19 Novembro 2024
A Ucrânia obtém do presidente cessante a autorização que buscava para o uso de mísseis com capacidade de alcançar 300 km dentro da Rússia. A governança da UE celebra a medida, que coloca pressão sobre o governo alemão.
A reportagem é de Pablo Elorduy, publicada por El Salto, 19-11-2024.
Anunciada por dois meios de comunicação, The New York Times e The Washington Post, e não desmentida pela Casa Branca, a autorização do presidente americano, o cessante Joe Biden, para o uso do Sistema de Mísseis Táticos do Exército (ATACMS) por parte da Ucrânia foi qualificada pela Rússia como uma "nova rodada de tensão" em um conflito que não mostra sinais de acabar, apesar da promessa de Donald Trump de que ele terminará em 24 horas quando for designado presidente em janeiro de 2025.
Após mais de um ano sem tomar a decisão, Biden teria autorizado o uso dessas armas devido à presença de soldados norte-coreanos na região russa de Kursk, que estão lutando contra os militares ucranianos, que invadiram esse território em agosto de 2024. A autorização da Casa Branca se limitaria, segundo os meios de comunicação americanos, ao uso em Kursk. De acordo com o relato oficial, a intenção é que o regime de Kim Jong-Un revise sua aliança militar com a Rússia. Atualmente, haveria 11 mil soldados norte-coreanos, embora se espere que o número aumente para 15 mil.
Os ATACMS estariam em condições de atacar depósitos de armas e munições, linhas de fornecimento e bases militares russas.
Por sua vez, Grã-Bretanha e França apoiaram a iniciativa de Biden. Desde a reunião do G20 realizada no Brasil, Keir Starmer falou sobre a necessidade de "dobrar" o apoio à Ucrânia. Starmer havia se mostrado no passado favorável ao fornecimento de mísseis Storm Shadow ao governo de Volodymyr Zelensky, mas era necessário o aval de Biden. Esse tipo de míssil, fabricado pelo Reino Unido, utiliza dados de navegação e tecnologias americanas. Emmanuel Macron também se comprometeu a permitir o uso dos mísseis SCALP, semelhantes aos Storm Shadows, com a mesma limitação inicial, para serem usados contra os alvos militares descritos e não contra outros alvos.
A medida adotada por Biden foi celebrada pela maioria dos líderes europeus. O alto representante da União Europeia (UE) para Assuntos Exteriores, Josep Borrell — que em breve será substituído pela estônia Kaja Kallas — manifestou seu apoio ao uso dos ATACMS, que poderão penetrar até 300 quilômetros em território russo. Outros representantes de países europeus, como Estônia e Polônia, se mostraram totalmente favoráveis à notícia.
O elo fraco é a Alemanha, país no qual o chanceler Olaf Scholz está isolado e cercado entre o partido emergente da extrema-direita, que exige o fim das ajudas à Ucrânia, e os partidos e meios do establishment, que exigem que o apoio seja reforçado. As críticas se intensificaram contra Scholz depois que se informou sobre uma ligação telefônica a Putin na última sexta-feira, 15 de novembro. "Isso é exatamente o que Putin queria há muito tempo: é crucial para ele enfraquecer o isolamento da Rússia", condenou Zelensky.
Não é por acaso que a autorização tenha ocorrido quando a permanência de Biden na Casa Branca está com os dias contados. A linha seguida pelos Democratas desde a invasão russa de fevereiro de 2022 tem sido o apoio inexorável à Ucrânia. Um relatório da Foreign Affairs em abril deste ano detalhou como, por uma série de fatores concatenados, Washington dissuadiu Zelensky de assinar os rascunhos de um cessar-fogo que foram elaborados em Istambul poucas semanas depois do início da segunda fase de uma guerra que está aberta desde 2014.
O ex-primeiro-ministro Boris Johnson, "em nome do 'mundo anglo-saxão'", defendeu o artigo e informou a autoridade ucraniana que deveria "lutar contra a Rússia até alcançar a vitória e a Rússia sofrer uma derrota estratégica".
A linha seguida desde então choca-se, neste caso, com as proclamações feitas por Donald Trump, que será o sucessor de Biden. Trump tem demonstrado proximidade com Putin no passado e, em sua equipe para a próxima legislatura, priorizou os falcões anti-China em relação às questões do front russo. Tanto o vice-presidente JD Vance quanto a nova responsável pela inteligência, Tulsi Gabbard, se mostraram muito distantes da linha seguida até agora pela Casa Branca de apoio incondicional à Ucrânia.
No entanto, a doutrina que Trump parece disposto a seguir não implica necessariamente conceder a Putin o que ele pede, mas sim o que Michael Waltz, que será nomeado conselheiro de Segurança Nacional, formulou como “a paz através da força”. Os meios de comunicação dos Estados Unidos apontam que, como em seu primeiro mandato, Trump usará a política de "bastão e cenoura" com a Rússia. Durante a campanha, Waltz defendeu que era necessário liberar as mãos da Ucrânia para o uso de armas em território russo e introduziu outro elemento fundamental, a disputa energética com a Rússia, a qual ele definiu como uma "gasolina com usinas nucleares".
De cara aos seus eleitores, Trump quer enviar uma mensagem de força, “forçando” Putin a se sentar à mesa de negociações. Mas, de cara aos seus doadores, o setor energético dos Estados Unidos tem sido o grande beneficiado pela guerra na Ucrânia. Em dois anos, os países da UE triplicaram suas importações de gás natural liquefeito (GNL) e o novo governo não pretende parar. Um dos slogans de campanha de Trump foi "Perfure, garota, perfure".
Desde a governança europeia, não se vê com maus olhos essa dependência, que afasta os EUA da Rússia. “Ainda recebemos muito GNL da Rússia, por que não substituí-lo por GNL dos EUA, que é mais barato para nós e reduz nossos preços de energia?”, declarou a presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.
Talvez por isso, os relatórios de Kiev não sejam pessimistas em relação ao mandato de Trump, que já permitiu em seu primeiro mandato que a Ucrânia adquirisse mísseis Javelin “para defender sua soberania e integridade territorial”.
A questão, sob esse ponto de vista, é como a “paz através da força” contribui para a obtenção de uma paz real. Não se pode descartar que Trump mantenha a autorização de Biden para o uso de mísseis ATACMS ao mesmo tempo em que coloca Putin à mesa de negociações. A seu favor, conta o fato de que Zelensky, após uma conversa com ele, qualificou o diálogo de “quente e construtivo” e Putin também parabenizou Trump, antecipando que os dois “falariam” sobre um possível acordo.
No que todas as partes — EUA, Rússia e Ucrânia — parecem concordar é em qual é o elo fraco nessas circunstâncias. A Alemanha, e especialmente seu chanceler, Olaf Scholz, é o país sobre o qual todas as partes estão pressionando.
Tanto os Verdes quanto o partido Liberal FDP e a direita da CDU anunciaram que enviariam mísseis Taurus caso formem governo após as eleições de 23 de fevereiro. O governo alemão de Olaf Scholz é o único entre os países que fabricam esse tipo de tecnologia no contexto euroatlântico que, por enquanto, continua negando sua provisão a Kiev, embora, nas últimas horas, tenha sido revelado o envio “secreto” de 4.000 drones de ataque para uso pelo exército ucraniano.
Trump qualificou a Alemanha de “mau exemplo” por suas políticas energéticas e o fechamento das usinas nucleares e também alertou que estabelecerá sua política de alianças conforme o grau de cumprimento da exigência de gasto militar de 2% estabelecida pelos EUA no âmbito da OTAN, tudo isso apesar de a OTAN não ser o marco de referência do presidente eleito.
Enquanto se aguarda a chegada de janeiro e a nova equipe na Casa Branca e uma possível mudança na Alemanha, a guerra segue e a Rússia lançou ontem um ataque sobre Odessa, no qual foram registradas dez vítimas fatais. O contexto é o do anúncio de Biden, que foi interpretado no Kremlin como jogar “gasolina no fogo”. A mídia russa lembrou que, em setembro, Vladimir Putin se referiu a essa possibilidade como uma escalada que significaria “nada menos que a participação direta dos países da OTAN”.
Após o anúncio, um representante do comitê de assuntos internacionais da câmara alta russa denunciou que a autorização de Biden é um passo “para a III Guerra Mundial”, algo que ecoou nos Estados Unidos, onde dois representantes do trumpismo, a congressista Marjorie Taylor Greene e Donald Trump Jr., usaram a mesma expressão para condenar a autorização de Biden para o uso de mísseis.
Os principais meios de comunicação do establishment, no entanto, parecem sustentar a ideia de que Trump pode evitar o problema se reunir as partes à mesa. Os princípios mudaram desde as falhadas conversas de Istambul; atualmente, Megan K. Stack, uma das analistas sobre essa guerra para o The New York Times, colocou a questão em termos concretos. “Os EUA”, diz Stack, “apoiaram a guerra o suficiente para que ela siga em frente, mas nunca o suficiente para ganhá-la”.
Assim, chegou-se a um beco sem saída, em que o objetivo de Zelensky de integrar a Ucrânia na OTAN é uma quimera e qualquer negociação sobre território partirá de uma situação mais parecida com a atual do que com a que existia no início da guerra. “Os Estados Unidos não vão salvar a Ucrânia. Talvez precisemos que Trump, descarado e sem escrúpulos, diga isso finalmente em voz alta e aja de acordo”, afirma Stack.
Dessa forma, a autorização de Biden para o envio de mísseis foi interpretada como um último gesto destinado a favorecer Kiev em uma possível negociação que será conduzida por Trump. Também como uma tentativa de continuar amarrando a União Europeia aos desígnios do Pentágono antes que o imprevisível próximo presidente desenvolva seu plano, caso o tenha.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A aprovação do uso de mísseis por parte de Biden enfurece a Rússia, enfraquece a Alemanha e aquece o trumpismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU