22 Dezembro 2024
Após proferir o discurso de abertura da COP26 em Glasgow, no dia 1º de novembro de 2021, a vida de Txai Suruí deu uma guinada. “Não é 2030 ou 2050, é agora! Os povos indígenas estão na linha de frente da emergência climática, por isso devemos estar no centro das decisões que ocorrem aqui”, disse ele num discurso que se tornou viral em questão de horas. Ao terminar, um homem da delegação brasileira se aproximou dela e a repreendeu por ter “falado mal” do país. Pouco depois, o próprio Jair Bolsonaro a criticou em suas redes sociais. Txai Suruí, que na época tinha apenas 24 anos, começou a receber mensagens de ódio e ameaças de morte.
A reportagem é de Bernardo Gutiérrez, publicada por Ctxt, 17-12-2024.
Em troca, seu nome foi projetado mundialmente. O New York Times falou de outra jovem, que não era Greta Thunberg, mas sim Txai, sob os holofotes. Era inevitável: Greta e Txai logo se conheceram e se reconheceram como dois lados de uma mesma luta.
“Foi muito bom conhecê-la, ela é um pouco parecida comigo e muito simpática. Greta me agradeceu por tudo que os indígenas estão fazendo. Ela me disse que sempre estará atrás de nós, fortalecendo a luta. Eu disse a ela que não, que ele não estava atrás, que estava ao nosso lado”, garante Txai Suruí ao CTXT, em entrevista que começou a tomar forma durante o encontro Território de Saberes e acabou acontecendo no Festival Internacional de Literatura de Paraty (FLIP), realizada na zona sul do Rio de Janeiro.
Desde a sua intervenção em Glasgow, a aura de Txai Suruí cresceu incontrolavelmente. Ele apareceu na lista da Forbes dos cem ativistas mais influentes do mundo. Também na lista da revista Time. O documentário da National Geographic O território (2022), do qual foi coprodutora, ganhou um Emmy. O filme, que aborda os problemas ambientais do estado amazônico de Rondônia, onde reside a etnia Pater Suruí, também foi premiado no festival de Sundance. “O diferencial do filme é que somos nós nos expressando, com nossa perspectiva. Não estamos na frente das câmeras, mas atrás delas. Quando cheguei aos festivais, as pessoas pensavam que eu era o protagonista do filme, mas nunca que eu era o produtor. É importante contra-colonizar o espaço do cinema. O território foi uma forma de sair da nossa bolha”, afirma a liderança indígena.
Indígenas com visão global. O Txai Suruí quebra os estereótipos habituais sobre os povos indígenas. Graduado em Direito. Poliglota: fala Pater Suruí, português e inglês. Ele manuseia referências culturais de todo o mundo: em poucos minutos cita um poema do martinicano Aimé Césaire, um ritual do povo Mapuche e do movimento juvenil pelo clima da Europa. Embora passe algum tempo em Cacoal, na Terra Indígena Sete de Setembro onde cresceu quando criança, a maior parte do tempo é em Porto Velho, capital do estado de Rondônia. Ela se considera uma indígena urbana. E circula regularmente pelas principais capitais do mundo. Acabou de participar como palestrante da exposição Amazônia. O futuro ancestral do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona (CCCB).
Txai confessa que o maior choque cultural da sua vida foi causado pelo individualismo e pela hierarquia da sociedade ocidental. Quando estudava na universidade ficou surpreso ao descobrir que a propriedade coletiva não estava contemplada no regime jurídico. “A lei é baseada na propriedade privada, certo? Justiça também, por isso é racista. Vejo muita diferença entre a forma como nós, na aldeia, tomamos decisões coletivamente e como os grandes líderes mundiais as tomam nesses espaços de poder. Na aldeia decidimos tudo coletivamente. Não esses caras. Eles decidem tudo através do lobby das grandes empresas. Eles chegam com tudo pronto para tomar decisões sobre nossas vidas. Estão trilhando o caminho do negacionismo e não da mudança radical que precisamos”, esclarece Txai.
Outro dos estereótipos destruídos pela vida e obra de Txai Suruí tem a ver com tecnologia. Coordenadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé e fundadora do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia, Txai lidera uma rede de 21 povos indígenas que utilizam a tecnologia para proteger seu território. GPS, drones, câmeras, celulares e aplicativo móvel próprio (USMDK) para coleta de alertas sobre desmatamento, exploração mineral e incêndios. Onde os promotores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) não chegam, há um drone da equipe do Txai coletando provas de crimes ambientais. Ela se baseia no trabalho de seu pai, Almir Suruí, que em 2007 fechou convênio com o Google Earth: o Mapa Cultural Suruí que surgiu da colaboração reúne fotos, vídeos e animações em 3D. “Antes nossas armas eram o arco e a flecha. Hoje, é a câmera e o celular. Nós os usamos para denunciar, mas também para dizer quem somos, para falar da nossa visão de mundo, do nosso modo de vida, das soluções que colocamos em prática no território”, afirma Txai Suruí.
