23 Novembro 2024
A promessa de uma visita do papa à Córsega soa como uma recompensa por três anos de intensa atividade do bispo de Ajaccio, que relançou a identidade católica da ilha e desenvolveu um conceito muito pessoal de relações públicas, até em Paris.
A reportagem é de Ariane Chemin, publicada por Le Monde, 19-11-2024.A tradução é de Luisa Rabolini.
“Sirvam-se à vontade, é por conta da casa”, diz François-Xavier Bustillo, radiante, com aquele inimitável sotaque misto que revela seu nascimento espanhol, a educação italiana de sua juventude franciscana e, por trinta anos, sua vida religiosa francesa. Que bela noite a de 29 de agosto, na atmosfera suave do sol de verão que se punha sobre Ajaccio. O brasão do cardeal - o brasão de sua família Basco-Navarra combinado com a cabeça de mouro típica da Córsega - foi exposto no primeiro andar do recém-restaurado palácio episcopal. No pátio, foram montadas tendas e um farto bufê de especialidades da Córsega para os cerca de cem amigos convidados para celebrar a Legião de Honra do prelado de 55 anos, objeto de uma fascinante “Bustillomania” na Córsega, mesmo antes de seu último sucesso: atrair o Papa para a ilha.
Para essa cerimônia, o cardeal queria fazer as coisas com estilo. Ele mesmo elaborou a lista dos convidados, “convites pessoais para uma noite pessoal”: poucos padres e párocos, mas todas as figuras de poder da ilha. A futura ministra Catherine Vautrin, agora encarregada dos assuntos da ilha no governo Barnier, o prefeito da Córsega (e depois nomeado prefeito da Bretanha), o novo reitor, gendarmes e advogados, empresários, sem esquecer os representantes eleitos da ilha (agora em sua maioria nacionalistas). “Levei cinco minutos apenas para ler os nomes e títulos antes do meu discurso”, brinca o chef Mathieu Pacaud.
Foi ele quem, “em nome do Presidente da República Francesa”, entregou ao cardeal as insígnias de cavaleiro. O jovem chef e o homem de igreja se conheceram no Le Laurent, o renomado restaurante parisiense onde Mathieu Pacaud oficia e reúne todos os políticos franceses. “Nós nos telefonamos com frequência, ele se tornou como meu psicólogo”, conta o chef. “Raramente alguém me impressionou tanto quanto ele, exceto talvez Guillaume Gallienne há 20 anos. O que me impressiona é que ele nunca julga”.
Em 29 de agosto, a primeira presidente da Corte de Apelação de Bastia, Hélène Davo, estava de férias. Sorte a dela. Porque, entre os convidados, havia um homem condenado várias vezes pelos tribunais da Córsega: Paul Canarelli, proprietário do sublime complexo hoteleiro de Murtoli, um resort de luxo entre Bonifacio e Sartène, onde ministros, celebridades e criminosos foragidos adoram se esconder. Daqui a alguns meses, ele será intimado a comparecer perante o tribunal de Bastia, onde outro fato importante envolvendo Murtoli está sendo investigado. No pátio do palácio episcopal, o empresário poderia ter encontrado o general da Gendarmaria Jean-Luc Villeminey, cujos homens estão encarregados da investigação sobre Murtoli. Mas como é possível imaginar que Canarelli “patrocinasse” essas festas?
“Pedi a Mathieu para cuidar da decoração e ele tratou do bufê”, explica François Bustillo calmamente de suas janelas com vista para o Golfo de Ajaccio. Alguns ofereceram os vinhos, enquanto a propriedade Murtoli cuidou da comida: “os queijos, os azeites de oliva, as cervejas...”, confirma Paul Canarelli, amigo de Mathieu Pacaud, que trabalhou na propriedade Murtoli por cinco verões.
O empresário é, acima de tudo, amigo do vigário geral de Ajaccio e braço direito do cardeal Frédéric Constant, que governou o extremo sul da ilha por muitos anos antes de se juntar a François Bustillo em Ajaccio em 2021. Foi o Abbé Constant quem apresentou Murtoli ao cardeal entre duas viagens de carro. Essa é uma das mil etapas de um bispo que atravessa a ilha há três anos e meio, sem poupar esforços nem seu Clio cinza.
Planícies, montanhas, desfiladeiros perigosos... Ele vai até vilarejos remotos, atento a cada nome e a cada rosto, como um candidato em uma campanha eleitoral. “O que eu poderia dizer aos corsos se não os conheço?”, ele se pergunta. Com a notícia de sua chegada, os moradores das aldeias se aglomeram, com ele as missas atraem as multidões e terminam alegremente com fotos, selfies e cestas de doces - nunca uma gota de álcool para ele. O cardeal gosta de dizer: “Redescobrir a unidade cultural em torno da tradição católica”. Seu metro e oitenta e cinco e sua mitra, durante as procissões, parecem servir como ponto de referência para uma Córsega que ainda está tentando se encontrar.
François Bustillo não vai apenas em peregrinação. Ele também preside “missas no topo” em promontórios rochosos, manda fundir novos sinos, consagra igrejas e manda abrir suas portas, como a da catedral de Ajaccio, que detesta ver fechada. “O que há para abençoar?”, ele pergunta quando chega em algum lugar. Tudo: casas e crianças, é claro, mas também cruzes nas montanhas e até, surpreendentemente, em outubro de 2023, em Ajaccio, a nova sede do Crédit Agricole da Córsega, na presença do presidente da câmara de comércio. “Quando cheguei, aprendi a abençoar os barcos. Acredito que a laicidade não é a mesma na Bélgica, no continente ou aqui. Eu me insiro no modo de vida local, me adaptei”.
Toda a carreira do franco-espanhol, depois do seminário menor (aos 11 anos) em Espelette (Pirineus Atlânticos) e de um período com os franciscanos em Pádua, se desenrolou no Aude, uma terra de forte tradição anticlerical. Que diferença em relação à Córsega! Aqui, 90% da população se declara católica, velas com a imagem da Virgem são vendidas no Monoprix e as confrarias são abundantes. “A Córsega é uma ilha de pastores (de ovelhas) e pastores (no sentido religioso)”, repetiu ele ao Papa há alguns dias em Roma. Não sou um homem de estruturas”, diz ele, filho de um militar. Minha imagem como bispo não é a de um homem trancado em um gabinete com suas avós católicas”.
Em 2021, François Bustillo publicou La Vocation du prêtre face aux crises (Nouvelle Cité), um pequeno livro que se fala tenha sido notado pelo próprio Papa. Quando, em setembro de 2023, Nicolas Diat, editor da Fayard, teve a ideia de fazer com que o número três do Vaticano, Edgar Peña Parra, falasse com um bispo sobre o “campo”, ele escolheu Bustillo.
O livro Le cœur ne se divise pas (Fayard, 2023) estabeleceu uma sólida amizade e um relacionamento especial com o Vaticano. Com essa “promoção”, começou a ascensão do jovem bispo na mídia. Ele participa de transmissões matinais de rádio, é visto nas primeiras páginas do Paris Match e Valeurs actuelles, e aparece de batina no set de filmagem de Quelle époque ao lado de Léa Salamé. Por fim, um homem de igreja, jovem, descolado, que adora natação, vôlei e tênis e não tem medo das redes sociais. Em 12 de abril, ele até postou em sua conta pessoal do Instagram uma foto sua (de calça e paletó) em Mônaco, entre um tenista italiano e a prima do príncipe Albert em... uma matéria com a logo 'Rolex', patrocinadora do torneio. Um dia depois, a foto foi apagada. Vídeos de sua nomeação como cardeal em Roma, ao contrário, continuam a circular. Que evento! Em 30 de setembro de 2023, três aeronaves especialmente fretadas levaram fiéis, imprensa e representantes eleitos para os salões da embaixada francesa na Santa Sé. No dia seguinte, na Praça de São Pedro, o clamor dos 800 corsos da ilha quando François Bustillo recebeu o barrete cardinalício surpreendeu o próprio Papa. O cardeal é o mais jovem dos quatro cardeais franceses e seu triunfo se reflete positivamente na ilha. “Acredito que temos que dar à Córsega algo de que se orgulhar”, explica François Bustillo.
Sua agenda está lotada de compromissos. O cardeal quer conhecer todos os ambientes políticos, midiáticos e econômicos. “Considero muito importante se reunir com os empresários”, confirma. Ele conta com jovens representantes eleitos que organizam os encontros com os líderes empresariais. Em 10 de outubro, em Ajaccio, durante uma visita de Patrick Martin, presidente da Medef (a confederação francesa da indústria), estes ficaram surpresos ao ver François Bustillo sentado com eles no terraço de um bar no Cours Napoléon. O bar em questão também é a sede da “Mossa Palatina”, um jovem movimento político nacionalista de extrema direita, violentamente hostil à imigração e ansioso para preservar a “identidade cristã” da Córsega. François Bustillo confiou ao seu “número dois”, o Abbè Constant, a delicada tarefa de gerir os jovens que estão repovoando as igrejas da cidade. Em Bastia, confia em Pierre-Jean Franceschi para ser levado às paróquias no norte da ilha.
Esse leigo muito popular é um dos poucos que sabe rezar missas fúnebres em corso e, tendo sido capelão da prisão de Borgo, conhece todas as histórias de criminosos. “Pierre-Jean” acompanha o cardeal a Roma e Lourdes, mesmo depois de ter sido preso em abril pelo emprego não declarado de uma ‘faz-tudo’ em sua propriedade em Penta-di-Casinca (Haute-Corse), usada como casa de repouso.
Nem sempre é fácil, na Córsega, quando se quer ser adotados, manter as distância ou recusar solicitações. O trio subiu várias vezes a Venzolasca (Haute-Corse), o vilarejo do Abbé Constant.
Lá, o cardeal almoçou com o prefeito, Balthazar Federici, irmão do líder dos “bergers braqueurs” (pastores ladrões) - detidos desde 2008 depois de um sangrento acerto de contas em Marselha - que, de sua prisão, continuam a comandar o bando. “É com o prefeito que eu me encontro”, responde o cardeal. O mesmo se aplica a Michel Tomi, um “padrinho” à frente de um império de jogos de azar na África, que o cardeal foi visitar neste verão, em sua cadeira de rodas, em Tasso (Corse-du-Sud). “Fui lá para as crismas. Em geral, não tenho o hábito de pedir o curriculum vitae das pessoas que me são apresentadas antes de cumprimentá-las”.
Sua maneira de dizer “a minha gente” agrada à Córsega, a começar pelos nacionalistas. “Em sua missa de ordenação, ele falou em corso por dois longos minutos, embora tivesse acabado de chegar. Ele entendeu imediatamente como funciona a nossa sociedade”, ressalta o ex-líder independentista Jean-Guy Talamoni, que hoje leciona história das ideias e da literatura na Universidade de Corte (Haute-Corse). Imediatamente seduzido por esse prelado “latino”, ele frequentemente discute com ele a influência do Iluminismo italiano na ilha. A curta frase que François Bustillo proferiu em janeiro no site Corse Net Infos, bem na época do cabo de guerra institucional com Paris, não passou despercebida: “A Córsega deve reencontrar a sua autonomia, a sua liberdade e a sua capacidade de gerir a vida política”. Somente os últimos “antinacionalistas” ficaram ressentidos, como o ex-assessor de finanças da prefeitura de Bastia e professor de história Ange Rovere, que escreveu uma carta aberta ao cardeal para censurá-lo por “não unir todos os corsos com tais posições partidárias”.
Nenhuma resposta.
“Eu realmente gosto de política. Sempre gostei, confessa o cardeal, mas lhes asseguro que não sou feito para o poder”. Convidado para ir ao Le Laurent, ele conheceu François Hollande. Ele já havia se encontrado com Laurent Wauquiez por ocasião dos “encontros franciscanos” que organizava com figuras políticas em sua diocese de Narbonne (Aude). Ele se encontrou com Raphaël Glucksmann neste verão em Cap Corse. Discutiu na Universidade de Corte com Philippe Guglielmi, ex-Grande Mestre do Grande Oriente da França, e com Chems-Eddine Hafis, Reitor da Grande Mesquita de Paris. Em dezembro de 2023, ele foi recebido por Emmanuel Macron para um discreto encontro pessoal.
No Palácio do Eliseu, lembram que um carro foi colocado à disposição do cardeal para que ele pudesse ir até o boulevard de Montmorency, onde Vincent Bolloré o aguardava “para um café”, admite o próprio François Bustillo. Que, a propósito, continua em ótimas relações com a família Saadé, proprietária do imprescindível jornal Corse-Matin, eufórica, como toda a ilha, pelo convite feito pelo “seu” cardeal.
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François Bustillo, investigação sobre um cardeal muito político, no aguardo da visita do Papa à Córsega - Instituto Humanitas Unisinos - IHU