26 Novembro 2024
Embora se trate de uma decisão histórica e de grande carga simbólica, a ordem de detenção de Benjamin Netanyahu e do ex-ministro da Defesa, Yoav Gallant, não terá consequências diretas, tal como ocorreu com outras sentenças semelhantes.
O artigo é de Ignacio Gutiérrez de Terán Gómez-Benita, professor do Departamento de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade Autônoma de Madri (UAM), publicado por El Salto, 25-11-2024.
Na última quinta-feira, 21 de novembro, o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu ordens de prisão contra o primeiro-ministro do regime de Tel Aviv, Benjamin Netanyahu, e seu (ex)ministro da Defesa, Yoav Gallant, a quem ele havia demitido semanas antes. O mandato incluía também Mohammed Deif, um dos responsáveis pelo braço militar do Hamas, sobre quem não se sabe se ainda está vivo. O anúncio gerou grande repercussão internacional e inúmeras análises sobre sua efetividade real. Ou seja, a possibilidade de que Netanyahu, sobretudo, acabe sendo detido em algum dos países signatários do Tratado de Roma, que constituiu o Tribunal, ou de que este, junto com o Tribunal Internacional de Justiça, adote mais sanções contra o Estado e os dirigentes militares e civis israelenses.
Se me permitem, eu diria que já podemos emoldurar a ordem, em um lugar destacado de uma parede bem limpa, para que fique bem visível; porque, na prática, não servirá para muito mais. O regime de Tel Aviv já reagiu com as costumeiras e insuportáveis perorações sobre o antissemitismo e a deriva da comunidade internacional, supostamente vendida à irracionalidade do terrorismo e às correntes ideológicas contrárias à civilização.
E seus grandes aliados, com os Estados Unidos à frente, já estão estudando fórmulas para “reverter” a decisão, o que significa, primeiro, uma manobra de profundo descrédito contra os juízes do tribunal que assinaram a resolução e, nem se fala, contra o procurador-geral, Karim Ahmad Khan. Este, pouco depois de solicitar ao Tribunal a emissão da ordem, sofreu uma campanha difamatória por supostas acusações de assédio sexual contra uma advogada.
A denúncia foi apresentada, ao que parece, antes do início daquilo que o sionismo oficial costuma denominar como “o que está acontecendo em Gaza” desde outubro de 2023; no entanto, e aqui está o peculiar da questão, tornou-se notícia de alcance mundial pouco depois de Khan acusar formalmente a liderança de Tel Aviv de crimes de guerra. Quem acompanha os assuntos do sionismo internacional e seus manejos nas grandes questões informativas não deveria se surpreender com tais coisas. Khan colocou-se à disposição dos serviços jurídicos do Tribunal e mostrou-se pronto a qualquer colaboração para esclarecer o caso, apontando, de passagem, o interesse dos partidários do regime israelense em desacreditá-lo.
Muitos lembraram, por precaução, suas origens muçulmanas, apesar de sua nacionalidade britânica, e a “animosidade” genética suposta em todos os muçulmanos contra o semitismo, ainda que um bom número de muçulmanos, especialmente os árabes, sejam tão semitas quanto aqueles que empunham a bandeira do sionismo. Ou que um número considerável de Estados árabes, do Marrocos aos Emirados Árabes Unidos ou à Arábia Saudita, demonstre mais compreensão para com o governo israelense do que muitos governos europeus. Ou que, com a exceção da Líbia, nenhum deles tenha se juntado efetivamente à denúncia da África do Sul contra o Estado de Israel por genocídio, desta vez perante o Tribunal Internacional de Justiça.
Nos últimos meses, o Tribunal enfrentou incessantes pressões, especialmente dos Estados Unidos, para que não emitisse a ordem ou, pelo menos, a adiasse. O governo “amigo” do Reino Unido, antes da mudança de governo após o colapso dos conservadores em julho de 2024, apresentou um amicus curiae (intervenção de um terceiro em um litígio que não o afeta diretamente). O objetivo: adiar as deliberações, alegando que o Tribunal não tinha jurisdição para julgar cidadãos israelenses porque Israel não é membro dele e nem a Autoridade Nacional Palestina, que apresentou a acusação, é um Estado soberano. A vitória dos trabalhistas de Keir Starmer no verão resultou na retirada da solicitação. Ao mesmo tempo, líderes dos EUA e de Israel tentaram deslegitimar as entidades jurídicas da ONU por todos os meios possíveis, sendo as ameaças de redução do orçamento, os ataques constantes contra a UNRWA ou as acusações de que o organismo tornou-se um refúgio para a barbaridade e, novamente, o antissemitismo, uma constante nos últimos meses.
Mas Khan e os juízes do Tribunal, cujas nacionalidades “suspeitas” são constantemente mencionadas pela mídia pró-sionista, mantiveram-se firmes e, embora tardiamente, emitiram a ordem. Não servirá de nada, porque Washington, que desacreditou completamente o Tribunal — “ordem escandalosa”, segundo o presidente Biden —, está neutralizando-a com todos os recursos possíveis. E não se deve descartar até mesmo uma espécie de retratação por parte do Tribunal. Ou um recuo, como ocorreu com a resolução 3379 de 1975, que equiparava o sionismo ao racismo e ao regime de apartheid na África do Sul. Embora a resolução fosse declarativa e não vinculante, foi mal recebida. Tanto que não descansaram até que, de forma excepcional, fosse revogada pela 4686 em 1991. Algo semelhante deve ocorrer agora. Enquanto isso, para dar mais peso a suas contramedidas, os entusiastas pró-sionistas, como o presidente argentino ou o primeiro-ministro húngaro, apressaram-se em enviar convites a Netanyahu para demonstrar sua adesão a este grande projeto humanitário, civilizatório e democrático que resultou na despossessão de milhões de palestinos.
Em suma, a ordem de prisão não terá consequências materiais nem será colocada em prática, como ocorreu na maior parte das vezes anteriores, seja contra Vladimir Putin na Rússia ou Omar al-Bashir (deposto há anos) no Sudão, por exemplo. Mas possui uma relevância simbólica de grande peso. Ser colocado no mesmo nível de líderes acusados de incitação ao genocídio, como Félicien Kabuga ou Charles Taylor, da Libéria, que foram processados, não é algo positivo. Além disso, eles eram africanos, um grupo menos digno aos olhos do racismo de corte sionista, que não deixa de ser um movimento supremacista europeu, o que torna a situação ainda mais desonrosa.
Tornar-se, além disso, o primeiro líder de um país democrático — ou pelo menos é o que dizem de Israel — acusado de crimes contra a humanidade, é um descrédito ainda maior. Especialmente considerando que os mecanismos judiciais e penais criados pela ONU foram pensados para perseguir os “outros”, os não ocidentais, a segunda divisão da comunidade internacional. Contudo, um bom número de europeus e americanos já não considera Israel como parte desse Ocidente idealizado, farol de liberdade e ícone dos direitos humanos. Pior ainda, percebe-se hoje uma crescente insatisfação de certas elites políticas e econômicas ocidentais com a nova classe dirigente israelense, dominada por extremistas ortodoxos e indivíduos fanáticos que justificam suas barbaridades com mandatos divinos e falam abertamente sobre restringir direitos de seus próprios cidadãos por motivos de gênero ou religião.
Por outro lado, a ordem em questão dá munição aos rivais e dificulta o foco no que consideram verdadeiramente importante, ou seja, devastar Gaza e o sul do Líbano. Geralmente, quando o regime de Tel Aviv sofre algum tipo de revés, ainda que raro, por parte da ONU ou de outros organismos internacionais ou regionais, redobra seus esforços para continuar fazendo o que lhe é imputado. Se é advertido pelos assentamentos ilegais, anuncia mais colônias; se lhe pedem “contenção” na perseguição contra a população palestina na Cisjordânia, aprova leis para acelerar expulsões e confiscos; e se acusam de matar milhares de pessoas com bombas e cercos que impedem acesso a água e alimentos, intensifica os ataques e retém mais caminhões de ajuda humanitária nos pontos de fronteira. A sensação de impunidade de que desfruta esta organização criminosa, transformada em um pesadelo para o conceito de justiça universal, é quase absoluta.
Decisões como a do TPI, no entanto, certificam que o sionismo já não é o que era. Alguns círculos antissionistas preveem com entusiasmo o fim — “próximo” — dessa ideologia perniciosa e oposta aos princípios da humanidade. Um otimismo talvez exagerado. Na verdade, sua imagem caiu drasticamente nos últimos 14 meses, em comparação às expectativas de prosperidade econômica e hegemonia regional que o regime israelense exibia no início de 2023. Porém, frente ao grau das atrocidades cometidas em Gaza, parece pouco. De qualquer forma, o sofrimento cruel e implacável que continuam a suportar milhares de inocentes ali merece, ao menos, o desejo de que passos como esta ordem de prisão sirvam, um dia, para fazer justiça.
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Uma ordem para emoldurar. Artigo de Ignacio Gutiérrez de Terán Gómez-Benita - Instituto Humanitas Unisinos - IHU