02 Outubro 2024
"Não fazer cultura a sério, por medo de que o 'Povo de Deus' não o entenda, traz em si uma má ideia do 'Povo de Deus'", escreve Joseba Kamiruaga Mieza, missionário e sacerdote claretiano, em artigo publicado por Religión Digital, 29-10-2024.
29.09.2024
Na sua exortação apostólica sobre a evangelização do mundo contemporâneo, São Papa Paulo VI afirmava: “a ruptura entre evangelho e cultura é, sem dúvida, o drama do nosso tempo... Por isso, todos os esforços devem ser feitos para uma evangelização generosa da cultura ou, mais precisamente, das culturas”. E a visita do Papa Francisco à Universidade de Lovaina em 27 de setembro passado, e diante do 600º aniversário de sua fundação, me levou a aproveitar a ocasião para refletir brevemente sobre um tema: a relação entre Igreja e cultura. Que valor a Igreja dá à cultura?
A impressão é que, apesar de tantos séculos de projetos culturais muito robustos e bem direcionados (e talvez justamente por isso), muito se perdeu ao longo do caminho, não apenas em número de fiéis, mas também em capacidade reflexiva, na elaboração do pensamento, na educação para a beleza, no compartilhamento de ideias e opiniões, no estudo livre e na pesquisa com uma perspectiva ampla. Salvo algumas felizes exceções, falta até hoje uma verdadeira e ampla pastoral ordinária da cultura. Há acontecimentos extraordinários, como alguns bons eventos, jornadas…, mas o que é ordinário foi eclipsado. Basta dizer que, por exemplo, muitas dioceses nem sequer têm um setor cultural, nem contato ou e-mail, nem escritório responsável. Até que ponto o medo de enfrentar o mundo moderno atua neste abandono?
Porque, para aqueles que frequentam o mundo cultural, intra e extraeclesial, parece subsistir uma dificuldade estrutural para entrar em diálogo e, assim, compreender os complexos fenômenos culturais da modernidade: mesmo neste caso, diante do que desorienta, refugiamos-nos com demasiada frequência no apologético ou no consolatório, no devocional e no banal, no fechamento e na autorreferencialidade. Temerosos das perguntas, talvez gostemos de insistir nas respostas, sempre as mesmas. Gostamos do intelectual e do artista quando são muito orgânicos ou, quando sendo pouco orgânicos, abordam temas de fé e, de alguma forma, podemos erguer a "bandeira".
Pelo menos sob certo ponto de vista, na vida normal das paróquias, a cultura é relegada ao último lugar, depois da pastoral litúrgica, sacramental, juvenil, caritativa... É muito difícil para nós pensar, refletir e debater corajosamente sobre temas elevados; é difícil abrir espaço para competências específicas. No cotidiano, gostamos das "coisas culturais" gratuitas, portanto, dirigidas por amadores de boa vontade. Temerosos, somos mais propensos a sugerir um livro superficialmente devocional (um viés muito popular que corre o risco de ser relegado a uma espécie de infantilismo intelectual) do que um estudo, mesmo popular, sobre as Escrituras, a arte, a teologia, a filosofia, a ciência. Acontece que repetimos slogans tranquilizadores, sem tirar deles consequências construtivas (por exemplo: "ciência e fé não estão em conflito"... e daí?). Dirão: uma comunidade não pode fazer tudo. Certo. Mas aqui é realmente necessário tentar criar um sistema entre várias comunidades, para que as dioceses se movam nessa direção... além dos museus diocesanos (também aqui com felizes exceções), muitas vezes infinitamente tristes com suas oito vitrinas de vestes e cálices empoeirados.
Uma cultura cristã viva, fresca, aberta, não de conteúdo arqueológico: isso, ao que me parece, deve se tornar um pulmão necessário para o nosso ser cristãos hoje. Uma cultura atualizada, atenta, não assustada. Confiante e disposta a assumir riscos.
Alguns podem ver o perigo do intelectualismo e das elites, imagino: mas não fazer cultura a sério, por medo de que o "Povo de Deus" não o compreenda, traz em si uma má ideia do "Povo de Deus", quase como se fosse uma galinha a ser alimentada com ração pré-mastigada, sem se concentrar no que é belo, verdadeiro e bom... no século XXI. Não pensar em caminhos graduais de frutificação cultural ou, pior ainda, olhar com desconfiança para tudo o que promove a reflexão crítica e a autonomia de julgamento são cargas que nos impomos por sermos habitantes do tempo em que vivemos. Ou será que tememos o valor da reflexão e da autonomia de julgamento?"
Nunca vi representações teatrais feias e descuidadas; concertos mal executados; exposições medíocres de artistas locais com pouco talento e muita devoção emocional; apresentações de livros desatualizados. Debates autorreferenciais e fechados. Por outro lado, exposições bem preparadas, concertos bem executados, diálogos e comparações, representações interessantes devem encontrar espaço em nosso caminho de fé. Não podemos relegar a razão a um segundo plano, contentando-nos com algumas emoções superficiais, em vez de imersões intensas e construtivas na estética e no raciocínio, que também se tornam experiências.
É um campo imenso, merece ser cultivado: o passado da Igreja tem testemunhos admiráveis de cultura nos níveis mais altos, dos quais nos desacostumamos com demasiada facilidade. Assumir riscos, até mesmo colocando dinheiro nisso, investindo em formação e em caminhos graduais. Dar espaço também aos leigos quando escrevem livros belos e evitar a apologética rançosa. Não olhar com desconfiança para aqueles que estudam e questionam, para os que se aprofundam, para os que praticam a arte, mas valorizar talentos, carismas e dons. Utilizar linguagens compreensíveis.
Essa crise da cultura ordinária no âmbito eclesial, ao meu ver, é outra urgência em nosso caminho cotidiano como cristãos no século XXI.
O vínculo entre cristianismo e cultura é importante e relevante tanto para nossas comunidades quanto para nossa história. A atividade de repensar a relação entre cristianismo e cultura sempre gerou uma série de opiniões voltadas para seguir "novos caminhos", cultivar uma "fé pensada", despertar a "paixão", voltar às "raízes", tornar-se um "sinal de contradição e alternativa" e acolher os novos "desafios culturais".
Certamente, em nosso tempo, somos convidados, como crentes, a refletir sobre como e em que medida as exigências da fé podem contribuir para a cultura. Partindo dessa premissa, é evidente que o interesse dos cristãos pela cultura não se dirige a possuir ou controlar nada, mas a fermentar tudo o que há de autenticamente humano, livre, justo e bom na sociedade. Consequentemente, a participação dos cristãos na cultura atual se orienta – mais do que para apontar evidências e posições públicas – a relançar caminhos, fomentar itinerários, animar percursos, redescobrir beleza e profundidade, caminhar e parar juntos.
Cada vez mais me parece que o verdadeiro drama hoje não é a diminuição da frequência dos fiéis às missas dominicais, mas o fato de que, neste ponto, aqueles que vão à missa possam pensar como os que não vão e, ainda, possam estar completamente alheios à grande tradição cultural do cristianismo. Desde suas origens, o cristianismo procurou, além de rezar, mudar a maneira de pensar, os modelos de vida – isto é, a cultura – do mundo pagão, para torná-los não mais cristãos, mas mais humanos. Não é essa uma tarefa que se coloca novamente hoje, talvez com maior urgência, neste mundo pós-cristão? Somente dessa profunda renovação cultural pode surgir uma revolução na forma dominante de conceber a pessoa e o bem comum. Mas isso pressupõe ver que o cristianismo deve continuar buscando estender a sua tenda à cultura e ao pensamento.
Se o cristianismo fosse, na época, uma revolução cultural. Continuará assim hoje e amanhã? E não penso especificamente numa “cultura cristã”, mas, melhor ainda, na minha opinião, numa “cultura de inspiração cristã” que deixe espaço à criatividade e à liberdade. Muitas vezes me pergunto: que fé para que cultura? No fundo da questão cultural permanece o nó decisivo da fé, que funciona como sutura entre os vários fragmentos: se falta uma experiência verdadeira, profunda e real de fé com Deus, embora habitada por luzes e sombras, e alimentada pela Palavra e devido a uma herança milenar de pensamento, em diálogo fecundo com outras tradições culturais e religiosas, etc., como pode haver uma cultura de inspiração cristã? Se esta última está em crise, é também porque hoje está em crise a forma que herdamos de compreender e viver a fé cristã. Que cultura, isto é, que cultivo da fé cristã, estamos realmente propondo na Igreja no auge do atual século XXI?
Gostei, como esclarecedora, da reflexão que o Papa Francisco propôs no dia 13 de fevereiro de 2023 à delegação universitária Sulkhan-Saba Orbeliani (Tbilisi, Geórgia). Disponível aqui.
A Universidade representa um belo exemplo de pesquisa cultural apaixonada e de cuidado desse bem inestimável que é o crescimento educativo... A educação faz precisamente isto: ajuda as jovens gerações a crescer, descobrindo e cultivando as raízes mais fecundas, para que deem frutos... O termo educação evoca a passagem das trevas da ignorância para a clareza do conhecimento. Educação é voltar à luz, é sinônimo de iluminação. Esta iluminação benéfica do conhecimento é necessária, enquanto a escuridão do ódio, que muitas vezes vem do esquecimento e da indiferença, se aprofunda no mundo. Sim, muitas vezes é o esquecimento e a indiferença que fazem tudo parecer obscuro e indistinto, enquanto a cultura e a educação restauram a memória do passado e iluminam o presente.
E a luz não existe para ser vista, mas para ajudar a ver, para ajudar a ver ao redor e além, mais longe. Isto é precisamente cultura: luz que abre horizontes e expande fronteiras.
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A Igreja e a cultura moderna. Jesus foi para o outro lado. Artigo de Joseba Kamiruaga Mieza CMF - Instituto Humanitas Unisinos - IHU