28 Setembro 2023
A líder indígena assumiu o cargo em abril deste ano em um estado que está entre os líderes de desmatamento e garimpo ilegal na Amazônia. Com a sexta maior população indígena do país, o Pará precisa combater essas ameaças e atender às demandas das comunidades.
Quando tinha 30 anos, Puyr dos Santos Tembé deixou pela primeira vez a aldeia São Pedro, na Terra Indígena (TI) Alto Rio Guamá, no nordeste do Pará. Seu plano era viver em Belém e fazer faculdade de Direito. Acabou ocupando um espaço que não imaginava. Em alguns anos, se destacou como liderança indígena feminina. Entre 2010 e 2022, passou pela Secretaria de Estado de Educação, assumindo a Educação Escolar Indígena, foi eleita presidente da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa) e também ajudou a fundar a Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA).
Então, em março deste ano, Tembé foi convidada para dirigir a Secretaria de Estado dos Povos Indígenas (Sepi), pasta inédita no estado e criada pelo governo de Helder Barbalho (MDB). Assumiu a secretaria em abril e, agora, há quase seis meses à frente do cargo, ela falou em entrevista à InfoAmazonia sobre os principais desafios e a situação nas áreas mais críticas do estado.
O Pará acumula, desde 2006, os piores índices de desmatamento entre os nove estados da Amazônia Legal, e tem duas das terras indígenas Territórios da União reconhecidos e delimitados pelo poder público federal para a manutenção do modo de vida e da cultura indígenas em todo o país. (TIs) mais afetadas pelo garimpo ilegal: Munduruku, no sudoeste do estado, e Kayapó, a sudeste. De acordo com o Censo de 2022 do IBGE, o estado tem a sexta maior população indígena do país, contando com 80.974 indivíduos, dos quais 41.819 residem em terras indígenas, correspondendo a 51,64% do total, enquanto 39.155 habitam áreas urbanas, representando 48,35% da população indígena paraense.
“Eu digo que temos que combater mesmo os ilícitos, doa a quem doer, e o estado tem que agir, fazer agora, se quiser mostrar algum resultado positivo. E eu não quero fazer falas me defendendo, eu quero falar do que estamos fazendo, dos diálogos que estão sendo construídos”, disse Tembé. “Nesses cinco meses, temos recebido e conversado com os povos, tentado ajudar e atender as demandas, além de buscar parcerias também, porque o estado, por si só, ele nos engessa. Eu estou me movimentando para que a secretaria tenha outras formas de autonomia, para que a gente possa executar as políticas públicas o mais rápido possível nas comunidades que precisam com urgência”.
A reportagem é de Emily Costa, para o projeto PlenaMata, publicada por InfoAmazonia, 27-09-2023.
Quais foram os principais desafios à frente da secretaria nestes seis meses de 2023?
O principal desafio sempre é estar incorporada à coragem. Coragem de continuar em um estado que tem um alto índice de desmatamento, de eliminação total da vegetação nativa numa determinada área seguida, em geral, pela ocupação com outra cobertura ou uso da terra, de grilagem. Ocupação ilegal de terras públicas por meio da falsificação de documentos, garimpo, de falhas no acesso a políticas públicas.
É um desafio enorme pensar, construir, levar essas políticas às comunidades tão distantes e, além disso, chegar e proteger as comunidades de recente contato, que é onde está o grande foco de desmatamento, e as terras indígenas alvos de grande cobiça.
Esses são os maiores desafios. Além disso, nós temos também um estado em que nunca teve uma pasta como essa e hoje você tem uma secretaria onde, de certa forma, você tem que dialogar com outros secretários, e muitos deles não compreendem a pauta indígena. É tipo ‘você que lute’ e o desafio é conscientizar, trazer essas pessoas para o nosso lado. Explicar que o que está na pasta deles tem pauta indígena sim e que eles precisam também levar políticas públicas. É a sensibilização, é o reflorestar mentes dentro do espaço público. Esse é o desafio, é garantir os direitos dos povos indígenas.
Em 2023, nós vimos se repetir e se agravar o conflito que ficou conhecido como guerra do dendê. Onde e como esse conflito acontece?
Ali é fato. Há um conflito territorial, que também não é só com povos indígenas, porque há outros segmentos envolvidos. Há uma briga pela área onde está o dendê e, volto a dizer, é uma briga da empresa, uma briga territorial e há uma falha total no diálogo. A empresa por si só é abusiva, não tem uma metodologia de diálogo. Os povos indígenas por sua vez lutam pelos seus direitos e pelos seus direitos não vão recuar nenhum centímetro. E o estado tem também as suas falhas. Hoje já tem um Grupo de Trabalho que dialoga, que está ali, envolvido. Inclusive a secretaria faz parte e busca melhorar o diálogo para encontrar uma solução para aquela região. Mas o conflito ainda precisa ser sanado, resolvido, que é a questão da TI do povo Tembé da região de Tomé-Açu.
Recentemente, o povo Tembé obteve a devolução de parte do território da TI Alto Rio Guamá. Qual é a importância da devolução dessas terras para os povos da TI Guamá?
Para nós, tem um valor muito significativo. A gente levou mais de 20 anos lutando pela desintrusão e foi todo um processo. Primeiro, lutamos pela homologação, porque demarcada [a terra] já estava. E, depois, se passam mais de 20 anos para ocorrer a desintrusão. E o povo Tembé sempre lutando, resistindo, persistindo pela garantia desse território e, enfim, conseguimos o território. Hoje, o desafio é como fazer a gestão desse território, porque não é só desintrusão, mas também discutir que políticas vamos desenvolver para que a gente consiga reflorestar, promover a regeneração do território que ficou devastado pelo desmatamento. Isso porque ali é uma TI em que há um alto índice de cobiça pela retirada de madeira.
Para nós, o que vem agora não é só espalhar os indígenas para todos os lados, mas justamente ocupar pensando em reflorestar a região como um todo, além de receber projetos de sustentabilidade para que possamos trazer bons frutos e servir de modelo para outros territórios que também vão passar por desintrusão.
Qual a situação atual nas terras indígenas Kayapó e Munduruku, que ficam no Pará, e são as mais afetadas pelo garimpo no país?
Continuam ocupadas pelo garimpo. Sabemos que ocorreram e estão ocorrendo ações de fiscalização, mas é muito difícil porque, além dos garimpeiros, nós sabemos que o nosso povo é assediado pelo sistema. O garimpo não envolve só os brancos, também envolve as populações indígenas que são pressionadas. Alguns membros, não são todos, assim como também há um grupo contrário ao garimpo que é muito forte.
Então, precisamos que o Estado, os parceiros e os aliados criem condições para que as pessoas que se opõem a essa atividade possam efetivamente combatê-la. E como lutar contra um sistema que se assemelha a uma doença incurável? Pois é exatamente assim que se apresenta. Você cura aqui, sana e aparece um outro foco ali. É como um câncer que vai matando aos poucos. Por isso, eu acho que ainda precisamos achar uma solução para combater essa doença que adentra os territórios e a vida das pessoas. O garimpo é uma coisa que literalmente mata. Mata a floresta, mata quem está envolvido, e é um sistema, que é o pior de tudo, que mata os mais vulneráveis.
A Terra Indígena (TI) Apyterewa é a mais desmatada do país, e recentemente a Força Nacional foi enviada para auxiliar a conter o avanço da destruição. Por que essa TI é tão ameaçada e o que acontece com os povos dessa região?
Essa terra é muito ameaçada devido ao seu tamanho (773 mil hectares, equivalente a sete vezes o estado do Rio de Janeiro), à quantidade significativa de floresta que ainda abriga, e também ao fato de sabermos que há atividades de mineração na região. A nossa preocupação é grande porque é uma terra que tem povos isolados de recente contato. A cobiça ali também é dos grandes latifundiários, e tem uma questão política, porque há políticos dentro do processo.
O governo do Pará tem colaborado para a desintrusão das TIs Apyterewa, Cachoeira Seca, e Munduruku? De que maneira?
Tem sim. Talvez isso não apareça, mas, há 15 dias, nós nos sentamos com um dos coordenadores da ação e não só eu, como também o gabinete do governador, junto com a Força Nacional, outras secretarias, e muito da estrutura que está sendo usada é o estado que está dando. Helicópteros, bases. E tem também o caso da inteligência policial que em alguns casos escolhem não usar as polícias locais por conta das relações que alguns já têm ali. Não vai ser diferente na TI Apyterewa, nos municípios de Altamira e São Félix, de Itaituba, Jacareacanga no caso da TI Munduruku. Muitos dos policiais do estado nem participam, mas estarão usando as bases, a estrutura do estado para essas ações ocorrerem. E nós, enquanto Secretaria dos Povos Indígenas, também participamos. Uma das coisas que eu falei é que nós não queremos só ser chamados para fazer entrega, nós queremos participar de todo o processo.
Como a Secretaria de Povos Indígenas está dialogando com a Secretaria de Meio Ambiente no que diz respeito à implementação da estratégia estadual de bioeconomia? E como isso se traduz em políticas concretas para os territórios?
Nós estamos dialogando, e eu, particularmente, fico próxima dessa pauta. O Plano de Bioeconomia do estado teve participação de todos os segmentos, inclusive dos povos indígenas, mas a gente precisa fazer com que esse plano dê certo e seja implementado com políticas públicas. É um processo. Como isso chega? Como levar essa ferramenta com ações concretas? Acho que já estamos conseguindo fazer isso, mas eu ainda defendo que a gente precisa pensar também em fazer uma nova rodada, uma discussão desse plano sem esquecer da sociobioeconomia. Nós queremos uma nova roupagem com a discussão da sociobioeconomia nos territórios e, além disso, ‘espremer’ esse conceito, para que a Secretaria de Povos Indígenas também possa ter um plano de ação para a implementação.
Até o fim do ano, quais são suas principais metas à frente da secretaria de povos indígenas do Pará?
Hoje estou muito focada na construção da nova sede da secretaria, para que em 2025 a gente tenha condições de realizar uma COP30 no Pará, recebendo as delegações, os povos (atualmente a Secretaria funciona no mesmo prédio que a Secretaria de Igualdade Racial).
Outra meta é concluir nosso planejamento estratégico, ter mais uma reunião do conselho estadual de política indigenista para medirmos o que já foi feito e o que precisa ser executado. Também temos foco em discutir projetos de habitação para dentro dos territórios, e já temos uma equipe em campo, para levar políticas habitacionais.
Na educação, queremos executar o concurso para os professores indígenas, que já está se encaminhando. E, além disso, nos organizarmos e nos preparamos para a COP, que já é um fato, mas que se nós não conseguirmos combater os ilícitos dentro dos territórios não faz muito sentido receber um evento desse porte. Esse é um dos nossos desafios, e um dos nossos gargalos. Precisamos estancar onde está sangrando, se é que queremos mostrar resultado do que estamos fazendo. E não é só estancando o garimpo, o desmatamento, as queimadas, que vamos conseguir fazer isso, mas levando políticas públicas que fiquem, independentemente do governo, para os povos indígenas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
‘Desafio é reflorestar mentes no espaço público’, diz Puyr Tembé, primeira secretária dos Povos Indígenas do Pará - Instituto Humanitas Unisinos - IHU