03 Setembro 2024
"E não basta dar o pão, é preciso dar a palavra que é a única que pode construir a fraternidade. O pobre sou eu, na realidade, e pensando nisso juntos, entender sua fome também significa entender e enfrentar a minha. Ser sem morada fixa nunca deve significar ser desconhecido, sem rosto, sem história, sem palavras", escreve Matteo Zuppi, presidente da Conferência Episcopal Italiana e cardeal arcebispo de Bolonha, em artigo publicado por Domani, 30-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Prefácio do Cardeal Matteo Maria Zuppi ao ensaio de Andrea Segrè e Ilaria Pertot La spesa nel carrello degli altri: l’Italia e l’impoverimento alimentare [O gasto no carrinho dos outros. A Itália e o empobrecimento alimentar], lançado em 30-08-2024.
O homem nunca é apenas um consumidor, um prisioneiro do que tem ou induzido pela atraente lei do “sempre mais”. Um ensaio vai além das estatísticas dramáticas e analisa o problema em profundidade. Que não diz respeito apenas ao alimento.
É realmente verdade: nem só de pão vive o homem. Pensamos em transformar pedras em pão, tomados pela onipotência do consumismo, mas não saciamos a verdadeira fome. Tampouco compartilhamos a abundância, porque a voracidade torna insaciáveis e egoístas, vorazes a ponto de suportar desigualdades escandalosas e terríveis.
O homem nunca é apenas um consumidor, prisioneiro do que tem à sua frente ou induzido pela lei atraente do “sempre mais” como condição para estar bem. Não só de pão, mas daquela palavra de amor de Deus que nos ensina a alimentar também o nosso corpo, porque na casa do amor o pão existe sempre em abundância, enquanto na casa do viver para si mesmos, prisioneiros das paixões e da compulsividade, acabamos sempre experimentando a carestia, porque, justamente, o homem não vive só de pão.
A espiritualidade cristã propõe uma maneira alternativa de entender a qualidade de vida e incentiva um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de se alegrar profundamente, sem ser obcecado pelo consumo. Trata-se da convicção de que “menos é mais”.
De fato, o constante acúmulo de possibilidades de consumo distrai o coração e impede apreciar cada coisa e cada momento.
“A sobriedade, vivida livre e conscientemente, é libertadora. Não se trata de menos vida, nem vida de baixa intensidade; é precisamente o contrário. Com efeito, as pessoas que saboreiam mais e vivem melhor cada momento são aquelas que deixam de debicar aqui e ali, sempre à procura do que não têm, e experimentam o que significa dar apreço a cada pessoa e a cada coisa, aprendem a familiarizar com as coisas mais simples e sabem alegrar-se com elas. Desse modo conseguem reduzir o número das necessidades insatisfeitas e diminuem o cansaço e a ansiedade. É possível necessitar de pouco e viver muito, sobretudo quando se é capaz de dar espaço a outros prazeres, encontrando satisfação nos encontros fraternos, no serviço, na frutificação dos próprios carismas, na música e na arte, no contato com a natureza, na oração. A felicidade exige saber limitar algumas necessidades que nos entorpecem, permanecendo assim disponíveis para as múltiplas possibilidades que a vida oferece” (Carta encíclica Laudato si' nº 223).
O convite é claro e decisivo:
“A sobriedade e a humildade não desfrutaram de positiva consideração no século passado. Mas, quando se debilita de forma generalizada o exercício de alguma virtude na vida pessoal e social, isso acaba por provocar variados desequilíbrios, mesmo ambientais. Por isso, não basta falar apenas da integridade dos ecossistemas; é preciso ter a coragem de falar da integridade da vida humana, da necessidade de incentivar e conjugar todos os grandes valores. O desaparecimento da humildade, num ser humano excessivamente entusiasmado com a possibilidade de dominar tudo sem limite algum, só pode acabar por prejudicar a sociedade e o meio ambiente. Não é fácil desenvolver esta humildade sadia e uma sobriedade feliz, se nos tornamos autônomos, se excluímos Deus da nossa vida fazendo o nosso eu ocupar o seu lugar, se pensamos ser a nossa subjetividade que determina o que é bem e o que é mal” (Carta encíclica Laudato si' nº 224).
Gostaria de expressar um grande agradecimento a Andrea Segrè por este livro, que nos ajuda a entender a questão do que os pobres comem e, portanto, a buscar a resposta, a tornar nossa a fome deles. E isso nos ajuda a entender a importância do alimento, a viver melhor, porque no compartilhamento todos ficamos saciados, não com fome! Os pobres comem o que encontram, o que sobra, muitas vezes o que é possível.
O que isso significa? Como os pobres comem e como deveriam comer para que a alimentação não se torne mais um motivo de pobreza? Acredito que se pode entender as muitas reflexões propostas e a atenção dada às histórias, começando pela dedicatória, que me emocionou.
Dom Giovanni Nicolini, da Pequena Família da Visitação, dirigiu a Caritas Diocesana de Bolonha, combinando sabedoria espiritual e humana com uma escolha preferencial pelos pobres. Ele os contemplava com bons olhos, nunca de julgamento, aliás, atento em julgar a tentação pela pressa, pela presunção, pela indiferença em relação a eles.
Sim, ele foi um primeiro que se fez último, o primeiro entre os últimos que ensinou a amar, a conhecer, não de modo distanciado e sociológico, mas com a inteligência do coração e com paixão evangélica e humana. Certamente não viveu uma das tentações diante da pobreza, ou melhor, dos pobres (a pobreza não é uma categoria abstrata, é a vida marcada pelo sofrimento, pela falta de dignidade, pelo desespero).
Os autores não se limitaram às estatísticas, que são de fato impressionantes. As desigualdades aumentaram e a paixão para superá-las diminuiu. E não pensou - a segunda tentação - em se contentar pensando “faço o que posso”, “essa é a situação e não é possível encontrar resposta”.
O episódio evangélico da multiplicação dos pães confirma isso. Os discípulos são muito rápidos em fazer as contas, até mesmo repreendem Jesus por pedir algo impossível, colocando diante dele as estatísticas impiedosas de quanto dinheiro seria necessário e a evidência de que não haveria nem mesmo um pouco para todos, anulando assim o pedido “impossível” do mestre: “dai-lhes vós de comer”.
Eles seguravam os cinco pães e os dois peixes. Não é preciso mais, é preciso compartilhar. A sabedoria judaica que Martin Buber nos transmitiu lembra, além disso, que “em um tempo de carestia, o rabino Mendel viu que os muitos necessitados que eram hóspedes em sua casa recebiam pães menores do que o normal”. Ele ordenou que fossem feitos maiores do que antes, “porque os pães devem se ajustar à fome e não ao preço”.
Não basta apenas fazer o possível, a fome deve ser eliminada, as causas da fome devem ser eliminadas. Essa é a inteligência corajosa e humanamente livre de São Francisco com o lobo, que causava tanto medo em todos a ponto de “saírem armados da cidade, como se fossem combater”, a quem ele se dirigiu chamando-o de “irmão”, apesar do fato de que “todas as pessoas gritam e murmuram sobre você, e toda esta terra é sua inimiga”.
São Francisco lhe propõe a paz, compreendendo e resolvendo o motivo de sua violência. “Já que lhe agrada fazer e manter esta paz, prometo-lhe que farei com que os homens desta terra lhe darão acolhimento e comida, enquanto você viver, para que você não sofra mais fome; pois sei bem que por fome você fez todo o mal”.
Ele atestou a boa-fé do lobo e persuadiu o povo de Gubbio a “alimentá-lo” e a fazê-lo “por cortesia”, tanto que “depois de dois anos, o irmão lobo morreu de velhice, o que deixou os cidadãos muito tristes”. Podemos não apenas distribuir, compartilhando o que temos, mas também eliminar as causas da fome. Os pobres, como nos lembra o Papa Francisco, “são pessoas, têm rostos, histórias, corações e almas... e é importante entrar em relação com cada um deles”.
Nunca é um problema técnico é preciso compreender as situações para encontrar a resposta adequada.
É precisamente ao trabalho de observação e de escuta, que a Caritas vem realizando pontualmente há anos, dedicando atenção à pobreza e à exclusão social, que se inspira o ensaio de Andrea Segrè e Ilaria Pertot.
E como é importante o ponto de partida: a vida concreta de pessoas concretas, aquelas histórias a serem acolhidas, compreendidas, em relação às quais sentir compaixão, não comiseração, mas fazer nossos os seus sofrimentos, aspirações, desejos. Muitas vezes, os pobres não têm nome e não têm o direito de serem conhecidos em suas histórias pessoais. Eles também assustam, porque, na realidade, todos nós podemos ser pobres e descobrir com quanta facilidade isso acontece.
Essa observação, por um lado, circunscreve o campo de observação à pobreza alimentar e, por outro, nos ajuda a entender, apresentando treze “pequenas” histórias, deixando a fome falar, ouvindo as vozes dos próprios protagonistas que nos contam os motivos pelos quais alguém pode se tornar pobre em termos de alimentação mesmo sendo rico. O quadro que emerge é chocante e vai muito além das estatísticas oficiais que enumeram a pobreza alimentar na Itália: o público é, na realidade, muito mais amplo. Os autores mostram como a nossa sociedade está vivendo um dramático e crescente “empobrecimento alimentar” que inclui, cruza, soma e multiplica outras formas de pobreza. Não apenas a pobreza econômica, mas também a pobreza educacional, social, cultural, relacional e alimentar.
Elas estão interligadas, muitas vezes difíceis de distinguir, mas também podem ser resolvidas de forma virtuosa, começando por uma delas. Assim, apesar de ocupar uma parte importante da narrativa coletiva, o alimento tem cada vez menos valor. Tanto é assim que grande parte dele é desperdiçado, com aquela deformação típica do bem-estar e a fácil tolice consequente de que estaria disponível em quantidades ilimitadas.
Em vez disso, os recursos da Criação são um dom limitado, enquanto “descartar alimentos significa descartar pessoas”, como disse o Papa Francisco.
Além disso, este ensaio alinha-se com a Laudato si', da ecologia integral e do cuidado com a Casa Comum.
Surpreendentemente, mas não muito, no capítulo final, precisamente o “maná” nos orienta a encontrar soluções concretas, começando pela educação alimentar, para consumir e viver de forma mais consciente e sustentável.
Tenho certeza de que este ensaio fará refletir aqueles que dirigem instituições e devem fazer as escolhas mais adequadas, mas também todos nós, que somos chamados a novos estilos de vida, começando com o “menos é mais”, que nos liberta da tentação bulímica de acreditar que estamos bem ao consumir tanto e nos tornarmos donos do alimento e não o contrário. E isso nos ajuda a entender que é somente pensando-nos juntos que poderemos realmente pensar em nós mesmos.
O Cardeal Lercaro frequentemente propunha um verso do Didaché, um texto composto entre o final do século I e o início do século II, perdido e redescoberto no final do século XIX: “Se compartilhamos o pão do céu, como não compartilharemos o pão da terra?”
E não basta dar o pão, é preciso dar a palavra que é a única que pode construir a fraternidade. O pobre sou eu, na realidade, e pensando nisso juntos, entender sua fome também significa entender e enfrentar a minha. Ser sem morada fixa nunca deve significar ser desconhecido, sem rosto, sem história, sem palavras.
As pobrezas econômica, urbana, de gênero, social, educacional, alimentar, de trabalho, pensões baixas, da solidão, da baixa escolaridade - estão ligadas umas às outras, muitas vezes se unem e se geram mutuamente. Mas não são uma condenação. Os cinco pães e dois peixes (uma dimensão possível, portanto, e que são muitos mais, tanto que desperdiçamos de modo irresponsável e humilhante) oferecem, na perspectiva da partilha, tantas indicações que os autores nos descrevem com inteligência e tanta humanidade concreta.
Não é um livro de sonhos, mas de caminhos muito concretos para sonhar todos bem e para fazer com que todos estejam bem.
É preciso sair da lógica da emergência, entender as causas e, como São Francisco, ajudar a resolvê-las. A renda de trabalho, das políticas globais às políticas locais (alimentares), o direito ao alimento, a cidadania e a justiça alimentar, o alimento como bem comum a democracia e a poesia. David Maria Turoldo em seu poema, "O sabor do pão", escreve: “O último pão é para quem tem fome”. Meu pão será meu se eu o partir com você, porque o problema nunca é apenas material, mas ao mesmo tempo espiritual e religioso, e vice-versa”.
Pois nem só de pão vive o homem. Somente assim não teremos fome.
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Não só de pão vive o homem: como combater a pobreza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU