Queimadas, ondas de calor e alteração no nível do mar são só alguns dos eventos climáticos que já fazem parte da realidade dos povos originários.
A reportagem é de Marina Oliveira, publicada pelo Conselho Indigenista Missionário - Cimi, 16-11-2021.
Há alguns anos, falar sobre mudanças climáticas parecia algo distante e até soava aos ouvidos de muitas pessoas como “papo de ambientalista”. Mas, infelizmente, elas já fazem parte da nossa realidade: ondas de calor, queimadas, elevação do nível do mar, longos períodos de seca e disseminação de doenças são só alguns dos fenômenos que retratam as alterações no clima global.
No dia 9 de agosto deste ano, o Painel Intergovenamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês) publicou um relatório com o alerta de que é inequívoco que as ações humanas aqueceram a atmosfera, os oceanos e a superfície terrestre. Ainda de acordo com o documento, a previsão é que o aquecimento global ultrapasse 1,5ºC antes do meio do século, caso não sejam adotadas “ações imediatas”.
Mas você já parou para refletir sobre como esses eventos climáticos atingem a vida dos povos indígenas? Para a presidenta do Comitê Global e Regional para Parceria com Povos Indígenas e Populações Tradicionais, Francisca Arara, mesmo preservando e mantendo a floresta em pé, os povos já sofrem os impactos das mudanças do clima, direta ou indiretamente.
“A segurança alimentar é um dos principais problemas que enfrentamos. Estamos perdendo alimentos em razão dos alagamentos inesperadas e do calor excessivo. Além disso, as chuvas estão ocorrendo fora de época e não temos mais um calendário tradicional como antes. Tudo mudou”, lamentou.
Francisca também fez um alerta sobre os cuidados a longo prazo. “É muito importante que os povos indígenas comecem a montar estratégias para guardar as sementes tradicionais, pensando já no futuro. Mas é preciso também assegurar políticas que resguardem os nossos direitos, porque, logo mais, podemos sofrer com a perda da alimentação, dos peixes, da caça, dos legumes e das frutas. Precisamos nos preparar para as mudanças que virão”.
Queimada na Reserva Extrativista Jaci-Paraná, em Porto Velho, Rondônia (Foto: Christian Braga/Greenpeace)
O Projeto Mapbiomas publicou em agosto deste ano um levantamento inédito que apresenta o impacto do fogo sobre todo o território brasileiro a partir da análise de imagens de satélite feitas entre 1985 e 2020. De acordo com o estudo, a cada um desses 36 anos o Brasil queimou 150.957 km², ou seja, 1,8% do país. Dentro desse recorte, 11,2% das áreas queimadas são territórios indígenas.
Os pesquisadores identificaram, inclusive, que as altas taxas de desmatamento, especialmente antes de 2005 e depois de 2019, contribuíram com o aumento da área queimada em períodos de seca – entre julho e outubro.
Ainda de acordo com o levantamento, o Pantanal foi o bioma mais atingido ao longo dessas mais de três décadas: 57% do território foi queimado pelo menos uma vez entre 1985 e 2020. Já os biomas Cerrado e Amazônia representam 85% da área queimada nesse período, sendo 44% e 41% respectivamente.
Na avaliação de Arara, os altos níveis de queimadas, muitas vezes associadas ao desmatamento, causam impactos também no cenário da pandemia. “A fumaça e a mudança do clima são fatores complicados também para aquelas pessoas que ficaram com sequelas em decorrência da Covid-19. É evidente que esses fenômenos poderão desencadear problemas de saúde, como doenças pulmonares”.
Natália Bianchi Filardo, coordenadora-adjunta do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Mato Grosso (MT), aponta o desmatamento como um dos principais vetores relacionados às mudanças climáticas, já que a prática aumenta as emissões de carbono provenientes das mudanças no uso do solo.
Os Avá-Guarani do Oco’y estabeleceram a barreira sanitária após o primeiro caso de covid-19 ser confirmado em um integrante da comunidade (Foto: Comunidade do Oco’y)
“No Mato Grosso, por exemplo, é conivente para o Estado que se use o ‘correntão’ ainda, que são aqueles tratores que utilizam uma corrente enorme para arrastar a floresta e, assim, abrir espaço para a pecuária e monocultivo”, explicou. A coordenadora lembra também que a construção de hidrelétricas é outro fator que colabora com as alterações no clima do planeta.
“Os reservatórios das hidrelétricas são grandes responsáveis pela liberação do metano, um dos gases que intensificam o efeito estufa. Mais uma vez falando sobre o Mato Grosso, onde existe a previsão de construir centenas de hidrelétricas ‘a toque de caixa’, as usinas começam as operações sem antes avaliarem os componentes indígenas da área. Isso acaba, inclusive, com os peixes, que fazem parte dos alimentos deles”, lamentou.
Prática do ‘correntão’: um trator arrastam correntes e abrem toda a área verde para a monocultura (Foto: Mayke Toscano)
Mas não são só as queimadas que retratam os sintomas das mudanças climáticas no planeta. Na Aldeia Japuíra (MT), do povo Myky, um córrego secou pela primeira vez, de acordo com Typyu Myky. “Aqui está ocorrendo muito desmatamento, a monocultura está avançando em nosso território, estão fazendo pastagem em torno das nascentes. O córrego que nunca secava, em 2021 secou. Não tinha uma gota d’água”, disse Typyu ao Cimi, em setembro deste ano.
Segundo Typyu, o córrego era usado pelas pessoas da comunidade para tomar banho, lavar roupa e para o lazer das crianças. Typyu contou que, em uma conversa que teve com seu sobrinho, de apenas seis anos de idade, foi questionado do porquê de o córrego não existir mais no local.
“Meu sobrinho é muito esperto e ele me abordou: ‘tio, quando eu era mais novo, banhei aqui no córrego com meus amiguinhos. Ele era fundo, até eu tinha medo de mergulhar. Mas, agora, estou vendo o córrego secar, as pedras já estão do lado de fora e os peixinhos estão morrendo. Por que isso está acontecendo, tio?’”, narrou.
Ao Cimi, Typyu também falou sobre os impactos socioambientais na realidade do povo Myky. “A água era bem transparente e não suja como está hoje. Agora, para tomarmos banho, temos que nos deslocar até o Rio Papagaio, que fica a 8 quilômetros de distância da aldeia, é muito longe. O córrego ficava muito perto de nós, apenas 400 metros da aldeia”, lamentou.
Na aldeia Japuíra, do povo Myky, secou um córrego que era utilizado para tomar banho, lavar roupas e para o lazer (Foto: Typyu Myky)
Enquanto os povos originários resistem para manter as florestas em pé, parlamentares ruralistas seguem priorizando medidas que caminham na contramão do mundo. Exemplo disso é o Projeto de Lei 2633/2020, conhecido como o “PL da Grilagem”, aprovado pela Câmara Federal no dia 3 de agosto deste ano. Na prática, a proposta premia grileiros, aumenta o índice de violência e conflitos no campo, já que estimula invasões, e também abre brecha para novos episódios de queimadas e desmatamento ilegal.
Além dele, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) aprovou em junho o Projeto de Lei 490/2007, que acaba com a demarcação de terras indígenas. “Como que vamos falar, lá fora, sobre combate ao aquecimento global se parte do país quer arrendar os territórios indígenas para o agronegócio, para a grilagem, soja e mineração? Esse projeto é muito preocupante e o parlamento precisa repensar”, afirma Francisca Arara.
Povos indígenas manifestam-se contra o PL 490 em marcha na Esplanada dos Ministérios (Foto: Tiago Miotto/Cimi)
“Os povos indígenas precisam ter mais participação nessas tomadas de decisão. A gente sabe que a demarcação das terras indígenas é uma barreira para combater as mudanças climáticas, porque temos um grande estoque de carbono. Os nossos conhecimentos tradicionais têm muito a contribuir para combater o aquecimento global, cuidamos dos nossos territórios pensando em todo o planeta. Então é muito importante que as políticas públicas não sejam mais ‘inventando roda’, mas sim dialogando com os povos indígenas”, finaliza Arara.
Em coro com Francisca Arara, Natália reforça a importância de haver uma presença mais forte dos povos indígenas nas tomadas de decisão do país. “Precisamos de políticas que favoreçam a recuperação de áreas degradadas, que resguardem as terras indígenas e arredores para que não sofram impactos no entorno dos territórios, que respeitem as áreas de reservas legais e de proteção ambiental. Além disso, é necessário que esses grandes empreendimentos levem em consideração os componentes indígenas e façam audiências de consulta em um nível de comunicação justo”.
Você já ouviu falar sobre a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática? Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), essa é a “mais importante conferência sobre o clima do planeta”. Desde 1994, as Nações Unidas reúnem, anualmente, quase todos os países do mundo para as cúpulas globais do clima. O encontro, que é mais conhecido como COP, ou seja, “Conferência das Partes”, está em sua 26ª edição, já que não foi realizada em 2020 devido à pandemia de coronavírus.
Neste ano, a cidade de Glasgow, na Escócia, foi escolhida para sediar o evento internacional entre os dias 01 e 12 de novembro. Mas, infelizmente, a COP26 passou uma imagem cheia de “contradições”, um evento “para gringo ver”, segundo Guilherme Cavalli, jornalista e coordenador da Campanha de Desinvestimento em Mineração.
“As falsas soluções climáticas parecem nortear o debate oficial do evento, também caracterizado como uma das mais intransparentes COPs – os diálogos que constroem os acordos se detêm a Estados Governos, sem uma livre participação da sociedade civil. A plataforma online do evento também apresentou instabilidade e dificultou o seguimento e os espaços internos da conferência foram organizados para um diálogo entre iguais”, disse Guilherme em uma matéria publicada no site do Cimi.
“As falsas soluções climáticas parecem nortear o debate oficial do evento, também caracterizado como uma das mais intransparentes COPs”
No texto, Guilherme também apresentou críticas abordadas por lideranças indígenas, como Naniwa Huni Kuin, indígena do Acre, e Dinamã Tuxá, membro da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Manifestação em Glasgow, Reino Unido, durante a COP26 (Foto: Guilherme Cavalli | Coordenador da Campanha de Desinvestimento em Mineração)
“São eventos que debatem soluções sem levar em conta os principais protetores da Terra. Parece que a COP26 virou um evento para decidir o preço do carbono em políticas que continuam promovendo invasões de territórios, como o próprio crédito de carbono”, afirmou Naniwa durante um evento no Tribunal Internacional do Direito da Natureza.
Na mesma linha, Dinamã, que estava entre as lideranças presentes na COP26, não escondeu sua preocupação. “São iniciativas que nos deixam apreensivos por serem, novamente, ações colonizadoras. Países ricos, e principais emissores, debatem ações para os povos indígenas sem uma representação dos povos. O processo se inicia de forma atravessada”, ressaltou o advogado indígena.
Manifestações durante a COP26, em Glasgow, na Escócia (Foto: Guilherme Cavalli)