02 Agosto 2024
A esperança será um recurso essencial para a campanha de Kamala Harris. Em seu primeiro ato, em Wisconsin, pareceu conseguir reanimar a campanha.
O Artigo é de Patrick Iber, professor assistente de História na Universidade de Wisconsin, autor de Neither Peace nor Freedom: The Cultural Cold War in Latin America [Nem paz nem liberdade: a guerra fria cultural na América Latina, em tradução livre] (Harvard UP, Cambridge, 2015), publicado por Nueva Sociedad, 30-07-2024.
Comecemos pelo essencial: Kamala Harris tem chances de ganhar.
Em apenas duas semanas e meia, Joe Biden e Kamala Harris visitaram Wisconsin, um estado crucial para que qualquer democrata alcance a maioria do Colégio Eleitoral, que por sua vez elege o presidente. O primeiro ato de Biden após seu desastroso debate com Trump foi no ginásio de uma escola secundária perto do aeroporto de Madison, onde depois gravou uma entrevista com o jornalista e ex-assessor de comunicação da Casa Branca George Stephanopoulos. Duas semanas depois, incapaz de retomar a campanha de forma convincente e enfrentando números cada vez mais adversos nas pesquisas, Biden anunciou que renunciava a ser o candidato do partido. O primeiro ato de Harris após a renúncia do presidente – na mesma manhã em que ela conseguiu o número de delegados necessários para se tornar a candidata do Partido Democrata – aconteceu no ginásio de uma escola secundária próximo ao aeroporto de Milwaukee. Assisti a ambos os atos e o contraste entre os dois foi muito marcante.
Os atos desse tipo estão cheios de democratas convencidos: são convidados aqueles que foram voluntários e fizeram doações às campanhas no passado. O ambiente no ato de Biden era de apoio, mas sombrio. Os oradores destacaram os feitos democratas e o perigo que representaria uma vitória de Donald Trump, e Biden esteve certamente melhor no roteiro do que havia estado durante o debate. Após seu discurso, ele visitou uma sala anexa - onde o público havia acompanhado seu discurso em uma tela - e, depois de dizer algumas palavras, conversou com algumas pessoas, incluindo um menino sonolento de uma família racialmente mista. Quando os pais do menino se apresentaram como seus "dois papás", Biden não pensou duas vezes: "Os papás são difíceis de criar!", brincou. Esses pais votariam em qualquer democrata no outono. Mas a fragilidade física de Biden era inegável, assim como a fragilidade de sua própria campanha. Embora ele tenha interpretado a presença da multidão como um apoio para continuar na corrida, as conversas cara a cara, nas quais havia muitas dúvidas sobre se ele poderia ser um candidato competitivo, contavam outra história. E lá fora havia dois grupos de manifestantes: um com bandeiras palestinas e outro pedindo simplesmente que ele renunciasse como candidato pelo bem do partido.
Biden levou duas semanas para assimilar as mensagens que esses manifestantes (e, mais importante ainda, os que seus aliados políticos, as pesquisas e os números de arrecadação de fundos) estavam enviando. Ele não derrotaria Trump, e se essa tarefa era tão importante quanto ele dizia, teria que ser feita por outro. Em vez de umas mini primárias potencialmente caóticas, seu apoio e o de outros democratas importantes (assim como o de sindicatos como a Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais - conhecido por suas siglas AFL-CIO, a União Internacional de Empregados de Serviços - SEIU e a Federação Americana de Professores - AFT) rapidamente se voltaram para a vice-presidente. Se Biden tivesse declarado há um ano que não se apresentaria às eleições e tivesse permitido um processo de primárias abertas, seria impossível saber se Harris teria triunfado. Sua campanha para as primárias de 2020 não prosperou e, como vice-presidente, exauriu toda a equipe e teve problemas com as áreas sob sua responsabilidade. Mas a Kamala Harris que se apresentou em Milwaukee no dia 23 de julho parecia confiante e preparada para enfrentar o desafio.
