28 Agosto 2024
Ilya Budraitskis foi, como os seus camaradas, perseguido pelo regime de Putin. É membro do Movimento Socialista Russo e opositor da guerra na Ucrânia e de Vladimir Putin. Em entrevista exclusiva, falou ao Esquerda sobre a perseguição política e sobre o modelo de ideologia que o governo russo tem adotado para justificar o imperialismo e a invasão da Ucrânia.
A invasão da Ucrânia desencadeou uma guerra que dois anos depois continua sem fim à vista. Entre a ocupação dos territórios no leste ucraniano e a perseguição dos movimentos políticos no seu próprio país, Putin demonstrou o seu apetite imperialista e autoritário. Como motor dessas ações, explica Ilya Budraitskis, está a ideologia que o regime autocrático na Rússia começou a distribuir entre as escolas e universidades, que justifica o imperialismo russo com uma diferenciação cultural e genética entre povos.
Ilya Budraitskis é militante socialista e membro do Movimento Socialista Russo. Teórico político, historiador e autor de livros, ele viveu muitos anos em Moscou onde desenvolveu a sua atividade militante. Faz parte do conselho editorial do portal russo socialista Posle.media. Contribui com artigos para a New Left Review, Jacobin, Le Monde Diplomatique, Inprecor, Open Democracy, Slavic Review, entre outros.
O Movimento Socialista Russo (MSR) foi perseguido pelo regime de Putin, que agudizou as perseguições a grupos políticos da oposição depois da invasão da Ucrânia e o rotulou de “agente externo”. Hoje, muitos dos membros do MSR vivem fora da Rússia, dissidentes fora do seu país, expulsos pela repressão de um Governo autoritário.
A entrevista é de Daniel Moura Borges, publicada por Esquerda.net, 19-08-2024.
Como é que o Movimento Socialista Russo lidou com a designação de "agente externo" e a perseguição que tem enfrentado do regime de Putin?
A situação na organização era bastante complicada mesmo antes de ser rotulada de "agente estrangeiro", porque muitos dos principais ativistas deixaram o país. E agora essas pessoas estão na Alemanha, na França e em vários lugares. Com este rótulo de "agente externo" não é possível manter qualquer tipo de comunicação política. É por isso que, depois de sermos rotulados, publicamos um comunicado dizendo que dissolvemos a organização.
Já disse anteriormente que vê essa designação de “agente externo” como uma medalha de honra. O que é que isso significa?
Quando esta lei foi aprovada, há cerca de 10 anos, a principal argumentação subjacente foi: "Somos contra a interferência externa na política russa". Toda a gente que recebia alguma ajuda financeira externa era rotulada de "agente externo". Entretanto, ampliaram a lei. Agora, quando fornecem a argumentação por trás da rotulagem, é: "Estas pessoas estão espalhando informações falsas sobre as ações do Exército russo". Porque não é uma atitude patriótica. Então, a explicação por trás desta rotulagem é que eles [o regime de Putin] querem destruir o nosso grupo político porque tem uma agenda clara contra a guerra. Por isso, sim, orgulhamo-nos disso.
É uma tática que os governos de extrema direita estão começando a usar cada vez mais. Orbán também começou a perseguir meios de comunicação que classifica como “agentes externos”.
Sim. E a Rússia é um excelente exemplo de até onde este tipo de legislação pode ir. Porque agora alguém pode ser rotulado como um "agente externo" mesmo sem qualquer ajuda financeira. Eles podem dizer que essa pessoa está espalhando algumas ideias que soam a ideias estrangeiras, que são diferentes de uma verdadeira linha patriótica.
Com esta perseguição, como se organiza o movimento antiguerra na Rússia?
Na Rússia, há uma censura muito pesada e uma pressão policial muito forte sobre qualquer tipo de declaração contra a guerra. Por isso, qualquer expressão pública de uma posição antiguerra pode levar à prisão imediata. Não é possível distribuir folhetos ou organizar piquetes. Isso só pode ser feito de forma indireta. Por exemplo, no ano passado, vimos o crescimento do movimento de familiares dos homens que foram mobilizados para o exército. Foram mobilizados no outono de 2022 e ainda estão lá. Então, eles [os parentes] estão exigindo que os soldados voltem para casa. Portanto, é assim que você pode encontrar maneiras alternativas de expressar o sentimento antiguerra.
Escreveu recentemente sobre como a guerra foi um fator de mudança radical, tanto no regime de Putin quanto na organização de movimentos socialistas. Na sua opinião, qual é o resultado da guerra para o atual regime?
Quando o regime chegou à situação de gerir uma guerra a longo prazo, depois do fracasso da primeira tentativa de mudança de regime [na Ucrânia] com a ajuda dos militares russos, começou-se a falar muito de ideologia. Sobre como nós, enquanto sociedade, precisamos de ter ideologia, precisamos de colocar a ideologia na Constituição, precisamos de reeducar a sociedade para ver a Rússia como uma civilização singular. E a partir desse momento compuseram um programa para isso.
Agora, esse programa está nas escolas e começaram um programa nas universidades também. E o outro lado desse programa de reeducação da sociedade é a censura. Não só dos sentimentos antiguerra, mas também na religião e numa pesada linha clerical reacionária dos valores tradicionais da família. Tudo o que é LGBT ou feminismo é eliminado. Há uma guerra cultural contra a própria população, e sabemos que geralmente as guerras culturais funcionam como uma forma de polarizar o processo eleitoral.
Como é que essa reeducação da sociedade se relaciona com as teorias políticas de Dugin sobre ideologia?
Dugin tornou-se uma figura muito mais influente nos últimos dois anos. Mas acho que a influência dele ainda é um pouco sobrestimada. Sem dúvida que algumas de suas ideias influenciaram a linha atual do Estado. E a sua ideia principal, que é também a ideia de ideologia de Estado na Rússia, é a ideia de diferentes civilizações, diferentes formas de pensar e diferentes formas de comportamento típico a cada civilização. Há uma negação de qualquer universalidade humana. E isso é extremamente perigoso. É algo que se tornou influente na Rússia, mas também se espalhou pela extrema direita europeia.
De que forma isso se traduz na sociedade russa?
Nos cursos ideológicos das universidades, há uma noção muito específica do DNA russo. Que há algo herdado organicamente. Que ser russo está relacionado ao sangue e o corpo. Mas também usam essa ideia de DNA como a ideia de um código cultural. Que há algumas ideias exatas, alguma percepção exata ou visão de mundo que é apenas dos detentores desse DNA. Esse é o tipo de política identitária que agora se tornou uma linha oficial do Estado.
Como considera que a atual linha ideológica do Estado russo se liga à relação que a Federação Russa tem com todos os outros Estados à sua volta?
Este tipo de nacionalismo que a Rússia agora demonstra é nacionalismo imperial. É um nacionalismo sempre contraditório por causa destas duas noções de império e de nação. O conceito de nacionalismo imperial na Rússia é herdado do final do Império Russo. Todos esses argumentos de que a Ucrânia não existe como nação porque faz parte de alguma nação russa maior vieram desse nacionalismo imperial do século XIX. A ideia é a de que este império deve ser russo. Os russos devem dominar porque eles trazem algum tipo de harmonia a esta família de vários povos.
Vê esta guerra como um sinal da intensificação das contradições de um mundo multipolar, onde há mais do que um império disputando a hegemonia internacional?
Sim, claro. Um dos principais objetivos de Putin com a invasão da Ucrânia era mudar o sistema internacional. Mas acho que também havia algum tipo de programa ideológico por trás dessa mudança. E esse programa ideológico veio dessa ideia de várias civilizações. Deste ponto de vista, todo o espaço pós-soviético pertence naturalmente à esfera de influência russa, porque faz parte desta civilização maior. E não há espaço nessa visão de mundo para essas pequenas nações, porque todas elas devem ser divididas entre as grandes potências imperiais. Trata-se de uma espécie de visão de mundo que é imperialista não só nas intenções, mas também na ideologia.
Que análise faz sobre o estado atual da guerra com a Ucrânia, em particular da incursão ucraniana em Kursk?
Acho que taticamente foi muito inteligente. Muito arriscado, mas muito inteligente. Porque põe em causa o modelo de como a Rússia continua esta guerra. A Ucrânia iniciou esta operação para provocar Putin, mas o outro objetivo era provocar instabilidade política na Rússia. Porque para a maioria dos russos, há uma grande diferença entre os territórios ocupados da Ucrânia, que eles [o Estado russo] chamam de novos territórios russos, e os antigos territórios russos. Kursk é um território antigo. Por isso, penso que poderá alterar a atual correlação de forças. E espero que conduza a algumas negociações de paz, não do ponto de vista da capitulação da Ucrânia, com uma posição mais equilibrada.
Por várias vezes, você escreveu sobre a necessidade de um programa revolucionário para a Rússia. O que isso significa neste momento?
O programa de mudança política na Rússia está muito relacionado com mudanças democráticas. Mas penso que nós, à esquerda, não devemos entender a democracia apenas de uma forma liberal. Não apenas na forma de instituições formais. A democracia é a participação direta na vida comum. Nesse sentido, precisamos da democratização do país, precisamos de rever todas as bases sociais e econômicas do atual regime, que ainda se baseia nas privatizações extremamente injustas que aconteceram nos anos 90 e com as políticas neoliberais que foram implementadas por Putin.
Devemos também fazer da Rússia uma verdadeira federação, porque neste momento é uma federação apenas de nome. Na realidade, é um pesado Estado centralizado, sem quaisquer direitos das regiões e, especialmente, das minorias nacionais. E, por último, precisamos abandonar esta narrativa de diferentes civilizações. Porque nós, enquanto humanidade, estamos diante de problemas imediatos, como as mudanças climáticas, a desigualdade global, a fome. E acredito que a Rússia, como país grande, como potência nuclear, tem finalmente de partilhar alguma responsabilidade.
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Rússia. “Há uma guerra cultural contra a própria população”. Entrevista com Ilya Budraitskis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU