30 Outubro 2024
A reportagem foi publicada em Religión Digital, 29-10-2024.
O chileno Juan Carlos Cruz, vítima de abusos por parte de um padre pedófilo, comemorou como "uma garantia de não reincidência" o primeiro relatório sobre a gestão desses crimes, apresentado nesta terça-feira pela Comissão Vaticana para a Proteção dos Menores, da qual ele faz parte.
"Jamais pensei que esse dia chegaria, e se me dissessem isso há 15 anos, quando eu já lutava há muitos anos, não imaginaria um resultado como este", disse Cruz na coletiva de imprensa de apresentação do documento.
Juan Carlos Cruz, uma das vítimas e denunciantes do padre Fernando Karadima, é membro da Comissão Pontifícia para a Tutela dos Menores, instituída pelo papa Francisco em 2014 para enfrentar a crise dos abusos.
O organismo acaba de apresentar seu primeiro relatório anual sobre a gestão desses casos em um total de 20 igrejas e várias congregações religiosas ao redor do mundo, destacando tanto avanços quanto deficiências na resposta ao problema e oferecendo recomendações.
Cruz agradeceu ao papa Francisco e aos colegas da comissão, mas também às "vítimas conhecidas e desconhecidas" dos abusos clericais:
"Gostaria de agradecer àqueles que, tragicamente, não estão mais entre nós, pois muitos se suicidaram, deixando o mundo sem esperança alguma. Esta jornada é muito importante também por eles", afirmou o chileno.
Segundo Cruz, o relatório representa "um primeiro passo de enorme importância", mas alertou que "isso não significa que o que ocorreu antes não tenha relevância".
"Não podemos avançar se não assumirmos tudo o que deixamos para trás, o passado das pessoas. Devemos ser transparentes ao trazer à luz casos ainda não resolvidos", concluiu.
Ao lado do presidente da Comissão, o cardeal americano Sean Patrick O'Malley, também participou o secretário do órgão, o arcebispo auxiliar de Bogotá, Luis Manuel Alí Herrera, que optou por falar em espanhol, em vez de inglês ou italiano, para demonstrar que o problema dos abusos é global.
"Sou o membro mais antigo, estou na comissão há 10 anos e vi todas essas resistências, não apenas na Cúria vaticana, mas também na Igreja local. Essa é uma das coisas que mais me impactaram e tocaram; foi uma cruz para mim ver as resistências da mesma instituição que amo e à qual dediquei minha vida", confessou.
No entanto, o bispo colombiano destacou que presenciou "muitas mudanças significativas" no enfrentamento dessa questão delicada, especialmente nos últimos cinco meses, período em que, como secretário, precisou se reunir com dicastérios e instituições vaticanas.
"Encontrei abertura nos dicastérios que visitei e um desejo de caminhar juntos. Sim, ainda há lacunas, pois é necessária uma gestão cada vez mais eficaz, mas também constatamos que houve abertura", afirmou.
Por sua vez, o cardeal O'Malley considerou que o primeiro relatório sobre a gestão dos abusos no mundo, por ele coordenado, representa uma "transição" para uma maior "acolhida" das vítimas, deixando para trás "um período obscuro" e "pecaminoso".
"Respeitamos o testemunho corajoso das vítimas e reconhecemos que vocês estão cansados de palavras vazias, mas seu sofrimento nos mostra que, como Igreja, falhamos em protegê-los", admitiu durante a apresentação do "Primeiro Relatório sobre as Políticas e Procedimentos da Igreja para a Proteção dos Menores".
Ele explicou que o relatório é "uma amostra do processo de conversão que todos nós começamos em direção a uma maior proximidade, acolhimento e apoio às vítimas e sobreviventes em suas demandas por justiça e cura".
O cardeal admitiu que a Igreja Católica "não protegeu" os afetados: "Resistimos a compreendê-los e tudo o que fizermos nunca será suficiente para reparar o dano que vocês sofreram, mas esperamos que este e os próximos relatórios possam garantir que esses eventos terríveis não se repitam", afirmou.
Ele também agradeceu às vítimas por seu testemunho diante de "experiências dolorosas incalculáveis" e destacou que sua "dignidade humana foi repetidamente violada".
"Suas histórias revelam um período sem confiança, no qual os líderes da Igreja decepcionaram tragicamente aqueles que deveriam seguir. Foi um período sem profissionalismo, em que as decisões foram tomadas sem respeito aos procedimentos ou aos padrões básicos de proteção das vítimas", lamentou.
O'Malley concluiu: "Foi um período sombrio, em que a desconfiança impediu a Igreja de ser testemunha do amor de Cristo".
No entanto, ele acredita que esse tempo obscuro abre caminho para uma "segunda fase", marcada por "responsabilidade, cuidado e preocupação" com as vítimas. Esse novo período propõe protocolos para criar "espaços seguros" e processos de acompanhamento dos casos, envolvendo pastores e leigos treinados para responder adequadamente.
Maud de Boer Buquicchio, membro da Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores e ex-relatora especial da ONU sobre a exploração sexual de crianças, descreveu o relatório anual como "honesto e objetivo".
"É importante porque, pela primeira vez, um organismo independente, ainda que vinculado à Santa Sé e instituído pelo Papa, elabora um relatório honesto e objetivo sobre o estado da proteção dos menores contra abusos e abusos sexuais na Igreja", afirmou Buquicchio aos meios de comunicação do Vaticano.
"Este relatório é objetivo porque, por um lado, baseia-se nas informações recolhidas durante os encontros com bispos em suas visitas anuais a Roma. Por outro lado, tentamos incluir a voz das vítimas em nossa reflexão", explicou a especialista.
Buquicchio reconheceu que a metodologia é complexa e sujeita a falhas, mas acredita que a experiência dos membros da comissão – alguns inclusive vítimas de abusos no passado – e o diálogo com grupos de vítimas ajudaram a identificar erros a serem evitados.
Este é apenas o primeiro relatório, mas será "cíclico", anunciou Buquicchio: "A cada ano, poderemos aprofundar diferentes aspectos e incluir a voz das vítimas de forma ainda mais sistemática".
A especialista expressou esperança de que, a longo prazo – "e espero que não muito", afirmou – o caminho iniciado por muitos bispos e membros da Igreja resulte na eliminação dessa chaga, que é um problema "não só para o mundo exterior, mas sobretudo para as vítimas".
Buquicchio acrescentou: "Essa situação apresenta uma imagem muito dura e negativa da Igreja".
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Juan Carlos Cruz: “Muitas das vítimas suicidaram-se, deixaram o mundo sem esperança” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU