22 Outubro 2024
Li três vezes o artigo de Frei Betto intitulado “O silêncio dos inocentes”. Para ordenar as ideias, escrevi a ele uma carta em que parto de algumas afirmações suas para clarear meu próprio pensamento sob a forma de diálogo com ele. Reproduzo aqui o texto.
O artigo é de Pedro A. Ribeiro de Oliveira, sociólogo.
Você delimita bem sua referência: “nós que, dotados de consciência crítica, não sabemos como agir”. Além de consciência crítica, acrescento a motivação ética porque há quem tenha consciência crítica, mas falta-lhe motivação para a ação. Mas concordo: hoje não sabemos o que fazer.
Você responsabiliza nossa inação pela crença no “determinismo histórico”, que levaria a sociedade do capitalismo ao socialismo. De fato, o capitalismo está aí mas teve que mudar de forma: agora o lucro vem do pedágio que os proprietários das big techs cobram de tudo que passa por elas (o tecnofeudalismo, de Varoufakis) e o rentismo do capital financeiro (L. Dowbor). Ambos se referem à intermediação da compra e venda em larga escala por quem controla a informática e/ou a finança. De fato, o capitalismo regrediu a um tipo de feudalismo fundado sobre o domínio de patentes e de tecnologia. Mas esta é uma questão que pode ser deixada de lado, pois o que importa é que ao desmoronar nossa crença na necessidade do socialismo ficamos sem saber para onde caminhar. Nisso estamos de acordo. Sigo a diante.
Antes disso, porém, quero fazer a distinção entre ser de esquerda (seguindo N. Bobbio) e se opor ao imperialismo dos EUA. O ideal igualitário combina bem com o respeito à soberania dos povos, mas são coisas distintas. O imperialismo dos EUA não aumentou porque caiu o socialismo soviético, mas sim porque a Rússia perdeu sua capacidade política e militar de fazer frente a ele. Putin recuperou essa capacidade e a Rússia voltou a se opor ao imperialismo dos EUA mesmo sendo agora capitalista. Se bem que a esquerda torce(mos) pela Rússia e pela China na geopolítica atual, como se isso favorecesse o socialismo. Apesar da boa definição do N. Bobbio, esquerda e direita hoje são categorias de pouca utilidade fora do quadro estritamente eleitoral.
Agora vou ao cerne da questão: as redes digitais, que são um subproduto da informática. Antes de ser uma arma dos poderosos, a informática é a base de sua riqueza: ela submete o mercado (as relações entre demanda e oferta) a seu controle. Além disso, a informática controla as tecnologias de produção, transportes, comunicação, etc. Enfim, por meio das redes, controla os corações e as mentes da população mundial. Por isso os super-ricos são superpoderosos. A classe dominante é minúscula, mas mundializada e poderosíssima. Tem a seu serviço os ricos e a classe média (20 a 30% da população mundial?): gente que se identifica com eles e comanda o capitalismo de rapina (mineração, agronegócio, exploração de petróleo, expansão sobre territórios preservados, etc.). Nos setores intelectuais dessa grande classe média está quem não deseja servir os super-ricos, mas se submete – como nós – para não cair na pobreza da massa (os 80% da população mundial).
Aqui situo a novidade do mundo atual: a luta de classes tornou-se tão desigual, que as classes dominadas já não lutam mais. Exceto algumas minorias – como o Palestino que prefere a morte à perda de sua dignidade – a massa empobrecida desistiu de lutar e adere aos influenciadores/as.
Essa dominação cultural merece ser mais estudada, porque ela funciona em cascata: os muito ricos ocupam o topo da admiração de todos; abaixo deles os milionários e o/as famoso/as cujo estilo de vida todos querem imitar; enfim vem as classes mais ou menos empobrecidas que acreditam no sonho de serem ricas ainda que pelo jogo ou por intervenção divina. Essa gente percebe que acredita em promessas que podem não ser verdadeiras, mas, como não se pode ter certeza de coisa nenhuma, são – somos! – levados a aderir à informação que nos parece mais conveniente, mesmo tendo motivos para suspeitar de seu fundamento.
Isso coloca o tema da plausibilidade. Uma informação é plausível se corresponde à experiência vivida e ao desejo. Vivemos a experiência do desmoronamento do mundo – o fim da civilização ocidental-cristã, a ameaça de guerra nuclear e até de extinção da espécie humana – mas este é um assunto proibido embora no fundo, no fundo, intuímos que é verdade. Não queremos que seja, e para contrabalançar essa experiência, o jeito é aderir alguma verdade contrária oferecida pelas redes digitais e pela mídia corporativa, sendo secundadas por igrejas, sociedades esotéricas, institutos e todo tipo de influenciadores/as. Gente como Francisco e quem publica no IHU pode demonstrar por A+B que o negacionismo mente; mas é uma mentira que agrada porque é plausível para quem foge da incômoda realidade sem saída.
Por isso, só dialogamos dentro da nossa redoma (não é simples “bolha”, que estoura facilmente), se é que as redes digitais possibilitam o diálogo! O resultado é o que você constata: “somos incapazes de nos levantar da cadeira para participar de reunião do movimento social, de assembleia sindical, de evento partidário”. Digo mais: e vamos participar pra quê? Quem ainda acredita que nossa Causa é invencível, como proclamava o bispo Pedro do Araguaia? Devemos festejar nossas vitórias – como eleger prefeitas em Juiz de Fora e Contagem – mas sabemos que são efêmeras. Face a essa realidade, o jeito é renunciar à utopia da sociedade sem classes onde Justiça e Paz se abracem incluindo toda a Terra. Politicamente, é uma atitude sensata...
Nessa realidade, meu irmão, não é “a comiseração que nos faz pensar que somos inocentes”, mas sim a consciência da derrota que não queremos (ou não podemos) aceitar, porque nossos erros históricos não mereciam tão duro castigo. A experiência dos primeiros seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré, gente perseguida por ter levado a sério a Fé na promessa do Reinado de Deus na História humana, produziu o livro do Apocalipse, que relata suas derrotas diante da Besta – o todo poderoso império romano. Só quando tudo parecia perdido, o poder do Cordeiro intervém, descendo do céu para instaurar um novo céu e uma nova terra. Ao reler hoje o Apocalipse na perspectiva da Cosmogênese, de L. Boff, entendo a promessa de que a Terra virá em nosso socorro: vai destruir o modo de produção capitalista e toda opressão que ele produz. A população humana será reduzida a um conjunto de pequenos grupos, cada qual vivendo em paz no seu território e convivendo com a Mãe Terra. Isso é ensinado há séculos pelo Sumak Kausay (Bem viver) dos povos andinos e é também o projeto dos povos de Chiapas, para dar apenas dois exemplos nossos.
Para ser coerente com essa Fé no “novo céu e nova Terra” precisamos instaurar uma nova/antiga forma de vida social, onde a simetria das relações de compra e venda do mercado dê lugar à assimetria da comunidade onde o dar, receber e retribuir cria a solidariedade geral. Assim poderá realizar-se o antigo preceito: “de cada pessoa conforme sua capacidade, e a cada uma conforme sua necessidade”. Este é o desafio que hoje se coloca para nossa geração: ser semente dessa nova sociedade, mesmo que isso implique assumir o caminho da cruz.
Com meu agradecimento pelas reflexões que você provocou, envio meu abraço fraterno.
Pedro
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Silêncio ou derrota? Artigo de Pedro A. Ribeiro de Oliveira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU