15 Agosto 2024
"Já no final de seu mandato, o presidente do BC culpa o governo pelos juros altíssimos e pinta banqueiros de vítimas. Outra política monetária e fiscal é imprescindível na reconstrução do país. Mas Lula precisa de firmeza para romper a captura da entidade" escreve Paulo Kliass, doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, publicado por Outras Palavras, 04-06-2024.
As manifestações públicas do presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, costumam ser um exemplo bastante cristalino do universo absolutamente apartado da realidade em que vive esse povo do financismo em nosso país. O momento mais recente ocorreu em uma audiência na Câmara dos Deputados, realizada no dia 13 de agosto. Ele foi convidado para um encontro conjunto das Comissões de Desenvolvimento Econômico e de Finanças e Tributação daquela Casa legislativa. Em sua preleção ele trouxe exatamente a mesma ladainha a respeito da importância da política monetária para um suposto quadro de estabilidade macroeconômica e expôs com bastante clareza a abordagem dos representantes do sistema financeiro a respeito de nossa realidade.
O fato inegável é que a atuação do órgão regulador e fiscalizador de nosso ambiente bancário e financeiro não tem sofrido muitas mudanças ao longo das últimas décadas. Com exceção de raríssimos momentos, o BC tem se comportado segundo as recomendações dos manuais básicos da ortodoxia econômica e do neoliberalismo. Quer seja em governos comandados pelo PSDB, pelo PT ou mesmo durante o período Temer e Bolsonaro, a autoridade monetária quase nunca escapou do roteiro estabelecido pela alta direção do poder das finanças.
A aprovação da Lei Complementar nº 179 em 2021, durante a desastrosa gestão de Paulo Guedes como superministro da economia, consolidou na legislação um estatuto de quase independência do órgão. Sob o manto da lengalenga de que o BC não pode sofrer pressões políticas e deve contar com liberdade total para sua atuação, os dispositivos legais foram alterados e o presidente Lula iniciou seu terceiro mandato tendo que conviver com 100% dos dirigentes do BC nomeados por Bolsonaro. Uma loucura! A “inovação” estabeleceu que os diretores da instituição devem ter mandato fixo de quatro anos. Assim, essa foi uma das muitas heranças do bolsonarismo que permaneceram a partir de 1º de janeiro de 2023.
(…) “as pessoas vão entender ao longo do tempo que o Banco Central é técnico e trabalha para atingir o mandato que é determinado pelo governo” (…)
Não existe essa falácia de que os países necessitam de bancos centrais de natureza “técnica” e que, por isso, precisam ser independentes do sistema político. Na verdade, quanto maior a autonomia – uma quase independência – da autonomia monetária, maior será sua ligação direta e incestuosa com os interesses do sistema financeiro. Essa é uma relação já bastante estudada entre os organismos responsáveis pela regulação e as empresas dos setores em que atuam. O que se verifica, geralmente, é o fenômeno conhecido por “captura”, uma vez que os dirigentes dos órgãos passam a se comportar de acordo com a lógica dos entes que deveriam ser regulados e fiscalizados.
Não existe nenhuma “neutralidade técnica” na ação do BC. Quando os ideólogos do financismo clamam por “independência” e culpam a dinâmica política por eventuais equívocos de condução da política econômica, na verdade se escondem por trás da cortina de fumaça da entrega da autoridade monetária para os bancos, a conhecida estória de botar a raposa para cuidar do galinheiro. E o mais grave é que retiram da legitimidade do presidente da República – eleito pelo voto da maioria da população – o direito de exercer em sua plenitude o conjunto das esferas da política econômica. Assim, de início, a política monetária e a política cambial já estão capturadas pelos interesses privados.
(…) “o Banco Central tem conseguido conduzir um processo de desinflação com baixo custo em termos de redução da atividade” (…)
Ao contrário do que afirmou seu presidente, o BC tem colaborado para o aprofundamento dos processos recessivos e estagnacionistas. Além disso, a lógica de manter o patamar da Selic sempre mais elevado do que deveria também dificulta a possibilidade de se obter ciclos de crescimento econômico de forma mais consistente e persistente. A taxa referencial de juros em nossas terras sempre esteve vários tons acima do recomendável para assegurar um nível de atividade econômica compatível com as necessidades do país e um nível de emprego também coerente com aos requisitos de um projeto de desenvolvimento social, econômico, sustentável e sustentado no tempo
(…) “A meta de 3% não é muito baixa? Não deveria ser maior? É importante frisar que quem determina a meta é o governo” (…)
No que se refere à inflação, Campos Neto se esquiva de uma das questões mais relevantes no debate. A legislação estabelece que a autoridade monetária deve mirar em dois objetivos: evitar um ritmo de crescimento dos preços acima da meta oficial e a manutenção do nível de emprego de acordo com padrões mínimos e adequados à realidade social. Esta, aliás, é o mandato do próprio Federal Reserve (FED), o banco central norte-americano. Mas aqui no Brasil esse segundo aspecto sempre foi negligenciado e esquecido por todas as diretorias do BC desde sempre. O dirigente tem razão quando afirma que a atual meta de 3% ao ano para a inflação é estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), composto por ele mesmo e pelos ocupantes das pastas da Fazenda e Planejamento.
Ocorre que todas as vezes em que os economistas progressistas lançamos o debate para que o governo pudesse flexibilizar essa meta, o financismo se levanta em pé de guerra contra tal iniciativa. Isto porque aumentar a meta de inflação para 4%, por exemplo, retiraria toda a narrativa de Campos Neto e da tropa adepta do neoliberalismo nos grandes meios de comunicação de que a Selic é elevada por cautela “anti-inflacionária”. Segundo essa retórica igualmente desonesta, o Copom só mantém a Selic nas alturas por culpa do governo, que mantém a meta baixa para o crescimento dos preços e obriga os dirigentes do BC a serem rigorosos com uma taxa referencial muito elevada.
(…) “Ainda é verdade que as taxas de juros no Brasil são absurdamente altas, mas a gente quer mostrar que ao longo do tempo a gente tem conseguido trabalhar com taxas de juros mais baixas” (…)
Além de manter a Selic muito alta, os sistemas bancário e financeiro também mantêm taxas de juros exorbitantes nas suas operações com a clientela. Esse diferencial entre a taxa oferecida nas operações de captação de recursos e aquela taxa que é cobrada nas operações de crédito coloca o Brasil também entre os campeões do mundo. Ao contrário do que costumam afirmar os dirigentes do financismo, não se trata de uma taxa associada a um suposto justo equilíbrio entre as tais da demanda e da oferta. Mentira! Trata-se de um mercado altamente oligopolizado e centralizado, onde as decisões relativas a preços, taxas e tarifas são tomadas por um reduzidíssimo número de bancos e empresas do setor. Mais uma vez, observa-se que as direções do nosso BC sempre se abstiveram de atuar como órgão regulador e fiscalizador do setor.
As taxas de juros sempre foram, como diz o próprio Campos Neto, “absurdamente altas”. E continuam sendo muito estratosféricas. Quando ele se refere à existência de taxas mais baixas atualmente, ele foge outra vez com a verdade. As taxas nominais no balcão baixaram um pouco, mas isso se deve à cosmética e quase imperceptível redução na Selic. Na verdade, os spreads aumentaram no mesmo período, o mesmo tendo ocorrido com as taxas reais de juros (quando se retira a inflação da taxa nominal). Ou seja, o processo de espoliação praticado pelo financismo sobre todos os demais setores e classes sociais permanece vivo e atuante.
Finalmente, o dirigente não tem a menor vergonha em fazer tal afirmação diante dos representantes eleitos pela população. Chega a dar pena dos pobres banqueiros e acionistas de empresas do financismo por tal declaração. Oh, coitadinhos, eles devem realmente sofrer bastante com a triste contingência de que o Copom decide a cada reunião por manter a Selic em níveis tão altos. Mais uma mentira deslavada! O sistema financeiro sempre ganha, mesmo com taxas referenciais de juros mais reduzidas. Mas o ponto é que eles ganham ainda mais com a Selic nas alturas, pois aprofundam o processo de financeirização e obtêm ganhos extraordinários em operações de baixíssimo risco, transitando apenas na esfera financeira, sem precisar recorrer a atividades produtivas no setor real da economia.
A proximidade do final do ano recoloca no horizonte a mudança na Presidência do BC e a possibilidade de que Lula tenha finalmente indicado a maioria dos dirigentes do órgão na metade de seu terceiro mandato. No entanto, mais do que o mero ato formal da nomeação, a história recente tem nos ensinado que o presidente da República precisa orientar os membros a alterarem o seu comportamento, seja à frente do BC, seja na condição de membros do Copom. Caso contrário, estaremos a partir de janeiro de 2025 assistindo àquilo que a sabedoria popular chama de “trocar seis por meia dúzia”. E o Brasil precisa urgentemente de uma mudança efetiva nas políticas monetária e cambial, bem como uma reorientação nas funções reguladora e fiscalizadora do BC.
Nosso país está diante de uma excelente oportunidade para mudar de rumo da mesmice conservadora que nos acompanha há décadas e trilhar o caminho do desenvolvimento social e econômico. Cabe a Lula fazer valer sua condição constitucional para que isso se torne realidade e assegure um futuro mais generoso para a grande maioria da nossa população.
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Campos Neto e o financismo assanhado. Artigo de Paulo Kliass - Instituto Humanitas Unisinos - IHU