05 Fevereiro 2025
Svetlana Alexievich estava a escrever um livro sobre o amor, quando teve de abandonar a sua casa e fugir da Bielorrússia, durante a ‘revolução florida’ de 2020. Hoje com 76 anos e refugiada em Berlim, a prêmio Nobel da Literatura 2015 continua a insistir no tema que deu título a um dos seus livros mais conhecidos: A Guerra Não Tem Rosto de Mulher.
A reportagem é publicada por 7 Margens, 03-02-2025.
Numa entrevista ao caderno mensal Donne, Chiesa, Mondo [Mulheres, Igreja, Mundo], do jornal do Vaticano, L’Osservatore Romano, relativo a fevereiro de 2025, ela defende que “estamos todos prisioneiros de uma representação masculina da guerra, que surge de perceções puramente masculinas, expressas com palavras masculinas, no silêncio das mulheres”.
E desenvolve: “Nós passamos por eventos tão traumáticos, que acredito que somente o amor nos pode salvar. Sem amor, não podemos voltar atrás nem projetar-nos no futuro. Só através do amor à vida, à humanidade, podemos ter esperança de reconstruir o que foi destruído e pensar num amanhã.”
Svetlana Alexievich considera ter três ‘casas’: a Ucrânia, onde nasceu e terra natal da mãe; a Bielorrússia, onde viveu toda a vida e terra natal do pai; e a Rússia e a sua cultura, sem a qual não saberia viver.
Grande parte da sua vida foi a procurar e escutar relatos orais de memórias das mulheres sobre a Segunda Guerra Mundial, de que resultou, nos anos 80, o livro, traduzido em português, A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, com mais de dois milhões de exemplares vendidos, e relatos das pessoas que eram crianças quando as tropas alemãs ocuparam a Bielorrússia, que originou o livro As Últimas Testemunhas.
Com a destruição e o sofrimento, observa Svetlana, “pensávamos que no século XXI resolveríamos os conflitos sem violência, mas não foi o que aconteceu”. E quando a Rússia invadiu a Ucrânia, ela leu algures que se tratava de uma “guerra de velhos”, “com uma mentalidade do século passado: ocupação, violência, uma forma de conceber o progresso apenas pela força. (…). Hoje percebemos como o mundo realmente mudou tão pouco”, conclui.
Livro "A guerra não tem rosto de mulher", de Svetlana Aleksiévitch (Editora Companhia das Letras, 2016).
“A cultura ocidental tentou convencer-nos de que as ideologias acabaram, mas as guerras continuam”, afirmam Ritanna Armeni e Lucia Capuzzi, as duas entrevistadoras, perguntando porque será.
A escritora responsabiliza filósofos e políticos pelo falhanço. “Ainda hoje prevalece uma conceção antiquada do valor da vida humana”. E exemplifica com um caso passado numa reunião da Academia das Ciências, durante a tragédia de Chernobyl: “um professor idoso disse: “Sim, podemos evacuar as pessoas, mas quem avisa os animais? Quem salva a vida de pássaros, cavalos e cães? Veja, o homem pensa sempre apenas em si mesmo. Chernobyl representa a maneira como o homem concebe a vida. Mesmo hoje, ninguém parece refletir sobre como resolver os conflitos que nos separam.”
Para a escritora, desde os anos 90 do último século que se vem registando “uma profunda regressão na maneira como os seres humanos vivenciam os sentimentos e a espiritualidade. Eles simplificaram tudo, deixaram de lado a educação humanística para privilegiar a científica e técnica. Mas, sem a primeira, esquecemos as qualidades que caracterizam a essência do ser humano, aquelas que Deus nos deu.”
Já na reta final da conversa, as entrevistadoras questionam Svetana Alexievich sobre a pertinência e eficácia dos apelos do Papa Francisco ao fim da guerra. Na resposta, a Nobel da Literatura salienta que “a Igreja não pode abençoar a violência” e começa por criticar o que diz ter visto em Moscovo: padres ortodoxos a abençoar as armas dos soldados e até mesmo os submarinos destinados a levar a morte. “Na Bielorrússia, em contrapartida, durante a revolução, vi muitos padres católicos abrirem as portas das igrejas para dar abrigo aos manifestantes. E eles salvaram muitas vidas. A Igreja Católica demonstrou uma grandeza que outras instituições não tiveram. Ainda tenho uma lembrança muito clara de Chernobyl, quando as igrejas estavam cheias de pessoas desesperadas, que procuravam por respostas. Hoje, acredito que precisamos de retornar a esses valores religiosos, à fé no futuro. Sem futuro, não há humanidade.”
Concluindo, a escritora declara: “Ainda me lembro das lágrimas nos olhos dos cavalos, em Chernobyl, forçados a serem abatidos. Naquele momento entendi que todos nós fazíamos parte de um só mundo, de uma só vida. Não faz mais sentido sentirmo-nos apenas russos ou bielorrussos, somos todos vítimas de uma ofensa maior, aquela que é perpetrada por seres humanos contra a vida.”