A jovem indígena brinca sobre o uso de IA (Inteligência Artificial). “Já que se fala tanto em IA, digo-vos que também utilizamos IA, a nossa Inteligência Ancestral. Um precisa do outro. Utilizamos essas duas inteligências, a artificial e a ancestral, porque nossos inimigos utilizam muito bem a tecnologia para fortalecer suas narrativas de destruição. Usamos a tecnologia para negar notícias falsas, para contar a nossa história, para mostrar a nossa realidade. “Aprendemos a pilotar drones para coletar provas (de crimes ambientais)”, diz Txai Suruí. Ao falar da Amazônia, ela ironicamente usa metáforas urbanas: “O conhecimento ancestral nos ajuda a caminhar na selva. Porque a selva é como a cidade, tem ruas, endereços... Tem aquela árvore que está sempre ali, tem aquele lugar onde os animais se reproduzem, tem aquele cantinho sagrado...”.
A Txai Suruí acaba de lançar Uma canção de amor (Elo Editora), livro ilustrado para todas as idades. Suas páginas são um apelo ardente pela vida. Em suas páginas, Txai vincula o amor à revolução. Carinho, à proteção da selva: “Precisamos ser desafiados pelo amor e pela alegria. Porque os cientistas fornecem muita informação sobre as alterações climáticas, que estão acontecendo a uma velocidade que ninguém previu, mas que não consegue desafiar as pessoas. Temos que aprender a dialogar com histórias de amor e carinho. Temos que reflorestar as mentes e os corações das pessoas.” Para Txai, a partir do momento em que nos permitimos amar o outro, praticamos a revolução do cuidado: “Amo pela terra, amo pela natureza, amo pelo próximo”.
De repente, Txai começa a contar lendas amazônicas. Ele fala da árvore barriguda, na qual sua etnia situa a origem da mulher. Ela cita a sumaúma (ceiba pentandra), árvore sagrada que pode atingir setenta metros de altura. “Como é possível que as crianças da cidade pensem que a comida vem dos supermercados... Perdeu-se a ligação da coleta manual de alimentos. Esquecemos de onde vem. Nosso corpo é uma extensão do nosso território. Meu corpo-território está aqui para transmitir conhecimento. Essa conexão nutre o corpo e o espírito. Por isso, meu povo nunca estará morto enquanto eu estiver vivo”, afirma com veemência.
Txai Suruí vai das reflexões poéticas às críticas ao sistema capitalista sem modificar o tom amoroso. Ela questiona duramente os pesticidas (“puro veneno”) utilizados pelo setor agrícola. E o fato do “agronegócio” brasileiro estar boicotando o Programa Nacional de Agroecologia (Pronaca) que o Governo Lula está tentando realizar para reduzir o consumo de agrotóxicos. Por sua vez, Txai responsabiliza o primeiro mundo diretamente pelos conflitos que atravessa seu território: “Na minha terra nascem os 17 principais rios que banham o Estado de Rondônia e nesse território também existem vinte mil cabeças de gado ilegais. Não podemos nem circular por parte do nosso território, porque podemos morrer nas mãos de agressores. O grupo JBS compra essa carne e exporta para Europa e Estados Unidos”, afirma. O Grupo Cassino continua comercializando carnes da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, pela qual Ivaneide Bandeira Cardozo, mãe de Txai Suruí, lutou a vida toda. Apesar de ter sido denunciada na justiça francesa, a venda de carne continua.
Txai Suruí, como declarou em seu já famoso discurso em Glasgow, considera os povos indígenas a peça-chave no combate às mudanças climáticas. “Se a Amazônia é a selva com maior biodiversidade do mundo é graças a nós, certo? Querem nos colocar como obstáculo ao progresso, ao desenvolvimento, mas estamos mostrando que existem outras formas de viver em harmonia com a natureza. Na minha terra plantamos agroflorestas (termo usado para sistemas agrícolas que conservam a selva) para evitar que a monocultura e o nosso povo comam alimentos contaminados com veneno”, afirma.
Txai resume todos os males que assolam o planeta em uma única metáfora: a “geração sintética”. Uma geração predatória que deixa um rastro de destruição. Para se defender desta cultura sintética, exige uma nova “geração neta”, uma geração que cultive um presente. Uma geração que atua como “interlocutor entre o passado e o futuro”. Como escreve em Uma canção de amor , “o muro que chamam de civilização e que na verdade é a colonização” só será derrubado com uma visão de mundo diferente. “Seremos a transformação, voaremos como pássaros que levam sementes no bico para os quatro cantos do mundo, plantando e cultivando”, escreve a “pequenina” jovem que caminha à frente (ou ao lado) de Greta Thunberg.
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“Antes nossas armas eram o arco e a flecha. Hoje é a câmera e o celular” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU