazônia, deveria inspirar a atividade fundamental da diplomacia. Mais duvidosas são pretensões como a de querer desempenhar um improvável papel de mediação ou bons ofícios na guerra da Ucrânia, situação que Lula revelou não compreender bem através de declarações como a de que Zelensky era tão responsável como o agressor Putin, posteriormente retificadas, mas de forma ainda insatisfatória ao não condenar claramente a agressão. Também em relação à tirania na Nicarágua ou à catástrofe na Venezuela, não houve evolução adequada do presidente e de seu partido, em contraste com outros líderes de esquerda sul-americanos como Gabriel Boric, do Chile, ou Gustavo Petro, da Colômbia.
Política Econômica: O ministro da Fazenda Fernando Haddad tem sido bastante feliz na escolha de equipe competente, na apresentação do chamado “arcabouço fiscal”, que mereceu acolhida geralmente favorável, na capacidade de se comunicar com clareza, de forma direta, sincera e objetiva. Sua missão é extremamente difícil diante de um presidente do Banco Central de duvidosa competência, manifestamente excessivo na prática de taxa de juros desnecessariamente elevada. Combater esse desvio de maneira inteligente, sem cair no desgaste de parecer não apreciar a seriedade da persistência inflacionária será seu principal desafio, assim como o de fazer aprovar no Congresso tanto o “arcabouço fiscal” como a mais árdua reforma tributária.