10 Agosto 2024
“No ocaso do credo laico que sustentou durante dois séculos e meio sua República, milhões de estadunidense retrocedem para uma religiosidade militante. Para seus seguidores mais fiéis, Donald Trump é o governante ungido por Deus, e para muitos dos seus adversários, ele é o Anticristo, ou quase isso”. A reflexão é de Jorge A. Bañales, em artigo publicado por Brecha, 9-09-2024. A tradução é do Cepat.
No ocaso do credo laico que sustentou durante dois séculos e meio sua República, milhões de estadunidense retrocedem para uma religiosidade militante. Para seus seguidores mais fiéis, Donald Trump é o governante ungido por Deus, e para muitos dos seus adversários, ele é o Anticristo, ou quase isso.
Os pais fundadores da República, cujos antepassados cruzaram o Atlântico para fugir das guerras religiosas na Europa, expressaram claramente a sua intenção de manter a religião separada da política e as igrejas fora do governo. Mas toda sociedade precisa de um imaginário comum, de uma mitologia, de lendas, de heróis e de santos, de símbolos e de aniversários que deem às diferentes classes sociais e aos diferentes segmentos populacionais um credo unificador. Os Estados Unidos não são exceção e, desde a sua revolução independentista, construíram esse credo com a exaltação de algumas figuras – George Washington, Thomas Jefferson, os constituintes, Benjamin Franklin –, uma bandeira, a águia imperial e a noção de uma nação criada para servir de exemplo para a humanidade.
Os Estados Unidos, segundo o mito, sempre estiveram do lado da justiça, só foram à guerra em legítima defesa ou em defesa da democracia e quando flexionaram o seu músculo guerreiro sempre o fizeram em resposta a provocações. O país é um caldeirão de raças que se enriquece com a chegada, o entusiasmo, a criatividade e o trabalho de imigrantes de todo o mundo.
Periodicamente, o mito tem sido abalado pela realidade e, à procura de um abrigo para as suas almas perturbadas, multidões de estadunidenses esquecem, no passado e agora, as advertências dos seus heróis e agarram-se à certeza religiosa. O país da imaginação sente-se atacado, minado pela imigração, ameaçado pela criminalidade e, sobretudo, enfraquecido pela imoralidade. A disputa política transforma-se numa batalha religiosa em que os adversários não são apenas adversários, mas inimigos irreconciliáveis e diabólicos. Conflitos em que um dos lados está convencido de que tem Deus do seu lado rapidamente se tornam cruéis, como os heróis bem avisaram e quiseram evitar.
Quem viaja de carro indo da Virgínia em direção ao sul, a cerca de 15 quilômetros da fronteira com a Carolina do Norte, verá à direita da Rota 168 o Powell's Roadside Market, um mercado ao ar livre que oferece frutas, legumes, frios, pães, bolos, doces, sucos, óleos e vinagres. É uma empresa familiar que oferece o melhor do trabalho dos agricultores da região, e os seus proprietários são bons cristãos que apoiam uma comunidade solidária.
Se o visitante que já apreciou as mercadorias num grande armazém vermelho passar pelos viveiros onde germinam plantas e árvores, verá ali, ao fundo, dois banheiros (vasos sanitários) para o conforto dos clientes. E, acima deles, num mastro, a bandeira de Israel com a sua Estrela de Davi. Para os cristãos da linhagem mais evangélica e inclinados a recitar versículos da Bíblia e as profecias da tradição judaico-cristã, os judeus são execráveis a tal ponto que seus símbolos merecem enfeitar os sanitários. De alguma forma, milagrosa, diria um crente, os mesmos cristãos que veem na restauração do Estado judeu um sinal da iminência do apocalipse podem acomodar as suas opiniões políticas junto com as das gangues neonazistas e do milenar antissemitismo.
Nas eleições de 2020, o republicano Donald Trump obteve 49,93% dos votos na Carolina do Norte, em comparação com 48,59% recebidos pelo democrata Joe Biden. Este ano, a menos de 100 dias das eleições, Trump tem uma vantagem muito pequena sobre a candidata presidencial democrata Kamala Harris, e o ex-presidente e criminoso convicto apelou à oração e ao voto cristãos.
O senador Josh Hawley, republicano do Missouri, começou o seu discurso semanas atrás na Conferência Nacional do Conservadorismo com uma referência a Agostinho de Hipona (o Santo Agostinho dos católicos). Numa época em que o Império Romano estava em colapso, recordou Hawley, o filósofo e teólogo escrevia sobre a cidade de Deus, uma civilização fundada no amor à Bíblia, à família e ao trabalho. Qualidades que, segundo o senador, os puritanos trouxeram para a América, onde formaram uma nação alinhada com a visão de Agostinho. “Tenho certeza de que alguns dirão agora que estou chamando os Estados Unidos de nação cristã. E, sim, o faço", acrescentou. “Alguns dirão que defendo o nacionalismo cristão. E, sim, o faço. Minha pergunta é: existe algum outro tipo que valha a pena ter?”
O rótulo pode ser lido de duas maneiras: nacionalismo cristão ou cristianismo nacionalista. No seu site, Hawley descreve os Estados Unidos como “um país definido pela dignidade do homem comum, assim como a religião cristã nos legou; uma nação unida pelos afetos domésticos articulados na fé cristã: amor a Deus, amor à família, amor ao próximo, ao lar e à pátria”.
O pregador evangélico Joel Tenney, que subscreveu a mentira trumpista de fraude eleitoral em 2020, proclamou diante de centenas de apoiadores de Trump em Coralville, Iowa, que "devemos reeleger o presidente Trump pela terceira vez". E afirmou que as próximas eleições “fazem parte de uma batalha espiritual em que atuam forças demoníacas”.
O representante do estado de New Hampshire, Paul Terry, ministro reformado de uma seita presbiteriana evangélica, falando para mais de 4.000 pessoas em Durham, afirmou que: “a cada dia que passa afundamo-nos mais e mais na distopia tirânica de George Orwell. Todos os dias somos oprimidos por aqueles que nos impuseram a autoridade ilegítima e a ilegalidade inconstitucional”.
Segundo uma análise do Pew Research Center, 60% dos adultos nos Estados Unidos têm uma imagem negativa de Trump, restando 39% com uma opinião mais ou menos favorável ou muito favorável. Mas esta aceitação tem matizes dependendo das filiações religiosas: 67% dos protestantes evangélicos brancos têm uma opinião favorável do ex-presidente, uma simpatia que é partilhada apenas por 51% dos católicos brancos, 47% dos protestantes brancos não evangélicos, 45% dos protestantes hispânicos, 35% dos muçulmanos, 32% dos católicos hispânicos, 21% dos judeus e 17% dos protestantes negros. Um dado que não surpreende é que apenas 17% dos agnósticos e 12% dos ateus veem qualidades positivas em Trump, e outro dado surpreendente é que apenas 32% daqueles que não declaram uma filiação religiosa específica simpatizam com o ex-presidente.
A proporção de estadunidenses que se declaram ateus, agnósticos ou sem filiação religiosa aumentou de 16% dos adultos em 2007 para 28%, ultrapassando agora a dos católicos (28%) e dos protestantes evangélicos (24%).
Para os católicos, a avaliação religiosa e a opção política de Trump são complicadas. Com cerca de 62 milhões de membros, a Igreja Católica é a maior denominação entre todos os cristãos dos Estados Unidos e tem a vantagem histórica da autoridade unificada se comparado com a miríade de denominações protestantes e as chamadas igrejas cristãs não denominacionais. Por um lado, Trump e o trumpismo se apresentam aos católicos como os defensores dos chamados valores tradicionais (Deus, família, lar, trabalho) e dos papéis históricos de homem e mulher na sociedade, bem como resolutos adversários da laxidão moral e do aborto. Por outro lado, a xenofobia do trumpismo e a retórica insultuosa e ameaçadora de Trump em relação aos imigrantes somam-se às políticas antissindicais e às promessas de deportação em massa, que pesam na decisão dos quase 32 milhões de hispânicos habilitados para votar.
Os imigrantes são o maior contingente no crescimento da Igreja Católica estadunidense e, de acordo com o Center for Immigration Studies, a entrada dos imigrantes somada aos nascimentos entre eles representou 77% do crescimento populacional total do país entre 2016 e 2021. Este impulso da imigração contribui para o medo dos nacionalistas cristãos, a quem Trump disse recentemente que os estrangeiros “estão vindo para envenenar o sangue da nação”.
Já em abril, o pregador Jim Wallis, autor do livro The False White Gospel (O falso evangélico branco), alertou sobre a “tomada” das Igrejas cristãs por parte de Trump. “Estou muito preocupado em como [na eleição] o fator fé pode ser esse nacionalismo cristão branco que é idólatra, representa uma adoração falsa”, disse Wallis no programa Morning Joe da cadeia MSNBC. “Trump é um sacrílego, um blasfemador. Muitos pastores gostariam de encontrar a verdade novamente. Alguns fizeram parte da tomada política da Igreja. Esta é uma tomada política da Igreja pela direita”.
Já Lawrence R. Moelhauser, estudioso bíblico e prolífico autor de, entre outros livros, The Fourth Beast: Is Donald Trump the Antichrist? (A quarta besta: é Donald Trump o Anticristo?), não mede palavras. O livro, de acordo com o seu material de divulgação, "mostra-nos como as mentiras e a retórica de Donald Trump exploram os piores medos das pessoas para espalhar o ódio, o racismo, a misoginia, a islamofobia, o chauvinismo descarado e a discriminação, e como essa retórica coincide, ponto por ponto, com as profecias relacionadas ao Anticristo”. Na opinião de Moelhauser, os atributos do Anticristo, assim como descritos na Bíblia, são comparáveis com exemplos da campanha presidencial e da ascensão meteórica de Trump ao centro do cenário político dos Estados Unidos.
Deve-se, pelo menos, admitir que Trump tem uma surpreendente habilidade para escapar de julgamentos políticos, denúncias de fraude, tratamento ilegal de documentos secretos, responsabilidade por um motim para impedir a certificação da sua derrota eleitoral e, mais recentemente, para se esquivar da bala de um assassino.
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Estados Unidos: a teopolítica em ação. Artigo de Jorge Bañales - Instituto Humanitas Unisinos - IHU