O público também estava. O recorde de doações que o Partido Democrata conseguiu assim que Biden renunciou - mais de 50 milhões de dólares em um dia, na maior parte em doações pequenas - indicava o inconformismo contido entre os democratas de base frente à continuidade de Biden. O ambiente no ato era semelhante. As pessoas estavam felizes por estar ali. Os democratas que tinham chegado de carro das áreas mais conservadoras do estado expressaram seu alívio por se encontrarem entre companheiros de partido. Os presentes eram de diferentes raças, profissões e idades. Nos intervalos entre um orador e outro, os presentes faziam uma ola, ao redor do ginásio, com as faixas de "Kamala" distribuídas pelos organizadores da campanha.
Biden foi tratado com grande respeito: quase todos os oradores lhe agradeceram por ter tomado uma decisão difícil que colocava os interesses do país acima dos seus próprios, em meio a generosos aplausos. Isso também se tornou um claro contraste com Trump, que nunca faria algo assim. Todas as pessoas com as quais conversei concordaram que o passo ao lado foi a decisão correta. As mães falaram de seus filhos mais velhos, que haviam dito que não votariam em Biden, mas que o fariam por Kamala. Biden havia prometido uma ponte para o futuro e, embora de má vontade, a havia estendida.
O mais significativo é que havia um entusiasmo genuíno pela própria Harris. A vice-presidente não se limitava a ocupar o papel de "democrata genérica", mas colocava sua própria marca. As linhas básicas de sua campanha, e as razões pelas quais ela poderia funcionar em 2024, parecem estar claras. Para estabelecer o contraste com Trump, Harris começou a focar em sua carreira como promotora em San Francisco. Como promotora do distrito, diz, "enfrentei perpetradores de todos os tipos. Predadores que abusavam das mulheres. Fraudeurs que enganavam os consumidores. Trapaceiros que violavam as regras para seu próprio benefício. Então escutem bem quando digo que conheço tipos como Donald Trump".
Além desses antecedentes profissionais, e de alguma menção ao fato de que Harris passou alguns anos morando em Wisconsin quando era criança (seu pai, o economista pós-keynesiano jamaicano Donald Harris, lecionou na Universidade de Wisconsin em Madison entre 1968 e 1972), sua biografia foi deixada em grande parte de lado. A pessoa que apresentou Harris arrancou aplausos estrondosos ao dizer que Kamala finalmente quebraria o teto de vidro, mas aqueles que desenvolvem sua campanha parecem pensar que deixar os republicanos apontarem sua raça e gênero, o que inevitavelmente farão de maneira lasciva e ofensiva (chamando-a, por exemplo, de "candidata DEI", uma referência a cotas de diversidade, equidade e inclusão), é uma boa manobra política.
Ainda assim, sua identidade é importante. Durante todo o ato, foi evocada a sentença "Roe", que protegia o direito ao aborto e foi anulada em 2022 pela maioria conservadora na Suprema Corte. Restaurar o acesso seguro ao aborto será um tema central da campanha, e Harris pode defendê-lo em condições muito melhores do que Biden. De fato, ela o integrou em uma crítica mais ampla da personalidade autoritária de Trump, bem como do conteúdo perigoso do Projeto 2025, uma coleção de propostas reacionárias promovidas pela Fundação Heritage para remodelar o governo federal dos Estados Unidos caso Trump ganhe as eleições. "Vocês podem acreditar que colocaram isso por escrito?", perguntou Harris em um momento em que pareceu improvisar em seu discurso.
As lutas pelos direitos reprodutivos e a proteção da democracia foram unidas pelo tema da liberdade, tanto na retórica quanto na música. Agora que Beyoncé abençoou o uso de "Freedom", a música foi utilizada como trilha sonora da campanha.
