Por isso, revogar a acintosa Lei 10.820/2024 não é mais suficiente se não vier acompanhada da demissão imediata do secretário responsável pela pasta. Ora, está mais do que comprovado que Rossieli Soares, vindo do centro-sul do país, não demonstrou a mínima sensibilidade para com os donos ancestrais da região, os povos originários. Seria, pois, uma excelente oportunidade para Helder Barbalho finalmente aprender com humildade que a dignidade e a resistência dos indígenas são inegociáveis. Nunca é tarde, governador!
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceberem as injustiças sociais de maneira crítica”, alertou Paulo Freire[1], há mais de 40 anos. De fato, nunca foi interesse dos governantes um povo educado para a cidadania. E o estado do Pará, capital da próxima conferência mundial do clima, não parece ser exceção. Na calada da noite e sem qualquer escuta dos afetados, o governo de Helder Barbalho (MDB-PA) aprovou a Lei 10.820/2024 que altera profundamente a educação em regiões de difícil acesso. Os atingidos? Povos Indígenas, ribeirinhos, camponeses e quilombolas. Mas os descendentes dos cabanos se levantaram com indignação!
A referida lei fragiliza conquistas obtidas com duras lutas dos movimentos sociais e traz nefastas mudanças que apenas sucateariam ainda mais a educação pública estadual. Entre elas estão a não garantia de continuidade do Sistema de Organização Modular de Ensino (Some) e o Sistema Modular de Ensino Indígena (Somei) – que permitem a educação presencial em comunidades remotas –, a facilitação da ampliação do ensino à distância e o enfraquecimento do controle social, com a exclusão do sindicato dos professores do comitê de avaliação. É de se perguntar com franqueza: quantos especialistas em educação foram realmente ouvidos e a quem interessam as medidas adotadas pelo estado?
Na realidade, fica evidente o desprezo que as autoridades estaduais paraenses sempre nutriram pelos povos originários, os camponeses e os quilombolas. Como demonstra um dos vídeos nas redes sociais de Barbalho, quem dita o viés das políticas estaduais é o agronegócio de sempre. Vê-se o crescimento de uma mercadocracia, que em nome do culto ao deus-mercado, não se importa em sacrificar um dos bens mais valiosos do seu povo, a educação pública de qualidade. Nesse sentido Eduardo Galeano já denunciava os interesses mesquinhos do capitalismo teocrático:
“A divinização do mercado, que compra cada vez menos e paga cada vez pior, permite entupir de bobagens mágicas as grandes cidades do Sul do mundo, drogadas pela religião do consumo, enquanto os campos se esgotam, as águas que os alimentam apodrecem e uma crosta seca cobre os desertos que antes eram floresta. (...) O mundo está sendo extirpado de sua pele vegetal, e a terra já não pode absorver as chuvas. As secas e as inundações se multiplicam enquanto as florestas tropicais sucumbem, devoradas pelas explosões da pecuária e pelas culturas de exportação que o mercado exige e os banqueiros aplaudem”.[2]
Se o governador pensava que os ataques à educação seriam docilmente aceitos pelo movimento indígena em troca de uma esvaziada Secretaria Estadual de Povos Indígenas e meia dúzia de cargos, deve ter tido uma desagradável surpresa. Desde o dia 14 de janeiro, as organizações de base indígenas marcharam para Belém e ocuparam a sede da Secretaria de Educação. A reação do chefe do executivo local – com o envio da Tropa de Choque da Polícia Militar – foi catastrófica e bastante simbólica do descaso com que as comunidades indígenas são tratadas no país.
Com a onda de extremismos que assola a sociedade a política vem em um enfraquecimento constante e a ideologia neoliberal tem cada vez mais se apoderado do estado. Os humores dos mercados valem mais do que a vontade popular e seus intérpretes querem impor cortes de gastos draconianos, sufocando as políticas públicas fundamentais para a diminuição da desigualdade social. Infelizmente, o advento da pandemia e o papel primordial do poder estatal não parecem ter sido suficientes para convencer as elites financeiras.
Obviamente, em nome do “saneamento das contas públicas” e do “ajuste fiscal” alguns milhares de alunos do Pará profundo – bem longe dos holofotes da mídia internacional que estará cobrindo as boas práticas ambientais do estado – serão relegados a posição que sempre ocuparam na ordem de prioridades políticas: a mais absoluta irrelevância e o total esquecimento das autoridades. Afinal, além das icônicas fotos e dos belos discursos para a comunidade internacional, quando foi que os Povos Indígenas foram efetivamente tratados com dignidade nesse país?
De acordo com a nova face mais palatável do sistema econômico, o capitalismo verde, os senhores do mundo descobriram que se pode lucrar mais com a floresta em pé do que destruída. Por isso, os representantes do capital correm para monetizar o bioma amazônico e calcular quanto podem lucrar com as novas “commodities verdes”. Flora e fauna, rios e igarapés, montanhas e vales, tudo deve ser convertido em cifras a serem faturadas pelos donos do dinheiro.
Se antes os povos da floresta e das águas eram inimigos declarados do “progresso econômico”, agora podem ser cooptados e transformados em “parceiros estratégicos” mediante algumas migalhas a serem oferecidas das riquezas extraídas de seus territórios. Vale considerar o quanto exposto pelo jurista Rubens Casara:
“Deu-se, com este capitalismo desinibido, mais pornográfico do que nunca, uma profunda mutação antropológica que levou seres humanos a se perceberem como empresas, a tratarem e serem tratados como objetos negociáveis e/ou descartáveis. A acumulação tendencialmente ilimitada do capital é a meta a condicionar a transformação do Estado, das relações sociais e da subjetividade. A lógica é a do ‘vale-tudo’, em que tudo acaba colonizado e instrumentalizado à obtenção de lucros e/ou de vantagens pessoais: as pessoas, a política, o Direito, o amor (reduzido à ideia de satisfação pessoal) etc.”.[3]
E agora que se tem descoberto a força política dos Povos Indígenas, as velhas raposas que se revezam no poder resolveram jogar com as vaidades e ambições pessoais de lideranças indígenas, investindo sorrateira e indecentemente na divisão e na asfixia das legítimas reivindicações das comunidades. Conforme denunciado pelas organizações que lideram as manifestações no Pará – com o destaque do independente e altivo Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (CITA) e suas corajosas lideranças femininas – o governo Helder Barbalho vem trabalhando para confundir e semear a discórdia entre o movimento indígena, com intenso assédio e tentativas imorais de conseguir o apoio de outros líderes.
Até agora as próprias secretária estadual e ministra dos Povos Indígenas, antigas lideranças do movimento, pouco contribuíram para o avanço da pauta apresentada pelas bases. Conseguirão manter-se fieis aos seus princípios e à causa indígena ou sucumbirão às negociatas mirando apenas em suas carreiras individuais?
Não se esqueçam as parentíssimas que, se não forem firmes e atuarem com clareza – sem margem para dubiedades ou inaceitáveis concessões –, posicionando-se favoravelmente aos seus parentes, perderão legitimidade perante as organizações que um dia lideraram. Então, o futuro mais certo será o completo fracasso e o inglório ostracismo. Caso não possam continuar atuando com a liberdade necessária deveriam renunciar às suas posições institucionais e juntar-se aos protestos contra os retrocessos na educação paraense.
A pretensão do Brasil em exercer um protagonismo em questões socioambientais depende dos avanços concretos da COP 30. E iniciar o ano em que se realizará a grande cúpula tratando os donos da casa com truculência e animosidade será o começo de um estrondoso e anunciado fiasco. Não se trata de mera questão local, que o governo federal pode se dar ao luxo de ignorar. Antes disso, não só o país acompanha cada vez mais atento ao deslinde da questão, mas também os organismos internacionais começam a demonstrar um interesse que causará grande constrangimento ao governo anfitrião caso os indígenas sejam humilhados e sofram mais violência.
As últimas duas COPs foram sediadas em países pouco democráticos e fortemente dependentes do petróleo, em razão de suas imensas reservas de hidrocarbonetos. Assim, a expectativa em relação à conferência do clima no Brasil é grande. Os lobbies empresariais trabalham incansavelmente para que pequenas mudanças mantenham suas altas margens de lucro e o sistema passe o mais incólume possível. Assim advertiu o pensador uruguaio:
“As empresas gigantes da indústria química, da indústria de petróleo e da indústria automobilística patrocinaram boa parte da Eco-92, a conferência internacional que no Rio de Janeiro se ocupou da agonia do planeta. E essa conferência, chamada de Cúpula da Terra, não condenou as empresas transnacionais que produzem contaminação e dela vivem, e nem mesmo pronunciou uma única palavra contra a ilimitada liberdade de comércio que possibilita a venda de veneno”.[4]
Saberá o governo trabalhar em conjunto com os vários povos da terra, principalmente as comunidades originárias, para pressionar os demais países e obter vitórias significativas para o planeta e a humanidade? Ou cairá na estúpida cilada de se achar mais esperto do que os habitantes ancestrais da Pan-Amazônia e tentará manipulá-los e conduzi-los ao seu bel prazer? Já não basta a vergonha histórica carregada, em virtude das vantagens e das mentiras contadas por séculos, que mancham a história dos colonizadores e seus descendentes?
Muitos interesses estão em jogo e o claudicante estágio da crise climática não tolera mais o uso de subterfúgios e meias verdades. Os Povos Indígenas do Pará já avisaram que não haverá COP 30 se continuarem a terem seus direitos violados e atacados pelo governo do jovem herdeiro do clã Barbalho. Resta saber de qual lado o presidente Lula estará, sendo que a simples omissão implica em se aliar aos detentores do poder local. Pelo visto, ter enviado a Ministra dos Povos Indígenas pouco acrescentou.
Para quem ainda não teve a oportunidade, pesquisem e ouçam os sábios posicionamentos públicos de Alessandra Korap Munduruku e de Auricelia Fonseca Arapiun. Ouvi-las faz o menos engajado dos cidadãos sentir-se eletrizado com tamanha coerência e autoridade! Elas não estão dispostas a serem ignoradas e seu apoio parece estar fora de qualquer negociação pessoal. Suas vozes reverberarão até os palácios no planalto central?
Justa e razoável, a pauta do movimento indígena não foi acolhida por um intransigente Barbalho que, em uma reunião tensa com os indígenas que foram recebidos sob um ameaçador esquema de segurança, quis enfraquecer a luta pela educação geral fazendo algumas fracas promessas exclusivamente à educação indígena. Além de risível, a estratégia era esvaziar as manifestações daqueles que mais tem visibilidade internacional (povos originários) e abandonar à própria sorte os quilombolas, os camponeses e os professores das escolas públicas das periferias. O movimento rechaçou com a grandeza e o senso de coletividade que lhe é próprio a tentativa rasteira do empertigado governador.
Em nenhum momento, seja durante a construção do projeto de lei pela Secretaria da Educação ou na tramitação na Assembleia Legislativa, as comunidades indígenas foram devidamente consultadas. Essa postura do executivo estadual, além de anti-republicana e arrogante, viola o direito à consulta livre, prévia e informada, previsto na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – recepcionada pelo sistema jurídico brasileiro com força supralegal.
Por isso, revogar a acintosa Lei 10.820/2024 não é mais suficiente se não vier acompanhada da demissão imediata do secretário responsável pela pasta. Ora, está mais do que comprovado que Rossieli Soares, vindo do centro-sul do país, não demonstrou a mínima sensibilidade para com os donos ancestrais da região, os povos originários. Seria, pois, uma excelente oportunidade para Helder Barbalho finalmente aprender com humildade que a dignidade e a resistência dos indígenas são inegociáveis. Nunca é tarde, governador!
“A coragem (inclusive de pensar e de amar) é, assim, um ato de liberdade do qual cada indivíduo é capaz e, ao mesmo tempo, uma aprendizagem em razão de uma situação concreta que exige uma ação”, ensina Casara. “A coragem democrática, por exemplo, está ligada a tomar a palavra e a assumir ideias contra-hegemônicas em defesa dos princípios e das regras democráticos – inclusive contra o silêncio e em oposição aos comandos da normatividade neoliberal que levam à ausência de reflexão”, continua o professor. Como não se impactar com a coragem e a força dos Povos Indígenas do Pará que dizem não ao desmonte da educação pública e sim à valorização de seus professores e sábios?
“Pensar é resistir”, finaliza Casara, “pensar é o ato de coragem que leva a dizer ‘não’, sempre que o ‘sim’ for baseado na ausência de reflexão”[5]. Barbalho e seus assessores do alto de sua torre de Belém resolveram atacar a base de qualquer sociedade ambientalmente equilibrada, a educação pública. Todavia, não contavam que as matriarcas do urucum e suas comunidades do Tapajós se colocariam furiosamente contrárias às trevas do atraso e da ignorância.
O movimento indígena venceu, governador, e enquanto não se reconhecer isso Belém se ensurdecerá ao som dos sagrados maracás, como que despertando àqueles que foram anestesiados pelo comodismo ou pela hipocrisia. Afinal, segundo o Patrono da Educação Brasileira os indígenas do Pará escolheram o lado correto dessa luta, porque “lavar as mãos do conflito entre os poderosos e os impotentes significa ficar do lado dos poderosos, não ser neutro”, porque “o educador tem o dever de não ser neutro”[6]. E as professoras e os professores indígenas, bem como suas aguerridas lideranças, não irão se acovardar e abandonar o futuro de suas crianças. Desse jeito, não vai ter COP 30!
[1] FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
[2] GALEANO, Eduardo. Use e jogue fora: nosso planeta, nossa única casa. Porto Alegre: LPM, 2024, p. 14-15.
[3] CASARA, Rubens. A construção do idiota: o processo de idiossubjetivação. Rio de Janeiro: daVinci, 2024, p. 314-315.
[4] GALEANO, Eduardo. Use e jogue fora: nosso planeta, nossa única casa. Porto Alegre: LPM, 2024, p. 17.
[5] CASARA, Rubens. A construção do idiota: o processo de idiossubjetivação. Rio de Janeiro: daVinci, 2024, p. 315-316.
[6] FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Unesp, 2000.