13 Novembro 2024
"Não é apenas a educação dos nossos filhos que está em jogo, mas também o bem-estar dos filhos de nossos filhos e do mundo que eles herdarão também", escreve Robin Attfield, filósofo britânico, professor emérito da Universidade de Cardiff, em artigo enviado pelos tradutores ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU. A tradução é de Roberto Franzini Tibaldeo e Bruno Fonseca Ortega.
Rachel Carson (1907-1964) é conhecida por seu livro Silent Spring (Primavera Silenciosa), publicado em 1962. Esta obra explica como o uso de herbicidas e pesticidas como o DDT (diclorodifeniltricloroetano) no hemisfério norte estava causando um acúmulo de DDT na carne dos pinguins na Antártida, e que os governos e as empresas do mundo inteiro deveriam exercer restrição no seu uso da tecnologia para evitar impactos não intencionais nos sistemas ecológicos do mundo. Quando ela escreveu este livro, Carson estava com câncer terminal. Ela conseguiu terminar o livro, mas às custas de uma outra obra que planejou sobre a maravilha do mundo natural e como despertá-la nas crianças. Todavia, em 1965 saiu póstumo um outro pequeno livro, The Sense of Wonder (O senso de maravilha), que inclui seu ensaio anterior “Help your child to wonder” (Ajude seu filho a se maravilhar), sobre revelar para uma criança os mistérios que podem ser encontrados à beira do mar. Esses incluíam a visão de caranguejos-fantasmas na costa da praia e do luar iluminando as ondas ao cair da noite.
Assim, a contribuição de Rachel Carson para o mundo, além de sua trilogia sobre ecologia marinha e da divulgação dos perigos dos herbicidas e pesticidas, incluiu também sua prática e defesa da educação ambiental. No caso de Carson, isso significou caminhadas ao longo da costa da Nova Inglaterra com seu sobrinho, enquanto eles riam de pura alegria, conversando com o “vasto oceano agitado” e a “noite selvagem ao nosso redor” (Carson, 1965, p. 15, tradução nossa).
De acordo com Carson, admiração começa com surpresa; e o mundo natural geralmente evoca tal surpresa por sua beleza. René Descartes definiu “admiração” como “uma súbita surpresa da alma”, e Carson qualificou essa admiração como emoção (Moore, 2005, p. 267). Sentimos admiração, quando nos maravilhamos com uma árvore ou um pássaro como se estivéssemos vendo-os pela primeira vez (Moore, 2005, p. 269). Aprender os nomes científicos dessa árvore ou desse pássaro pode contribuir para desenvolver essa emoção, mas não é necessário. Talvez seja melhor entender a admiração como uma atitude, com a qual nos sintonizamos por meio de tais descobertas. Uma vez que nossos olhos se abrem para as surpresas da natureza, estamos mais receptivos para notá-las e reagir ao seu aparecimento inesperado em qualquer lugar e potencialmente em toda parte. Um exemplo é o incrível voo dos morcegos que sobrevoam o córrego da minha cidade no final da noite de verão.
No entanto, a educação científica ajuda as pessoas a entenderem o mundo natural e como ele se torna o que é. Por exemplo, a experiência sugere que isso também ajuda na jardinagem: os jardineiros precisam, por exemplo, entender a estrutura das raízes das plantas que estão plantando, e das ervas daninhas que estão tentando remover. Carson achou as cracas muito mais notáveis depois de perceber como no início de suas vidas elas flutuam livremente no oceano e, mais tarde, cimentam-se em rochas promissoras entremarés, onde podem balançar as pernas na correnteza do oceano e pegar seu alimento, puxando as pernas para trás e fechando as conchas quando a maré recua (Moore, 2005, p. 265). Aqui deixamos Carson por enquanto, mas devo mencionar primeiro que o artigo de Kathleen Deane Moore, intitulado “The Truth of the Barnacles: Rachel Carson and the Moral Significance of Wonder” (A verdade das cracas: Rachel Carson e o significado moral da maravilha), publicado no volume Environmental Ethics (2005), retribui atenção e serve como abridor de olhos para Carson assim como para a maravilha.