A agenda positiva da campanha – além do perigo de Trump – não foi apresentada com muitos detalhes, mas foi esboçada brevemente. Foram repetidas as promessas democratas habituais de proteger a seguridade social, Medicare, Medicaid e a Lei de Assistência Sanitária Acessível ("Obamacare"). Além disso, Harris se comprometeu com os objetivos de acabar com a pobreza infantil, promulgar auxílios para o cuidado da infância e conceder licenças parentais remuneradas. Essas propostas foram incluídas no programa "Build Back Better" [Reconstruir Melhor] e ainda estão sobre a mesa, aguardando o apoio suficiente no Congresso. Embora não tenha havido muitos aspectos que indicassem a possibilidade de desenvolver uma agenda pós-keynesiana ou predistributiva (evitar desigualdades na origem), houve aclamações especialmente entusiásticas da multidão quando ela mencionou a possibilidade de que todos os trabalhadores tenham a oportunidade de se afiliar a um sindicato.
Ainda está por vir se sua mensagem chegará além das bases democratas que encheram o estádio. Nem todos os dias serão tão bons quanto este. Trump e seu candidato a vice-presidente, J.D. Vance, contam com o apoio firme de seus partidários e encontrarão linhas de ataque. O racismo e o sexismo não desapareceram repentinamente da política americana, embora Harris faça com que esses ataques sejam tão óbvios que isso pode enfraquecê-los, pelo menos parcialmente. Mas nada em sua personalidade nem no conteúdo de sua campanha sugere ainda a oportunidade de frear alguns dos realinhamentos partidários em curso, por exemplo, a crescente inclinação dos trabalhadores brancos para os republicanos, especialmente entre os homens. Harris faria bem em escolher um candidato a vice-presidência que possa falar a partir de sua experiência pessoal sobre as necessidades e experiências dos trabalhadores.
Embora por ora Harris tenha conseguido o apoio de praticamente todos os setores da coalizão democrata, as tensões internas certamente voltarão a surgir. O único perturbador do ato, um homem idoso que caminhava com um bastão, começou a gritar: "Você vai parar o genocídio em Gaza?" no meio do discurso. Se Kamala ouviu, ignorou, e os seguranças o retiraram da sala sem grandes alardes. Mas enquanto ele se afastava, algumas pessoas do público lhe sussurraram baixinho que também gostariam que a administração mudasse de rumo. Essas pessoas não consideraram sua participação no ato como um apoio ao enfoque de Biden em relação a Israel. E embora ninguém saiba até que ponto a perspectiva de Harris como presidente seria diferente, podem ter esperanças.
Para conquistar a presidência, essa esperança será um recurso essencial para a campanha de Harris. Naquele dia, ela conseguiu fornecê-la. A esperança de continuar com as coisas que os democratas apreciam no governo de Biden, ao mesmo tempo em que melhora aquelas que desagradam suas bases. A esperança de que ela possa expor as vulnerabilidades da candidatura Trump-Vance de uma maneira que Biden não conseguiu. A esperança de que sua campanha, e as doações de trabalho militante e dinheiro, não sejam desperdiçadas. A esperança de que o país possa ser um lugar melhor e do qual possam se orgulhar.
A senadora Tammy Baldwin, que se apresenta para a reeleição este ano, brilhou por sua ausência em Madison durante a visita de Biden. Mas se apresentou em Milwaukee no ato de Kamala. Ela, ao menos, parece pensar que Kamala a ajudará e que ela poderá ajudar Kamala. A multidão também pensava assim. Esperaram por muito tempo que seu partido lhes oferecesse uma candidatura viável, o que talvez tenha tornado fácil ignorar algumas das possíveis fraquezas de sua campanha. Em um aspecto que é fundamental nas campanhas presidenciais modernas, Harris teve sucesso ao oferecer às pessoas a sensação de que poderiam participar de algo importante. Em determinado momento, ela estabeleceu um contraste entre o programa retrógrado dos republicanos e o progressista dos democratas. "Em que tipo de país queremos viver?", perguntou. "No de Kamala", gritou alguém da plateia. A candidata parou, sorriu e esperou que os aplausos cessassem.
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Kamala pode ganhar. Artigo de Patrick Iber - Instituto Humanitas Unisinos - IHU