“O trabalho da Igreja pela paz e pelo diálogo inter-religioso corre o risco de não ser mais levado a sério – para não falar da credibilidade da Igreja para anunciar o Evangelho de Jesus Cristo –, pois há uma crise histórica: uma ameaça que vem de dentro”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por La Croix International, 17-11-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Entre a propaganda anticomunista que se espalhou pela Itália nos primeiros anos após a Segunda Guerra Mundial estava a ameaça de que os cossacos logo dariam água a seus cavalos nas fontes da Praça São Pedro.
Era uma época em que alguns temiam pela sobrevivência da Igreja. Mas naquela época o Vaticano gozava de legitimidade religiosa, moral, cultural e política no cenário político global e doméstico. Foi apenas alguns anos após o Tratado de Latrão de 1929 que Pio XI assinou com o regime fascista de Benito Mussolini. Esse pacto consolidou, pelos anos restantes do regime, o consenso da maioria dos italianos em torno do fascismo – até que o desastre da Segunda Guerra Mundial abriu os olhos daqueles que estavam cegos para a real natureza da ordem autoritária de Mussolini.
Para o papado e o Vaticano, o tratado de 1929 teve um efeito muito mais longo por resolver a “questão romana” e deu ao papado um status institucional, legal e diplomático que a Santa Sé ainda desfruta até hoje. Esse status protege o papado simbolicamente, juridicamente e politicamente de maneiras que muitas vezes tomamos como certas. É uma das razões pelas quais o Bispo de Roma tem um perfil global diferente do Arcebispo (Anglicano) de Canterbury ou do Patriarca Ecumênico (Ortodoxo) de Constantinopla.
Mas nos últimos 20 anos, o Vaticano tornou-se cada vez mais identificado com escândalos, especialmente relacionados à crise dos abusos sexuais do clero e às graves irregularidades financeiras. Isso coincidiu com a perda de deferência que as autoridades seculares (imprensa, polícia, sistema de justiça) mostraram às autoridades da Igreja quando a imprensa católica ainda estava sob o controle da hierarquia. Foi um tempo em que, apesar de a Igreja e o Estado se relacionarem de forma diferente nos vários países do Ocidente, havia uma certa convergência entre os dois. Basta pensar no anticomunismo e no papel do casamento (tradicional) na sociedade.
Esse relacionamento não existe mais. O fim da Guerra Fria, a secularização e o surgimento de uma sociedade multicultural e multirreligiosa privaram a Igreja da proteção de que precisava quando esta nova era de escândalos surgiu.
É verdade que a Igreja e os Estados Nacionais sofrem uma crise de legitimidade. E há claramente um paralelismo aqui. Para os Estados-Nação, é a influência penetrante que as corporações e redes transnacionais e globais ganharam neste estágio do capitalismo mundial. Depois, há as potências mundiais que estão cada vez mais sem medo de interferir de novas maneiras (graças às novas tecnologias) na ordem interna de outros estados. Esses fatores também tiveram um impacto negativo na Igreja. Mas também há um novo tipo de pressão interna – é dos católicos que, de maneiras diferentes, mas semelhantes, reagem contra esta nova era de corrupção enquanto esperam uma reforma (ou uma Reforma).
A diferença é que os Estados-Nação estão reagindo (caso em questão: a pandemia de covid-19) de uma forma que a Igreja Católica não é capaz de replicar. A Igreja feita de “fiéis sem fronteiras”, uma realidade que torna em grande parte uma ficção a própria ideia de poder eclesiástico e jurisdição de forma territorial. Além disso, a crise dos abusos deixou claro para muitos católicos que, quando se trata da crise dos abusos, não há outro recurso legal senão o sistema de justiça secular.
Jonathan Laurence, um cientista político do Boston College, publicou recentemente um livro, “Coping with Defeat: Sunni Islam, Roman Catholicism, and the Modern State” (“Lidando com a derrota: o islamismo sunita, o catolicismo romano e o Estado moderno”, em tradução livre),no qual argumenta que uma das maneiras pelas quais a Igreja Católica tentou lidar historicamente com a derrota foi institucionalizar e profissionalizar suas elites. Aconteceu após a Reforma Protestante nos séculos XVI e XVII, e após o impacto com o Estado-Nação liberal no século XIX e na era da migração em massa.
Mas a impressão que se tem hoje é que a Igreja não consegue seguir esse caminho. Pelo contrário, está a caminho da desinstitucionalização, especialmente no Ocidente. Este é um dos efeitos colaterais da ênfase na necessidade necessária de descentralizar e relativizar o papel do sistema legal e institucional no catolicismo.
Isso significa que a autoridade do papado terminará em breve, no sentido de um desinstitucionalizar o Estado da Cidade do Vaticano? Não, mas sua legitimidade está em crise. E isso tem e continuará a ter consequências na sua capacidade de operar.
Seria ingênuo pensar que os generosos esforços humanitários e de pacificação do papa em países devastados pela guerra e áreas de tensão resolverão essa crise de legitimidade. Parte da razão é que, para lidar com ditadores e líderes autoritários no mundo de hoje, o papado precisa de uma credibilidade mais forte, não mais fraca do que a que Paulo VI desfrutou quando se dirigiu às Nações Unidas em Nova York em 1965 e exclamou: “Não há mais guerra! Guerra nunca mais!”
Os recentes apelos do Papa Francisco e de seu secretário de Estado, o cardeal Pietro Parolin, por um “novo espírito de Helsinque” referem-se a uma época muito diferente, quando a Santa Sé tinha tanto prestígio que foi convidada a participar da Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa na capital finlandesa em 1975 e autorizada a assinar sua declaração final.
Múltiplas crises surgiram e vieram à tona durante o atual pontificado, também graças à coragem de Francisco de colocar em risco a legitimidade do Vaticano e sua alta soberania moral. Isso poderia significar uma Igreja que não consegue resistir à pressão, por exemplo, de abrir seus arquivos para investigações de casos de abuso no alto escalão. Isso poderia finalmente privar alguns líderes da Igreja da ilusão de que esta é uma crise temporária.
Pelo contrário, esta é uma crise histórica que pode prejudicar seriamente os esforços globais da Igreja para sempre. Seu trabalho pela paz e pelo diálogo inter-religioso corre o risco de não ser mais levado a sério – para não falar da credibilidade da Igreja para anunciar o Evangelho de Jesus Cristo. Isso é particularmente verdadeiro para este pontificado, porque Francisco escolheu o caminho arriscado, mas necessário, para dialogar e testemunhar o Evangelho com todos os líderes políticos mundiais, não importa quão inconsistente ou embaraçoso seja seu histórico de democracia e direitos humanos. É mais importante do que nunca que o papado mantenha um certo nível de credibilidade, especialmente internamente.
Esta é uma das razões que faz da crise dos abusos na Igreja Católica, em nosso mundo globalizado, uma nova versão global e ecumênica do articulus stantis et cadentis ecclesiae – “a questão sobre a qual a Igreja se mantém ou cai”.
O problema não é mais se os cossacos podem invadir o Vaticano e dar água a seus cavalos nas fontes da Praça São Pedro. E a pergunta desdenhosa que Joseph Stalin supostamente fez – “Quantas divisões tem o papa?” – não é mais ameaçadora. Afinal, a Igreja Romana sobreviveu ao comunismo.
Não, a Igreja deve agora dar uma olhada cuidadosa em uma ameaça mais sutil, mas não menos insidiosa. E desta vez está vindo de dentro.