29 Agosto 2024
"A água da chuva poderia perfeitamente ser um símbolo da Igreja em desordem, mas justamente ontem - quando passei pelo crucifixo, junto com uma pequena delegação da Palestina e de Israel a caminho de uma audiência particular com o Papa - pareceu-me que a água da chuva estava, na verdade, buscando o colete salva-vidas num gesto de solidariedade".
A reportagem é de Colum McCann, escritor e membro da delegação de palestinos e israelenses que esteve em audiência com o Papa Francisco, publicado por La Stampa, 27-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há uma obra de arte extraordinária na entrada dos apartamentos papais no Cortile del Belvedere, no Vaticano. Com dois metros de altura, um colete salva-vidas laranja coberto com resina transparente forma a parte central de um crucifixo. Evoca imediatamente a situação dos refugiados em todo o mundo. Quando você olha, o crucifixo lhe deixa congelado. Interroga com seus braços estendidos. Leva você para o mar aberto da sua fé. Mas, se você olhar mais de perto, perceberá que no alto, na parede acima do crucifixo, onde o gesso inchou e penetrou a água da chuva, há uma pequena infiltração. O teto abobadado acima tem uma rachadura fina.
A água da chuva poderia perfeitamente ser um símbolo da Igreja em desordem, mas justamente ontem - quando passei pelo crucifixo, junto com uma pequena delegação da Palestina e de Israel a caminho de uma audiência particular com o Papa - pareceu-me que a água da chuva estava, na verdade, buscando o colete salva-vidas num gesto de solidariedade. A parede chora. A água procura o colete. O colete salva-vidas quer comunicar sua existência ao mundo. Ele mantém unida a cruz e, diante de todo desespero, ainda há esperança.
A obra de arte, abençoada pelo Papa Francisco em 2019, é justamente um emblema do mandato de Sua Santidade na Igreja e da maneira como ele gostaria que a Igreja se afirmasse como um bote salva-vidas de redenção e salvação diante das duras realidades do mundo.
A nossa delegação era composta por apenas cinco pessoas: Nadine Quomsieh, Bassam Aramin, Rami Elhanan, Lorenzo Fazzini e eu. Nadine é diretora da Parents Circle, uma associação de pais enlutados de Israel e Palestina. Rami e Bassam, sobre quem escrevi em meu romance Apeirogon, perderam suas filhas e são ex-diretores dessa mesma associação. Lorenzo é gerente editorial da Libreria Editrice Vaticana.
Entramos no saguão de entrada, ao lado do crucifixo salva-vidas. Subimos no elevador. O Papa escolheu morar nos apartamentos papais porque, é evidente, tem um admirável senso comunitário.
Ele gosta de gente. Ele gosta de pessoas. A humildade emana dele. Ele é um de nós, um dos muitos. Apesar das evidências do resto do mundo, para ele a esperança é uma obrigação imprescindível.
Em uma sala com vista para a Praça São Pedro, o Papa recebeu Rami e Bassam cordialmente e, lembrando de tê-los conhecido na primavera, colocou a mão no coração. Ele acenou com a cabeça na direção de Nadine. Ele tinha plena consciência de que estava na presença de um grupo muito peculiar de pessoas, envolvidas em uma guerra assustadora: um palestino muçulmano, um israelense judeu e uma palestina cristã. Ainda mais singular é o fato de essas pessoas gostarem umas das outras e estarem unidas pela causa da paz. O Papa disse que estava “profundamente comovido” e declarou que os três são uma parte importante do movimento pela paz não apenas no Oriente Médio, mas em todo o mundo.
“Vocês são muito corajosos”, disse a eles. “Há três tipos de pessoas. Há aquelas que querem combater. Há aquelas que querem ignorar o sofrimento e a dor. E depois há os pacificadores, como vocês, dispostos a se abraçarem e cooperar.”
O Papa também mencionou sua visita à Cisjordânia em 2014, quando encostou a testa no Muro de Belém e orou pelos dois povos. Ele lembrou de ter sido criticado por esse gesto pelo líder israelense Benjamin Netanyahu.
O Papa ficou visivelmente emocionado quando Nadine testemunhou sobre o tratamento reservado à população cristã na Cisjordânia. “Muitos de nós, palestinos cristãos, fomos expulsos”, disse a ele. “Somos cada vez menos, mesmo na Terra Santa”. Juntamente com seu colega Bassam, Nadine contou a história de uma incursão de colonos israelenses a um estabelecimento em Al-Makhrour, em um vale exuberante perto de Belém, onde a família Kisiya tem um restaurante. O Papa expressou sua preocupação e disse que fará tudo o que puder. Ele entende sua dor, disse, e reza pelo povo de Gaza e da Cisjordânia. Ele reiterou seu empenho, que inclui ligações telefônicas diárias para a paróquia católica em Gaza.
O grupo analisou as implicações das negociações de paz na Palestina e em Israel, o poder de contar histórias pessoais e a importância de enfrentar o espectro da ocupação em curso.
Em um momento de contido humor, Bassam disse que gostaria que o Papa pudesse se tornar o presidente dos Estados Unidos. O Papa sorriu e respondeu que não tinha certeza de que isso seria uma bênção.
Pouco antes de o grupo se despedir, o Papa Francisco disse que queria que o trio continuasse unido, levando adiante sua obra de paz e usando seu luto como um poder para o bem. Ele os acompanhou até a porta, onde trocaram algumas palavras em voz baixa. Pareciam uma família. E o conceito subjacente era claro: em tudo isso eles estão unidos. Ao sair do prédio, o grupo passou por baixo do crucifixo salva-vidas. Na mancha de água no teto, podiam ver um sinal de afogamento iminente ou a possibilidade de estarem unidos.
Rami, Bassam e Nadine estão firmemente convencidos de que permanecerão unidos: dois palestinos e um israelense caminharam em direção à Praça São Pedro sob o calor escaldante. Eles sabem, no entanto, das dificuldades que se prospectam em seu caminho.
“Estamos derretendo”, disse Bassam. Depois de uma pausa, acrescentou: “Juntos”.
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Visita ao Papa de israelenses e palestinos, o diálogo de paz é possível - Instituto Humanitas Unisinos - IHU