Alguns sugeriram que aprender explicações científicas pode minar o sentimento de admiração, porque os objetos, cenas ou lugares de admiração podem perder seu fascínio, uma vez compreendido. Mas, como Hepburn respondeu, normalmente não é esse o caso. Embora possamos ficar menos maravilhados com os truques dos mágicos, uma vez que entendemos a sua artimanha, fenômenos como as cracas de Carson, ou como as migrações de borboletas monarcas, ou como a aurora boreal (as luzes do Norte) ou a aurora austral (as luzes do Sul) não se tornam menos maravilhosos quando entendemos a sua relação com os processos regulares da natureza. Pelo contrário, a compreensão científica muitas vezes aumenta a nossa admiração, espanto e encantamento por esses mesmos fenômenos (Hepburn, 1984).
A educação científica pode, portanto, ajudar muito na apreciação da natureza (principalmente pelas crianças), quer a área de estudo seja a vida entremarés, as florestas, o comportamento de polinização das abelhas ou a vida predatória das aranhas. Como devemos ver, isso é importante para a compreensão de muitos outros desafios globais, tais como a mudança climática e a perda de biodiversidade, pelos quais todos nós somos afetados e pelos quais as crianças tendem a ser mais afetadas do que os adultos, dado que a expectativa de vida de muitas delas se estende até o próximo século. Estou incluindo sob “educação científica” várias ciências (a botânica, a zoologia, a geologia etc.) e também a ecologia. A ecologia é o estudo científico de ecossistemas e habitats, e de como eles se formam, mudam e são melhor protegidos. Enormes progressos foram feitos neste campo desde suas origens no século XIX e é por isso, inclusive, que acredito que alguns de seus rudimentos devem ocupar um lugar fundamental nos currículos das nossas escolas.
Ao mesmo tempo em que estudamos o mundo natural e a sua interconexão, gera-se em nós uma noção de seu valor. Em parte, isto consiste na sua estimação estética, o que desperta as nossas emoções e o nosso senso de admiração. Em parte, isto consiste no seu valor histórico, que passamos a reconhecer quando descobrimos os milhões de anos em que os sistemas naturais evoluíram, quão notável foi sua sobrevivência e quão vulneráveis muitos deles permanecem. Em parte, também consiste no valor intrínseco do florescimento dessas criaturas. No entendimento de muitos filósofos, esse valor intrínseco baseia-se em fundamentos ou razões que se revelam através de seus portadores e que justificam ações de proteção e preservação; e a importância de tal preservação é uma das lições que a educação ambiental pode transmitir.
No entanto, os ecossistemas candidatos à preservação são extremamente diversificados e tanto as crianças quanto os mais velhos precisam aprender não apenas sobre os ecossistemas locais, mas também sobre os outros ecossistemas de seu país e do mundo inteiro. Assim, no Brasil, há diferentes ecossistemas na floresta amazônica, no alto dos Andes, no Mato Grosso, no Pantanal e ao longo da costa atlântica, embora muitos moradores de cidades provavelmente tenham pouco conhecimento da maioria desses ecossistemas, se não de todos. Mas, como eleitores em potencial, as crianças precisam estar cientes de todos esses sistemas e do que está em jogo quanto à sua governança.
O mesmo se aplica ao meu próprio país, o Reino Unido. Nós também temos florestas, na forma de bosques antigos temperados, mas muito poucos, como resultado do desmatamento dos últimos séculos. Temos montanhas, mas não na escala das do Brasil. As nossas são frequentemente usadas para o pastoreio de ovelhas, exceto aquelas que se tornaram estéreis. Como elas estão maioritariamente situadas no norte e no oeste do país, muitos britânicos (particularmente os que vivem no sul e no leste) têm pouco conhecimento a respeito. Temos colinas onduladas, usadas continuamente para a agricultura por muitos séculos, mas com um número muito pequeno de cercas vivas, que costumavam prestar de lar para pássaros nativos, flores e insetos, que infelizmente foram exterminados em grande escala desde as revoluções industrial e agrícola do século XVIII. Temos rios, mas apesar dos esforços para preservar os seus ecossistemas, eles estão todos poluídos. Também temos áreas úmidas, como os Fens do leste da Inglaterra, e os Somerset Levels do oeste, que são diferentes do Pantanal, na medida em que permanecem úmidos durante todo o ano. Contudo, tal como o Pantanal, frequentemente ameaçam seus habitantes humanos com inundações.
Essas características do Reino Unido têm (ou deveriam ter) um lugar importante quando as crianças britânicas estudam a geografia da Grã-Bretanha. Mas é muito mais importante que as crianças brasileiras estudem a geografia do Brasil e do restante da América do Sul. Isso deve-se em parte aos impactos que o Brasil, como o maior país da América do Sul, pode ter no futuro do continente e de seus ecossistemas e em parte também ao impacto que esses ecossistemas provavelmente terão nos países vizinhos e no resto do nosso planeta.
Os impactos das possíveis mudanças que afetam o sistema da floresta amazônica em particular são cada vez mais conhecidos, mas vale a pena repeti-los aqui. Existe o perigo de que o desmatamento contínuo desta floresta tropical, à medida que ela seja desmatada para a construção de estradas, de assentamentos, de agricultura e de mineração, fará com que ela se transforme totalmente em uma savana (como a savana da África Oriental), um tipo mais seco de ecossistema de pastagem. A transição teria impactos de longo alcance sobre o clima e os sistemas meteorológicos do planeta. Este processo também ameaça os povos indígenas que vivem na floresta amazônica. A sobrevivência desses povos está entrelaçada à utilização de seus recursos e, ao mesmo tempo, contribui para a sua preservação. A floresta amazônica, enquanto permanece, desempenha um papel crucial na estabilização de outras maiores regiões e sistemas importantes do planeta, como as monções indianas, os sistemas climáticos do Pacífico ligados a El Niño e a La Niña e até mesmo os campos de gelo da Groenlândia, do Oceano Ártico e da Antártica. Há o risco de que, se atingirmos o ponto crítico (tipping point), a floresta amazônica poderia se tornar uma savana em vez de uma floresta tropical e isso poderia levar a uma sequência de outras mudanças em outras partes da Terra, com efeitos prejudiciais generalizados (Lenton, 2011; Lenton et al., 2019; Cho, 2021; Caldecott, 2022).
O Brasil não é, obviamente, o único responsável pela preservação da floresta amazônica. Várias partes desta região florestal se encontram em outros países, como Bolívia, Peru, Equador, Colômbia e Venezuela, que precisam fazer sua parte. Porém, o Brasil é um gigante econômico, provavelmente excedendo ao poder econômico de todos esses outros países juntos, e pode estar na posição de coordenar os esforços de preservação no nível regional. Todavia, o Brasil não é o único país na América do Sul em posição de fazer a diferença para o futuro do planeta. Por exemplo, a Argentina precisa proteger (em vez de extrair) suas reservas de gás natural e manter as enormes quantidades de metano que estão atualmente enterradas na Patagônia armazenadas com segurança no solo. Além disso, é razoável esperar que as economias mais fortes do mundo na Europa, na América do Norte e no Leste Asiático contribuam para esses projetos de preservação do clima, uma vez que seu bem-estar também está muito em jogo.
Tudo isso aumenta significativamente o valor da floresta amazônica e de sua preservação. Além de seu valor estético e intrínseco, seu valor instrumental é vasto, ambos para o futuro da humanidade, e ainda para o futuro das inúmeras espécies que a habitam e daquelas outras espécies que vivem em outros lugares, mas que seriam afetadas por sua queda.
O Brasil não é, obviamente, o único país com recursos ecológicos significativos que estão em risco e em necessidade de preservação. Muitos países asiáticos e africanos estão em posições comparáveis. Nem o Brasil é o único país com problemas ecológicos que precisam de atenção urgente. Por exemplo, o Reino Unido (conforme descrito acima) é outro, assim como os Estados Unidos, o Canadá, o Japão e muitos outros países. Entretanto, o futuro do Brasil está nas mãos dos eleitores brasileiros e de nenhum outro e essa é mais uma razão para educar os futuros eleitores brasileiros nas escolas e universidades do Brasil.
Isso nos traz de volta à educação ambiental e à sua necessária contextualização histórico-geográfica e cultural. Para além da ciência dos ecossistemas florestais, das bacias hidrográficas e do ciclo hidrológico, os jovens precisam aprender sobre o aquecimento global, os gases de efeito estufa, as tendências de temperatura, a elevação do nível do mar e os impactos dos níveis mais altos de dióxido de carbono e de outros gases na atmosfera, na forma de aumento de tempestades, enchentes, secas, incêndios florestais e fome. Eles também precisam aprender sobre relações internacionais e acordos internacionais, bem como sobre sistemas climáticos e seus pontos críticos.
Tudo isso significa que os sistemas e as crises ecológicas precisam ser explicados de forma interdisciplinar. Pois, embora a física, a química, a biologia e a geologia sejam relevantes, também o são a história, a geografia, os estudos sociais e as instâncias de todas as grandes religiões sobre as questões mencionadas acima. É claro que existe um amplo argumento para que todos sejam educados nessas e em outras disciplinas, de qualquer forma; mas os tópicos mencionados anteriormente são suficientes para mostrar a necessidade de esforços educacionais abrangentes e interdisciplinares, para que os jovens compreendam os problemas que, como cidadãos, terão que enfrentar e sobre os quais terão que deliberar.
No entanto, existe o perigo de que a educação não consiga envolver ou entusiasmar os alunos, ou até permitir que eles se desenvolvam integralmente como pessoas. A educação em todos os níveis precisa incluir temas que, além de informar e desenvolver a compreensão, alimentem a imaginação e as emoções, principalmente por meio do estudo de idiomas e literatura. Mas é provável que a imaginação e o engajamento também sejam estimulados através do tipo de educação defendida por Rachel Carson, com a qual começamos esse artigo. Em particular, a educação que negligencia o estímulo à admiração corre o risco de fornecer informações vitais ao custo dos alunos se tornarem ou ansiosos ou apáticos, em vez de bem preparados e engajados.
A abordagem de Carson sugere que a educação ao ar livre deveria ter uma posição proeminente na educação ambiental e que deveriam haver oportunidades para o ensino individualizado sobre, por exemplo, as histórias existenciais de plantas, pássaros, mamíferos e insetos. Este é um dos caminhos mais prováveis para inculcar um senso de admiração. E, como afirmou Carson, a admiração pelo mundo natural geralmente leva ao respeito e à sensação de que “isso deve continuar”. Além disso, ensinar sobre ciência ecológica e história natural revela criaturas e sistemas que evoluíram independentemente das metas e dos propósitos humanos e compreender isso pode levar a um senso de seu valor estético e de sua dignidade e, portanto, à importância da preservação, tanto para o próprio bem das criaturas quanto para o da humanidade (Moore, 2005, p. 273). Não é apenas a educação dos nossos filhos que está em jogo, mas também o bem-estar dos filhos de nossos filhos e do mundo que eles herdarão também.
CALDECOTT, J. Implications of Earth System Tipping Pathways for Climate Change Mitiga-tion Investment. Bristol: Schumacher Institute for Sustainable Systems, 2022.
CARSON, R. Silent Spring. New York: Fawcett World Library, 1962.
CARSON, R. The Sense of Wonder. New York: HarperCollins, 1965.
CHO, R. How Close Are We to Climate Tipping Points? In: COLUMBIA CLIMATE SCHOOL, State of the Planet. New York: Columbia University, 2021. Leia aqui.
HEPBURN, R. “Wonder” and Other Essays: Eight Studies in Aesthetics and Neighbouring Fields. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1984.
LENTON, T. Early Warning of Climate Tipping Points. Nature Climate Change, vol. 11, July, 2011. Leia aqui.
LENTON, T.; ROCKSTRÖM, J.; RAHMSTORF, S.; RICHARDSON, K.; STEFFEN, W.; SCHELLNHUBER, H. J.; GAFFNEY, O. Climate Tipping Points – Too Risky to Bet Against. Nature, 575, p. 592-595, 2019. Leia aqui.
MOORE, K. D. The Truth of the Barnacles: Rachel Carson and the Moral Significance of Wonder. Environmental Ethics, 27, 3, p. 265-277, 2005.
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Rachel Carson, maravilha e educação ambiental. Artigo de Robin Attfield - Instituto Humanitas Unisinos - IHU