06 Dezembro 2024
"Essas são as guerras de hoje. Onde a morte das crianças não é mais um ponto de chegada insuportável, é apenas um ponto de partida, um ponto de horror a partir do qual se pode avançar para outros limites de aceita desumanidade. Não sei o que fazer com as legalidades do direito internacional, com a classificação dos crimes de guerra. Conversa fiada, perda de tempo. Ninguém vai pagar pelos pequenos assassinados em Nuseirat e em outros lugares. E sabemos disso muito bem", escreve Domenico Quirico, jornalista italiano, em artigo publicado por La Stampa, 05-12-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Qual é o limite? Alguém gritará essa pergunta em frente aos corpos das crianças palestinas do campo de Nuseirat, mortas por um bombardeio israelense enquanto estavam com suas mães na fila em frente a um forno. Quatro túmulos de poeira e entulhos. O estrondo gigantesco da bomba varreu tudo, as pobres casas se dobraram sobre si mesmas; e depois os atos terríveis da sequência, como os vi em Aleppo e em milhares de outros lugares: as pessoas cavam com as mãos enquanto um cheiro forte de morte se espalha. Um grito chama em direção a um entulho maior. Estão aqui, os mortos. Alguns beijam o concreto manchado de sangue. Outras crianças olham, espiando o horror. Agora elas também sabem.
Então, onde fica a fronteira? Gritem, peçam, exijam. Eu lhe darei a resposta antes que uns e outros transformem essas crianças assassinadas em símbolos, como as outras três mil que morreram em um ano de guerra em Gaza, transfigurando em números as macas do desespero, a carne desfigurada, os trapos, os olhos fechados sobre a escuridão. E as compare com aquelas mortas em sete de outubro. Estamos quites, o que vocês querem? Eu tenho a resposta. O limite não existe. Essas são as guerras de hoje. Onde a morte das crianças não é mais um ponto de chegada insuportável, é apenas um ponto de partida, um ponto de horror a partir do qual se pode avançar para outros limites de aceita desumanidade. Não sei o que fazer com as legalidades do direito internacional, com a classificação dos crimes de guerra. Conversa fiada, perda de tempo. Ninguém vai pagar pelos pequenos assassinados em Nuseirat e em outros lugares. E sabemos disso muito bem.
Esse naufrágio moderno da história é um mundo de filhos sem mães e de mães sem filhos, de andarilhos perdidos em meio a ordens brutais que chegam pelos celulares, homens sem casa, pão ou deus, da Ucrânia à Palestina, do Sahel à Síria. Um massacre diário de inocentes, pior do que reféns, alvos anônimos. O século XXI, como o quisemos, na consumação de todas as possibilidades, o grande bazar das identidades, das purezas, do certo e do errado, de bem e mal, obviamente sempre absolutos. Humanidade residual, vinganças, um final de jogo sujo.
Mas como ousam, as crianças são inocentes! Esqueçam essa mentira, pois vocês viverão em um mundo onde todos são constantemente ameaçados por alguma coisa. As crianças, suas vidas, são uma arma, um instrumento de propaganda, um detalhe, um peso, outro segmento a ser “limpo”, o verbo do novo século. Nos milhares de guerras grandes e pequenas, vividas na TV ao vivo ou ignoradas como uma irrelevante vergonha, já foram roubadas, sem pestanejar, da alegria da infância em nome da mentirosa segurança das nossas contas a regular.
Gaza, é claro, e Sarajevo, Aleppo, Mariupol, Grozny, e depois... cidades destruídas que agonizam sob um manto de bombas, onde a História, mais que uma tentativa de registrar eventos e entender, é o hábito de reorganizar fatos atrozes, é um processo de esquecimento. As crianças - o que vocês querem que importem as crianças?
Em Aleppo, nos cinco anos de batalha entre os rebeldes e o exército de Assad, atacavam com morteiros exatamente onde sabiam que havia poucos fornos que ainda, às vezes sim às vezes não, liberavam fornadas de pão para as pessoas através de uma portinhola. As horas de espera entre os escombros estendiam filas de dor, especialmente de mulheres e crianças. As crianças eram necessárias, e como: pequenas e ágeis, elas se metiam em meio à poeira, na briga dos adultos, para abocanhar fragmentos imundos de pão. Ali, os artilheiros ajustavam habilmente a mira de suas trajetórias assassinas. Vamos lá, onde tantas pessoas poderiam ser mortas tão facilmente?
E em Sarajevo, vocês se esqueceram do bombardeio sérvio do mercado? Comida, pão, fome e morte... um perfeito sargaço de crime e miséria.
Por favor, não me fale pela enésima vez que ontem foi um erro técnico, um alvo errado.... Eu não acredito. A indústria democida funciona com um mecanismo perfeito, científico e industrial. Por que inventamos armas como drones, bombardeiros e mísseis que podem ser usados até mesmo por velhacos? Eles estão a salvo de qualquer risco e têm garantias contra qualquer remorso: você não pode ver quem matou, está a quilômetros de distância, no canto de um visor, no mostrador de um painel eletrônico sabiamente programado... longitude... latitude ... minutos até o impacto ... Onde estão as crianças? Que crianças? Eles me deram coordenadas, pontos em um mapa: apertar o zoom, alvo atingido, desligar o contato. Operação concluída.
Vocês sabem: matar é um assunto impessoal, você puxa o gatilho e não vê ninguém cair, só mais tarde na TV, nas mídias sociais, você pode descobrir que aniquilou alguém, jihadistas, terroristas do Hamas, milicianos do Hezbollah, refugiados civis russos ou ucranianos... difícil dizer, talvez os generais e políticos o saibam.
Por que os pilotos e os armamentistas remotos dos drones não vêm contemplar também em Nuseirat os frutos de seu criminoso comércio tecnológico?
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Do cerco de Sarajevo a Aleppo e Gaza. Quando o alvo é a população faminta. Artigo de Domenico Quirico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU