08 Novembro 2024
Em minhas reflexões recentes sobre o envelhecer e o morrer, tenho recorrido aos livros de Ana Claudia Quintana Arantes, que é medica formada na USP e especialista em cuidados paliativos. Seus livros são preciosos. Há também no Youtube várias conferências e lives com sua participação e reconheço que há ali muitos aprendizados.
A entrevista com Ana Claudia Quintana Arantes, é de Mirian Goldenberg, publicada pela revista Vogue e reproduzido por Faustino Texeira, em seu Facebook.
Na entrevista que ela concedeu a Mirian Goldenberg na Vogue ela tece alguns detalhes interessantes de sua vida. Fiquei surpreso ao saber que ela hoje se relaciona com o monge Alcio Braz, que escreveu um livro singular: O grande silêncio. Uma introdução à meditação Zen (Gryphus, 2016).
Alcio recebeu seus votos como praticante ordenado do mestre Ryotan Tokuda Roshi.
Pude então compreender a atenção que Ana Claudia dedica ao tema da espiritualidade no seu trabalho. Tudo muito interessante. Partilho então a entrevista que achei bem legal:
Desde 2013, quando vi pela primeira vez o TEDx “A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver”, fiquei encantada com o trabalho maravilhoso e com a personalidade da médica geriatra Ana Claudia Quintana Arantes, referência nos estudos de envelhecimento, cuidados paliativos e morte.
Não é por acaso que o vídeo da sua palestra viralizou no YouTube, alcançando mais de 3 milhões e 500 mil visualizações.
Depois de conhecê-la, devorei seu livro com o mesmo título, um best-seller publicado em diferentes países, e todos os livros que se seguiram.
O que mais me encanta em Ana Claudia é que, seja em um evento para milhares de pessoas, seja com um paciente que está no chão do hospital, ou na nossa conversa de quase duas horas para o canal Sua Idade da Vogue, ela é sempre a mesma: a mesma doçura, a mesma generosidade e o mesmo sorriso.
Confira abaixo o bate-papo que tive com a médica, onde ela contou como encara o envelhecimento, a morte e suas paixões na vida.
Mirian Goldenberg: Queria que você contasse para as leitoras de Sua Idade, da Vogue, como é a sua relação com a moda
Ana: Tenho um profundo respeito por moda, penso que as escolhas que me vestem mostram para as pessoas o caminho que escolhi para estar no mundo. Enxergo a moda como um espaço de beleza nesse mundo onde a diversidade, embora seja muito cultuada, ainda não é respeitada.
Eu gosto de conhecer quem faz o que eu visto. Lembro que o primeiro vestido que eu comprei tinha uma etiquetinha: “Meu nome é Érica, eu demorei 23 horas para fazer esse vestido”. Tenho o vestido até hoje, um vestido que carrega o tempo de vida de alguém.
Não é comum ver mulheres de 54 anos, especialmente médicas, tatuadas. Podem até ter, mas escondem. Por que você não esconde suas tatuagens?
Para mim, a escolha de fazer uma tatuagem é a escolha de um momento da minha vida que me marcou muito, que foi muito difícil, mas que eu encontrei beleza em viver.
Cada uma das minhas tatuagens tem o simbolismo de uma flor escolhida. As flores marcam tudo o que aconteceu na minha vida de bonito, mas que também foi doloroso.
Vou te contar um caso engraçado. Em uma festa, uma pessoa da família me deu uma secada, fazendo aquelas caras e bocas, e disse:
“Eu detesto tatuagem, acho um absurdo fazer isso com o corpo, templo de Deus, Deus é perfeito, fez tudo perfeito”. Ficou aquele climão.
Essa pessoa não fazia dieta, não fazia exercício, não cuidava direito da saúde. Falei: “Penso que cabe a nós proporcionar a experiência que nos foi ensinada na parábola dos talentos, lembra?
Eu valorizo tanto a obra de Deus que estou decorando o templo, colocando flores na fachada.
Existem tatuagens bem mais feias do lado de dentro: artérias que entopem, cicatrizes de cirurgias que foram feitas decorrentes do mau uso do corpo.
Pior são as tatuagens feitas pelo mau uso do corpo e não pelo cuidado da beleza desse corpo”. Nunca mais ela falou das minhas tatuagens.
Qual é a reação dos seus pacientes com as tatuagens?
Nunca escondi as tatuagens de pacientes e frequentemente recebo elogios, inclusive de pacientes mais velhos.
Mas eu reconheço que tenho um lugar que me permite essa ousadia. É uma ousadia que não é proposital, mas faz parte de uma construção pessoal de presença.
Você recebe muitas críticas dos médicos?
Tem uma crítica que fazem: “A Ana Claudia? Ela só faz poesia com o cuidado paliativo. Porque o dia a dia é diferente, não é tão bonito assim. Como ela fala: ‘A morte é um dia que vale a pena viver’ com tanta gente morrendo no país?”.
Eu respondo: “É função do profissional de saúde transformar essa experiência em alguma espécie de contexto digno”. O paciente está no chão do pronto socorro eu me agacho e digo:
“O plantão hoje está muito difícil. Tem alguma coisa que eu possa fazer para o senhor agora?”
Sabe o que eu ouvi?
“Não se preocupe comigo, eu vou rezar pela senhora, vai dar tudo certo, não se preocupe”. Aquele paciente se importou comigo porque eu me importei com ele. Isso é encontrar beleza no caos.
Durante a pandemia de Covid, era o caos, Mirian. Estudantes de medicina me ligavam do banheiro do hospital, chorando, de madrugada para perguntar: “doutora Ana acabou de morrer uma paciente. Como eu vou dizer para a mãe dela?”
Você vai dizer para a mãe que tudo o que você sabe na vida você fez para ajudar e que infelizmente ela morreu.
Diz que ela foi muito parceira com você, ela buscou responder tudo o que você ofereceu. E que ela se foi muito bem cuidada.
A mãe chorou agradecida, queria dar um abraço, mas não podia abraçar naquele momento. Me emocionei só de lembrar. A experiência da dignidade é um encontro de quem cuida e de quem é cuidado. Esse encontro é que tem beleza.
Fico muito impressionada com a quantidade de coisas que você faz, que você produz. Como você organiza o seu tempo?
Em 2018, depois que eu quebrei o pé, decidi que ia organizar minha agenda digitalmente porque antes era tudo manual.
Aí eu comecei a colocar cor nas atividades e compromissos. O azul era autocuidado: terapia, fono, ginástica, fisioterapia.
As coisas de trabalho em rosa: pacientes, visitas domiciliares, consultório.
Aulas, cursos, eu coloquei em vermelho.
E coloquei verde para tempo livre.
Então eu falei: “Vou reflorestar a minha agenda. Teve um desmatamento do tempo livre agora eu vou reflorestar”.
Comecei a colocar livre em todos os espaços entre reuniões, mesmo que 30 minutos.
Aí a minha assistente que administra as demandas de palestras me ligou:
“Ana, eu tenho um pedido de palestra e vi aqui que a sua agenda está livre”. Eu falei: “O que está escrito?” Ela: “Está escrito livre”. Eu respondi: “Então estou ocupadíssima. Estou ocupada sendo livre”.
O modo como eu utilizo o meu tempo é um modo consciente. Eu escolho não desperdiçar meu tempo. No avião, um tempo que teoricamente é inútil, eu volto à minha infância: “Vou brincar de quê?” De escrever poesia, meditar, ver minhas fotos.
Quando foi o desmatamento?
Quando publiquei meu livro, o TED já estava com um nível muito grande de visualizações e eu comecei a ter muitos convites para dar aula no Brasil todo.
Mirian, tinha mês que eu estava em três estados na mesma semana.
Então foi um tempo de desmatamento, que eu curti muito, foi pesado, mas foi bonito.
O desmatamento aconteceu por conta desse florescimento profissional. Quando quebrei o pé tive que parar tudo.
Você ficou nesse desmatamento…
Dois anos e meio.
Quando você quebrou o pé?
Foi no dia 18 de outubro de 2018. Eu estava indo fazer uma visita domiciliar. Como eu tinha pouco tempo, vi que se eu fosse de metrô ia ser muito mais sensato do que ir de carro porque era do outro lado da cidade. Como boa geriatra que eu sou eu fui de escada fixa, porque eu pratico aquilo que eu recomendo.
Fui de escada fixa e faltando quatro degraus eu caí. Meu pé ficou pendurado. Aí eu fiquei seis semanas sem botar o pé no chão e quase três meses de muleta. A expectativa era que eu voltasse a andar normal depois de 1 ano e três meses, mas eu consegui fazer isso com nove meses porque eu fazia fisioterapia todos os dias.
Isso fez você reflorestar sua vida?
Porque nesse tempo eu tive que cancelar todas as aulas, não podia viajar, não podia ir ao consultório, então eu comecei a fazer mais telemedicina, num tempo que não era pandemia, porque muitas coisas eu conseguia resolver remotamente. E eu tive tempo para usufruir com os meus amigos.
Eu tinha um grupo de WhatsApp com amigas e amigos e tinha escala de plantão para ficar comigo. Eu realmente coloquei em prática uma rede de apoio emocional, social, familiar, espiritual.
Você disse que é muito autossuficiente. Foi difícil para você pedir ajuda?
Foi muito difícil, porque existe um espaço de autocuidado que é mais fácil do que receber cuidado de alguém.
Se eu peço ajuda para você: “Mirian, eu preciso ir ao banheiro”, você diz: “Aninha, só um minuto”. O seu um minuto pode variar de um minuto a 45 minutos.
No hospital acontece isso também.
Você liga: “Preciso ir ao banheiro”, a pessoa que te atende: “só um minutinho”, e um minutinho pode levar 50 minutos. O cuidado que o outro te oferece é o tempo do outro. Receber cuidado é muito desafiador.
Você voltou ao desmatamento?
Eu gosto muito do que eu faço, estou muito feliz com as escolhas que eu construí até hoje e tem momentos que eu preciso equilibrar os pratinhos. Gosto muito desse momento da minha vida, não trocaria por nada.
Não queria ter menos idade, não queria ser mais nem menos do que eu sou. Acontece de ter dias que são muitos cheios, mas tudo é muito gostoso. Mas também tem espaços que eu digo não.
Eu vi no seu Instagram que você fez uma promessa na pandemia
Quando a pandemia começou eu tive um estado de angústia que não era explicável pelo contexto inicial, porque ninguém tinha noção do que de fato iria ser. E talvez intuitivamente eu tivesse.
Eu sofri muito no começo, fiquei muito ansiosa, muito angustiada. Quando eu dizia que estava muito preocupada, as pessoas diziam: “Mas vai dar tudo certo, imagina, três semanas, dois meses no máximo. Vai ficar tudo normal de novo”. E eu sentia que não ia ser isso.
Aí começou a morrer muita gente, e eu acompanhando tudo de perto. Dei suporte para profissionais, pacientes, enlutados, dei cursos de cuidados paliativos.
Quando eu ia para o aeroporto, ia quase com um escafandro, mas mesmo assim aquele medo. Pensei: “Eu posso morrer”.
Olhava para trás e me perguntava: “O que ficou faltando?” Faltou arte na minha vida, e música para mim é vida.
Muitos shows eu ouvi da minha varanda porque eu morava perto do estádio do Morumbi. O show do Paul McCartney, do U2, não pude ir porque estava trabalhando.
Então o que eu fazia? Colocava uma camisola, pegava um vinho, sentava na varanda e escutava de longe. Mas não era a mesma coisa: eu queria estar na pista.
Então eu prometi: “Se eu sobreviver e se um dia voltar, não sabia nem se ia voltar, eu vou a todos os shows que para mim são importantes”.
E fui ao show do Milton Nascimento com o meu namorado, na pista, em pé, dez da noite, no Rio. Quando ele começou a cantar com aquela voz perfeita, eu pertinho, eu me acabei de chorar, meu namorado se acabou de chorar. A gente chorou, dançou, cantou até perder a voz.
Aí eu disse: “A gente tem que ter condição de ficar na pista em pé, vivendo a emoção de assistir a vida ali na sua frente, dando energia para o artista e vendo essa energia voltando.
A vida vale a pena viver na pista. É claro que na arquibancada a gente curte, mas a gente tem que se preparar para poder ser capaz de viver na pista”.
Muitas mulheres reclamam que é difícil encontrar um amor e você encontrou aos 53 anos. Como você encontrou um amor durante a pandemia?
Eu estava apoiando a coordenação de um curso de Capelania (assistência espiritual), o coordenador desistiu e eu tive que assumir a coordenação do curso. Aí chegou a hora de chamar um budista para dar aula sobre o que era o sofrimento e a morte no budismo.
Perguntei para os meus amigos budistas: “Vocês podem me indicar alguém para dar essa aula?” E me indicaram o Alcio Braz. Mandei mensagem para o Alcio, me apresentei, e disse que gostaria de convidá-lo para dar a aula sobre budismo.
E ele: “Convite teu, não vou nem olhar a agenda, vou cancelar o que eu tenho e a resposta é sim, que honra”.
Depois de um tempo, pedi a minibio e uma foto. Aí ele mandou a minibio: “Médico, psiquiatra formado na UFRJ, monge zen budista, mestre em antropologia”. Pensei: “Que pessoa é essa? Médico, psiquiatra, monge zen, antropólogo?”
Antropologia é a faculdade que eu ainda quero fazer na vida.
E colocou também: “Tenho três filhas, uma filha que mora na Alemanha, tenho dois cachorros”. A minha filha mora na Alemanha também. Aí ele mandou a foto. Quando eu vi a foto, ele é todo tatuado. “Uau, que coisa boa de ver”.
Chegou o dia da aula on-line. Quando ele começou a falar, eu pensei: “Que voz é essa? Eu quero morar nessa voz maravilhosa”. 22h30 terminou a aula e eu mandei uma mensagem:
“Estou passada, me diz onde você conduz meditação porque foi incrível tudo o que você falou”.
Depois de uma semana trocando mensagens ele mandou um email para mim.
“Não tenho mais idade para enrolar, eu quero te conhecer melhor. Então eu quero te propor pra gente fazer um zoom date e depois eu vou para São Paulo ou você vem para o Rio, a gente combina”.
Fizemos um zoom date, no dia 21 de novembro de 2021, e ficamos 4 horas conversando. No dia 28 de novembro ele veio para São Paulo.
Quando a gente se abraçou a gente chorou porque a sensação foi que tínhamos voltado pra casa, aquele abraço de “cheguei no meu lar”. No dia 5 de fevereiro de 2022 a gente fez a nossa cerimônia de casamento.
Quando as pessoas perguntam se tenho dicas, digo: não tenha tempo, não procure, não ache que vai encontrar porque eu tinha certeza de que não existia essa pessoa. Então não tenha tempo, não busque, não esteja aberta para isso e aí acontece.
Como é o seu tempo hoje?
Eu tenho uma poesia com o título ‘Canibalismo’: a minha vida me devora. O meu tempo me devora, ele está me comendo viva. Meu tempo é a minha fonte de energia, minha fonte de alegria, minha fonte de descoberta, e ao mesmo tempo me devora.
Se a gente for pensar em uma refeição muito deliciosa, que você saboreia cada momento, então esse tempo me devora me saboreando.
É um tempo que se farta da minha vida, fica satisfeito com o que eu posso oferecer de presença, de consciência. Tem uma poesia da Adélia Prado que diz: “Não quero faca nem queijo. Quero a fome”. Para mim, isso é envelhecer bem: ter apetite pela vida.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Conheça a médica Ana Claudia Quintana Arantes, que ajuda a quebrar paradigmas sobre envelhecimento e morte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU