A pobreza é um fator relevante no círculo vicioso da escassez e da tomada de más decisões. Entrevista especial com Luis Henrique Paiva

"Muitos pensam que são pobres porque tomam más decisões, mas não percebem que tomam más decisões porque são pobres", afirma o sociólogo

Foto: Fotos Públicas/Raphael Alves

Por: João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin | 05 Julho 2021

 

"Situações de escassez pioram nossa capacidade de tomar boas decisões. São situações nas quais temos mais problemas do que recursos para resolvê-los", diz Luis Henrique Paiva, ao comentar o estudo publicado pelo Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo sobre o tema. Quando se trata de escassez gerada pela pobreza, explica, a situação ganha contornos mais difíceis porque "a pobreza não é uma escolha" da pessoa que se encontra nessa condição. "Você pode parar no meio da tarde e tomar um lanche na padaria, o dinheiro não fará falta para você no final do mês. Uma pessoa pobre, ao contrário, tem que pensar em cada pequena decisão econômica como um dilema: tudo o que decidir poderá ter um grande custo", observa.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, o sociólogo argumenta que a distribuição de renda às famílias que se encontram na pobreza contribuiria para romper com este "círculo vicioso" em que más decisões são tomadas em função da condição de pobreza e, ao mesmo tempo, a pobreza é um fator que contribui para a tomada de más decisões. "Um pai ou uma mãe que não sabe se o dinheiro que tem vai chegar ao final do mês, e passa todos os momentos do dia pensando em como pode tentar resolver, acaba se irritando com o barulho das crianças, perdendo a paciência mais facilmente. Isso faz com que seja fundamental dar a essas famílias garantias mínimas de renda. Isso terá impacto em indicadores educacionais, no longo prazo, e trará, já no curto, um aumento no bem-estar psicológico dos mais pobres. (...) Romper esse ciclo envolve redesenhar as políticas sociais, de maneira que elas possam acomodar alguns erros dos mais pobres e, ainda assim, beneficiá-los", pontua.

 

Luis Henrique Paiva (Foto: Anesp)

Luis Henrique Paiva é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, mestre em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e em Política Social pela Universidade de Southampton, no Reino Unido, e doutor Sociologia e Política pela UFMG. Atualmente é diretor do Cadastro Único para Programas Sociais, do Ministério do Desenvolvimento Social e professor do curso de mestrado em Administração Pública do Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - O que significa ser pobre hoje, nesse contexto de pandemia, perda de rendimentos e diante de um mar de incertezas?

Luis Henrique Paiva - A pandemia está nos mostrando que nossa preocupação deve ser maior do que com o núcleo estrutural da pobreza, composto por famílias e pessoas que são permanentemente pobres, e alcançar pessoas que são muito vulneráveis à pobreza. Pessoas que, na ocorrência de choques (econômicos, políticos, ambientais ou epidemiológicos), podem repentinamente cair na pobreza e ter grandes dificuldades para voltar a superá-la.

 

IHU On-Line - Pobreza e estresse. Como esses dois elementos incidem sobre a vida dos brasileiros no atual cenário e quais os efeitos sobre a tomada de decisão?

Luis Henrique Paiva - Situações de escassez pioram nossa capacidade de tomar boas decisões. São situações nas quais temos mais problemas do que recursos para resolvê-los. Não são situações que digam respeito apenas à pobreza. Pessoas enfrentam muitos tipos diferentes de escassez: se você resolve ter um segundo trabalho, vai sentir escassez de tempo, por exemplo. Se você resolve fazer um regime, sentirá escassez de calorias. A diferença para a pobreza é que a pobreza não é uma escolha. Eu tenho dois trabalhos e sinto escassez de tempo, o que prejudica a qualidade das minhas decisões, mas essa foi uma decisão minha. Os pobres enfrentam uma difícil situação de escassez que não escolheram sentir.

 

 

A escassez faz com que tenhamos que utilizar nossos recursos mentais para tomar todas as decisões. Você pode parar no meio da tarde e tomar um lanche na padaria, o dinheiro não fará falta para você no final do mês. Uma pessoa pobre, ao contrário, tem que pensar em cada pequena decisão econômica como um dilema: tudo o que decidir poderá ter um grande custo.

O que a literatura tem mostrado, infelizmente, é que esses recursos mentais se exaurem. A consequência é que perdemos a capacidade de tomar boas decisões quando questões realmente importantes surgem. Devo mandar meus filhos para a escola ou permitir que eles façam pequenos trabalhos que possibilitem que a família consiga comprar alimentos? É lógico que, no longo prazo, a melhor decisão para a família é mandar seus filhos para a escola. Mas como tomar essa decisão em um contexto diário de profunda escassez? A escassez compromete a nossa capacidade de tomar boas decisões. E más decisões alimentam nossa escassez. É um círculo vicioso.

 

 

IHU On-Line - Analisando dados de sua pesquisa sobre o tema, o senhor disse que “viver na pobreza exaure a sua capacidade mental”. Poderia nos trazer exemplos concretos que o senhor detectou na pesquisa? Como essa exaustão se manifesta na vida dos mais pobres?

Luis Henrique Paiva - Nosso trabalho é um policy research brief, uma revisão da literatura na área, e não chegou a levantar dados primários. Mas há exemplos na literatura que podem ser mencionados. Alguém que enfrenta escassez de tempo, por exemplo, se apressa em tomar uma decisão porque não pode perder tempo com ela. A qualidade da decisão é ruim e o problema volta em duas semanas, ainda mais complicado. Isso alimenta a escassez de tempo original e mantém a pessoa permanentemente na própria situação de escassez. O mesmo ocorre com as pessoas pobres. Elas muitas vezes recorrem a um agiota para resolver uma situação extrema. Como o agiota vai cobrar juros extorsivos, a resolução de um problema imediato tem como custo a manutenção da pobreza. A escassez, seja ela de tempo ou dinheiro, nos leva a tomar decisões que nos mantêm em situação de escassez.

 

IHU On-Line - Como esse estado de exaustão decorrente da pobreza impacta os mais jovens?

Luis Henrique Paiva - Crianças mais pobres e jovens que vivem situações de escassez têm pior desempenho escolar e isso compromete a saída da pobreza. Elas também tendem a viver em contextos familiares mais tensos, pelo fato de que a escassez reduz nossa capacidade de autocontrole. Um pai ou uma mãe que não sabe se o dinheiro que tem vai chegar ao final do mês, e passa todos os momentos do dia pensando em como pode tentar resolver, acaba se irritando com o barulho das crianças, perdendo a paciência mais facilmente. Isso faz com que seja fundamental dar a essas famílias garantias mínimas de renda. Isso terá impacto em indicadores educacionais, no longo prazo, e trará, já no curto, um aumento no bem-estar psicológico dos mais pobres.

 

 

IHU On-Line - Como o senhor analisa os programas sociais nesse contexto de pobreza e exaustão mental?

Luis Henrique Paiva - O importante é que tenhamos alguma “folga” para lidar com imprevistos. Se o seu carro quebra, você precisa levá-lo ao mecânico. Se você tem recursos, isso não te afetará. Se não tiver, provavelmente vai consumir toda sua capacidade mental. Você terá que fazer contas, pensar se há algo que possa ser cortado das suas despesas. A chance de cometer um erro aumenta.

A “folga” pode levar pessoas muito ocupadas a deixarem sua agenda aberta e sem compromissos durante parte do dia ou da semana. Isso permite que ela acomode as demandas, quando surgir algo que não foi previsto. Se você não é pobre, é bom que tenha uma poupança para emergências, de modo que também possa lidar com imprevistos. As pessoas muito pobres, entretanto, precisam de políticas sociais que levem isso em conta. As transferências de renda colaboram para gerar uma “folga” mínima: ter a certeza de que uma soma de recursos virá todos os meses reduz a carga imposta pela pobreza ao processamento mental. Na prática, essas transferências têm potencial para produzir impactos educacionais, no longo prazo, e podem trazer, já no curto, um aumento no bem-estar psicológico dos mais pobres.

 

 

IHU On-Line - Quais os desafios para a concepção de programas sociais que atendam quem tem fome e outras necessidades básicas, mas que também deem conta da saúde mental das pessoas empobrecidas?

Luis Henrique Paiva - Vimos que pessoas mais pobres tendem a ter sua capacidade de tomar boas decisões comprometida pela própria situação de escassez. Políticas que criam uma “folga” para essas pessoas podem melhorar sua capacidade de tomar boas decisões. Transferências de renda minimamente generosas têm essa capacidade.

Vemos também que as pessoas que são mais pobres aderem menos a tratamentos de saúde de longo prazo, desistem mais de programas de qualificação profissional. Esses são exemplos de como as decisões tomadas em situação de escassez alimentam a própria escassez. Muitos pensam que são pobres porque tomam más decisões, mas não percebem que tomam más decisões porque são pobres. Romper esse ciclo envolve redesenhar as políticas sociais, de maneira que elas possam acomodar alguns erros dos mais pobres e, ainda assim, beneficiá-los.

 

 

IHU On-Line - Os efeitos psicológicos do empobrecimento tendem a ser maiores no campo ou nas cidades? Por quê?

Luis Henrique Paiva - A literatura que revisamos não sugere nenhuma diferença substantiva nesse sentido. Agricultores pobres tendem a ter resultados em testes de QI mais baixos nos períodos de maior carência, no momento que precede a colheita, da mesma forma que pobres urbanos comprometem sua capacidade de tomar decisões em momentos de grande escassez.

 

IHU On-Line - O Brasil é um país extremamente desigual. Como essa desigualdade afeta a autoestima de quem está na parte de baixo da pirâmide social e como isso acaba amarrando-os nessa condição econômica e social que vivem?

Luis Henrique Paiva - Há pesquisas que sugerem impactos específicos da desigualdade sobre o bem-estar das pessoas e sobre um grande número de problemas sociais. Segundo esses estudos, sociedades mais igualitárias teriam maiores níveis de coesão, maior apreço pela vida e menor suporte a medidas como a pena de morte, as crianças seriam mais felizes, doenças mentais seriam menos frequentes. Mas há um enorme percurso até termos um pouco mais de certeza sobre isso.

 

 

IHU On-Line - Qual o papel da sociedade, como um todo, no enfrentamento do empobrecimento e adoecimento do Brasil? E o Estado, quais os erros e acertos que tem percebido nos últimos governos no enfrentamento desses problemas?

Luis Henrique Paiva - Iniciativas que partam da sociedade são importantes. Temos visto muitas ações conduzidas por entidades sem fins lucrativos, empresas e famílias, que beneficiam a vida dos mais pobres. Ao mesmo tempo, precisamos reconhecer que uma alteração mais profunda do quadro de pobreza e desigualdade depende da atuação do Estado. O regime tributário tem que ser mais progressivo, isto é, alcançar desproporcionalmente os mais ricos, e financiar transferências e serviços também progressivos, isto é, que alcancem desproporcionalmente os mais pobres. O Estado brasileiro muitas vezes se comporta como um Robin Hood às avessas, o que explica termos uma sociedade tão desigual.

 

 

IHU On-Line - Que perspectivas o senhor vê em termos de assistência social, considerando os desmontes que temos visto nesse setor nos últimos anos?

Luis Henrique Paiva - O consenso em torno do Programa Bolsa Família e da importância do Auxílio Emergencial parece ter aumentado durante o período da pandemia. Espero que a experiência dolorosa pela qual tantas famílias brasileiras estão passando nos traga como lição entender melhor a importância de uma rede robusta de proteção social.

 

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