03 Outubro 2024
Teruko Yahata é uma sobrevivente da bomba de Hiroshima e narra aquele momento como se o estivesse vivendo novamente. Sua voz embarga quando se lembra daquela luz ofuscante, enquanto brincava no quintal de sua casa a cerca de 25 quarteirões do hipocentro (local da explosão), naquele 6 de agosto de 1945, às 8h15.
A reportagem é de Mariano Jasovich, publicada por Infobae, 02-10-2024. A tradução é do Cepat.
Naquela manhã, a mais de 9.000 metros de altura, o Enola Gay, um bombardeiro B-29 da Força Aérea dos Estados Unidos, lançou a Little Boy, a primeira bomba atômica. A detonação ocorreu a 600 metros do solo. Instantaneamente, a temperatura subiu para mais de um milhão de graus Celsius, o ar pegou fogo e uma bola vermelha de 256 metros de diâmetro devorou o horizonte. A morte recaiu sobre dezenas de milhares de pessoas.
Yahata conta que naquela manhã estava de férias de verão e “era um dia com um céu azul muito claro”. Até aquele momento da luz fluorescente que trouxe a morte do céu.
Teruko tinha oito anos naquela segunda-feira que rompeu sua vida em pleno descanso de verão em Hiroshima. Yahata chegou a Buenos Aires para acompanhar a Exposição sobre as bombas atômicas e a paz de Hiroshima e Nagasaki, rumo aos 80 anos dos bombardeios, em 2025. A exposição que começa hoje no antigo Centro Cultural Kirchner [Buenos Aires] é a primeira do gênero em um país de língua espanhola, na América Latina, após uma edição no Brasil, em 2008.
Antes de começar o seu relato, a mulher para diante do auditório lotado e cumprimenta em estilo japonês. Suas mãos são iluminadas pela lâmpada que depois servirá para ler alguns trechos de sua história, quando não se lembrar com exatidão. Primeiro, mostra algumas fotos de sua vida antes da bomba. Uma foto junto com suas duas irmãs e seus pais. Outra em que inicia a primeira série na escola pública da cidade. “Naquele momento, a Guerra do Pacífico já havia começado”, explica.
“Lembro-me daquele primeiro dia de aula com muita felicidade”, diz a sobrevivente. “Na cerimônia de abertura, havia uma fileira de cerejeiras floridas. E todo o chão estava coberto por um rosa claro”. Os sentidos desta mulher conseguem encontrar beleza em suas lembranças, apesar de tanto horror vivido.
“Antes das 8h15, éramos oito em casa: a minha bisavó, a minha avó, os meus pais, a minha irmã mais velha, os meus dois irmãos mais novos e eu”, relembra Teruko. “Tomei um café da manhã já tarde, cansada por ter nadado na praia, um dia antes, com minha família. “Em seguida, fui ao quintal da minha casa”.
Naquele momento, o avião estadunidense lançava a bomba sobre Hiroshima. O céu explodiu em um relâmpago azul e branco. “Como se de repente todo o céu se transformasse em uma única luz fluorescente”, relata a mulher. Yahata, surpresa, cobriu o rosto com os dedos: três sobre os olhos, os polegares sobre as orelhas, os dedos mínimos sobre o nariz. A mulher repete o gesto novamente, diante do público, 79 anos após ter vivido o horror de Hiroshima. Enquanto tentava se jogar no chão, como havia aprendido na escola, uma luz a derrubou. Desmaiada, perdeu a consciência.
Nesse momento do relato, sua voz em japonês aumenta de tom. É como se Teruko voltasse àquele local de Hiroshima, sua cidade natal.
Então, o relato da mulher é interrompido e seus olhos fazem uma espécie de passeio pelos escombros daquela que até poucos minutos atrás era a sua casa natal. “Vi portas quebradas e vidros cravados nos acolchoados e nas costas da minha bisavó. Tudo era uma grande nuvem de poeira ao redor.
“Quando ouvi o grito de minha mãe: ‘Todos, reúnam-se aqui!’, fui lançada de cinco a seis metros, do quintal até a porta principal. Atravessei o corredor e a sala com oito tatames. A dor de cabeça era insuportável. Arrastando-me, segui a voz de minha mãe, mas só encontrava poeira e escombros. Meu pai subiu correndo as escadas despedaçadas e desceu a minha bisavó, presa após a queda do teto. Minha mãe pegou uma colcha grande do armário, estendeu-a sobre a família e disse com voz firme e entrecortada: ‘Vamos morrer todos juntos!’”.
Todas as noites em que tem dificuldade para dormir, a mulher volta a ficar debaixo daquela manta, junto com todos os membros de sua família. “Sinto continuamente o calor e a união daquele momento”, diz.
Depois deste primeiro momento, os Yahata saíram de casa e seguiram em direção à montanha. Lá encontraram sobreviventes da bomba atômica que vinham do centro de Hiroshima. “Eram como fantasmas. Tinham a pele solta e gemiam”, relata Teruko, com um tom de voz embargado. A família também sofreu a investida da chuva negra que caiu após a explosão da bomba atômica. “Mais tarde, soube que muitos ficaram doentes por causa disso”, explica a sobrevivente.
Seu pai a levou até a escola porque Yahata tinha uma ferida na testa. Eles a trataram lá. “Ouvia gemidos por todos os lados e o cheiro de pele queimada que o vento espalhava”, relembra Yahata e mais uma vez seu tom e seu olhar indicam que foi transportada de volta àquele 6 de agosto de 1945.
O hospital improvisado ficava na escola primária de Yahata. Nela conviveu com pessoas feridas que tinham o cabelo arrepiado e a pele queimada que soltava em seus dedos como trapos. A área esportiva da escola se transformou em um crematório gigante. “Nela foram queimados cerca de 2.000 corpos em 7 poços”, relata Teruko.
Após o bombardeio, a família de Yahata foi evacuada para a casa de familiares em Koide-machi, a quatro quilômetros do hipocentro. Lá, comeu um bolinho de arroz quente. Algo tão simples, mas que a encheu de felicidade. “E hoje preparo essa mesma refeição quando quero acolher um convidado”, diz. Do refúgio de seus parentes ao pé das montanhas que cercam Hiroshima, uma Teruko de 8 anos viu sua cidade presa ao fogo. “As chamas vermelhas eram vistas de longe”, lembra.
Um rumor percorria as ruas: “Em Hiroshima, durante 75 anos, não crescerão plantas”. Seu pai decidiu ficar para reconstruir sua empresa, ao passo que o restante da família se mudou para Hikari, na província de Yamaguchi, cercada de montanhas e mar. Muitos em Hiroshima viviam em barracas, em bairros marginais, enquanto o dano por radiação permanecia oculto.
O medo da radiação ainda persegue Yahata, bem como o cheiro da pele queimada das vítimas. “Há noites em que não consigo dormir. Tenho medo do que possa acontecer comigo. No entanto, acredito que devo contar a minha história para que não volte a acontecer”, explica.
A mulher se lembra de uma amiga do ensino médio, também sobrevivente da bomba. A garota, de sobrenome Suetsugu, adoeceu 16 anos depois da bomba. “Aos 24 anos, teve leucemia e morreu após um ano de agonia”, lembra Teruko. Antes de morrer, enquanto sua amiga estava no hospital, ela a escutava falar e se agarrar à vida. “Dizia que queria ver o céu, viver, viver e dançar como a Cinderela.” No entanto, a garota morreu aos 25 anos.
Yahata se levanta e o público aplaude emocionado. A mulher faz a clássica saudação japonesa e olha para o público. Desce as escadas com agilidade, como um pequeno pássaro. Em seu rosto, uma expressão de satisfação. Teruko sente que cumpriu novamente a sua missão: a de denunciar o horror atômico que viveu na própria carne.
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A mulher que sobreviveu à bomba de Hiroshima: “Ainda sinto o cheiro de pele queimada pelo ar” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU