Ao longo da história, os processos evangelizadores foram mudando, e hoje eles estão cada vez mais influenciados pelo mundo digital, sendo a cultura digital um elemento que determina os processos evangelizadores. Diante dessa realidade, Moisés Sbardelotto acha que, “ao longo da história, o desafio sempre foi esse, estabelecer o diálogo entre fé e cultura”. Nesse ponto recorda que o Papa Paulo VI dizia que o problema se dá justamente na ruptura atual entre fé e cultura.
A reportagem é de Luis Miguel Modino.
“Hoje também, com a cultura digital, mudam as linguagens, mudam os métodos, mudam os ambientes também de relação, a ponto de o Papa Francisco falar de uma cultura amplamente digitalizada. Ele diz que isso tem efeitos sobre a própria identidade e a relação que as pessoas estabelecem”, afirma Sbardelotto. Segundo o investigador, “nos últimos 30 anos, desde que a internet se disseminou na sociedade em geral, praticamente tudo o que nós fazemos mudou de alguma forma, no campo da política, da saúde, da educação. E é claro que isso vai afetar também a prática religiosa e, neste caso, também o processo de evangelização nas igrejas cristãs”.
Moises Sbardelotto | Foto: Luis Miguel Modino
O desafio, segundo Sbardelotto, está em “tentar entender essas transformações, principalmente tentar entender essa cultura, que traz toda essa mudança, que é muito rápida, muito intensa”. Ele afirma que, “pensando na relação entre a história da Igreja, de milênios, e esta transformação digital que se dá em poucos anos, a gente tem aí um choque cultural muito forte”. Isso faz com que “a Igreja, de um ponto de vista mais institucional, demore a responder a essa nova realidade, mas é fundamental ao menos entender essa nova cultura, porque senão essa divisão entre a fé e a cultura vai aumentar cada vez mais”.
Sbardelotto reconhece que “a Igreja, pelo menos, vem dando passos, conscientes, reflexivos, com muita cautela, mas ao mesmo tempo com muita coragem, no sentido de fazer essa aproximação com os ambientes digitais. A tal ponto que agora, no debate que está se dando em torno ao Sínodo da Sinodalidade, esse é um dos temas centrais, votado inclusive pela Assembleia Sinodal como um foco necessário para a reflexão”. Ele lembra que “já no Relatório de Síntese a cultura digital aparece como algo positivo, como uma dimensão crucial, segundo o Relatório, para a missão da Igreja hoje. Não tem como pensar uma Igreja sinodal se levar em conta a cultura digital, mas, ao mesmo tempo, surgem algumas problemáticas que essa cultura traz para a própria noção de evangelização”.
O professor da PUC Minas define essa cultura como “muito mais efêmera, individualista, em que os vínculos também são muito mais fracos”. Segundo ele, “a noção de autoridade e de comunidade vão entrando em xeque também, e isso vai afetar, é claro, a evangelização”.
Essa individualidade, essa efemeridade, entra em debate com a sinodalidade e uma Igreja de processos, que fala o Papa Francisco. Isso é considerado por Sbardelotto como um grande desafio, dizendo que o modo como o Sínodo está acontecendo “tem um nível comunicativo, comunicacional, que é chave em tudo isso”. Ele se refere à importância da escuta destacada pelo Papa Francisco, e o método proposto da conversa no Espírito, vendo que “a escuta, o diálogo, a conversa, são processos fundamentais para que a gente possa ser uma Igreja que seja efetivamente seja comunidade de comunidades, e não só de núcleos isolados, que quase já não dialogam mais, e esse é um risco”, afirmando que isso está na Igreja em geral e no Brasil, algo que surge “por questões políticas, por questões até culturais, questões que vão entrando na pauta pública, e o catolicismo vai se pulverizando também. E a gente vai percebendo catolicismos, no plural, que não conseguem entrar mais em diálogo”.
Atitudes que Sbardelotto considera “um problema grave, um contratestemunho contra a vocação da Igreja que é ser una, como Jesus mesmo reza na Oração Sacerdotal”. Ele pensa que “tem questões que são cruciais hoje para se pensar a sinodalidade, e a comunicação entra aí, com a importância de pensá-la para além da questão midiática. É a comunicação como processo mesmo, que é fundamental para a relação entre os fiéis, as comunidades e também para poder estabelecer o diálogo com o mundo”. O professor insiste em que, “sem essa comunicação, sem a Igreja se voltar, refletir e entender esses processos de comunicação, a ideia de sinodalidade fica muito frágil, muito aérea”.
Nessa dinâmica da cultura digital, onde os jovens estão muito mais envolvidos, nos deparamos com o medo da Igreja de dialogar com aquele que é diferente, com a diversidade, um medo que não tem o Papa Francisco, e que demanda que a Igreja perca o medo de dialogar de igual para igual com os jovens, com quem pensa diferente, com aqueles que estão afastados da Igreja, com quem não tem religião ou é de outras religiões. Diante dessa realidade, Sbardelotto pensa na necessidade de “voltar às fontes, voltar à pessoa de Jesus. Não tem como pensar essa abertura à diversidade sem levar em conta a própria missão da Igreja, o modo como ela foi chamada a se constituir na pessoa de Jesus, o modo como ele agia com as pessoas”.
PASCOM | Foto: Luis Miguel Modino
Sbardelotto considera que “o problema hoje é que a Igreja, por todo o processo histórico que ela tem, o longo período histórico de vida que ela tem, vai trazendo consigo também certas cristalizações, enrijecimentos, em seus métodos, em suas linguagens”. Segundo ele, “a Igreja, de uma experiência de fé com a pessoa de Jesus, acabou se convertendo muito mais numa instituição religiosa. E uma instituição religiosa que vai tentar sempre defender os seus próprios interesses, seus próprios processos, vai precisar se resguardar para manter uma certa identidade clara, tudo isso que vai acontecendo ao longo da história”.
“Isso vai impedindo a Igreja de poder dialogar com as várias diferenças, por se basear em certos pressupostos, que vão impedir justamente esse diálogo, que não se enquadra naquilo que a instituição delimitou como verdade ou como parte da sua identidade”, destaca o professor. Ele afirma que “isso nega a própria história da Igreja, que sempre foi capaz, desde a sua origem, de se abrir para as diferentes culturas. E a experiência criativa que a Igreja desde suas origens teve, no sentido de traduzir aquela experiência inicial de Jesus para as diversas linguagens e as diversas culturas”.
Nesse ponto, Sbardelotto considera que “hoje o desafio com a cultura digital é um pouco esse, porque ao mesmo tempo, essa cultura permite que a gente tenha acesso e visibilize essa diversidade cultural, porque basta acessar a internet e a gente vê essa diversidade. Mas, ao mesmo tempo, a gente acaba caindo sempre nas chamadas bolhas sociais, em que o diálogo é mais fácil, porque são pessoas que pensam igual, usam a mesma linguagem”. Mas “isso vai nos impedindo de contatar, de dialogar com as diferenças”, afirma, destacando que “a cultura digital pode ser o veneno e o remédio de como lidar com as diferenças”.
Nessa perspectiva, considera que “a comunicação é um processo central”, parafraseando o Papa Francisco e afirmando que “a comunicação é a harmonização das diferenças”. Sbardelotto afirma que “uma sociedade é repleta de diferenças. A própria Igreja católica é repleta de diferenças, culturais, históricas, modos de pensar a teologia. Mas o necessário é que essas diferenças consigam viver de forma harmoniosa, mantendo a unidade, sem negar a diversidade”. Ele ressalta que “o risco de hoje é que estamos reforçando unidades individualistas, minoritárias, sem conseguir manter essa perspectiva da diversidade”.
Algo que ele diz trazer de volta “esse desafio do Papa Francisco de pensar a sinodalidade, ou seja, de perceber hoje, frente a toda essa diversidade cultural e esse processo de globalização do próprio catolicismo, que o catolicismo é uma religião global e tem diferenças gritantes do ponto de vista cultural. Mas ao mesmo tempo o desafio é como caminhar juntos, não apesar dessas diferenças, mas levando em conta essas diferenças, porque elas também enriquecem a própria Igreja, nessa diversidade. Mas essa diversidade precisa ser trabalhada por meio de processos comunicacionais e ser elevada para uma experiência de unidade, de um corpo que tem a mesma fé, que parte da mesma experiência de fé e consegue expressar isso nas diversas realidades culturais, mantendo a unidade, que é o grande desafio”.
Diante da polarização existente no Brasil, inclusive na vivência religiosa, avançar nesse caminho, segundo Sbardelotto, “é um problema, porque quando a gente pensa a ideia de diálogo, é preciso levar como pressuposto que o diálogo demanda também abertura mútua e reciprocidade, e o problema de hoje é justamente a dificuldade da escuta por parte de certos grupos”. Ele ressalta que “nós temos muitas possibilidades de discurso, de fala, de produção de conteúdo, mas pouca abertura para a escuta do outro”. Segundo o professor, “no Brasil a gente acaba vivendo essa radicalização da polarização, do ponto de vista religioso, em que já não há mais nem pontos comuns que tornem possível esse diálogo”.
“Quando a porta está fechada, da parte de um ou de outro, o diálogo se torna praticamente impossível”, afirma Sbardelotto, que considera essa atitude um grande risco, “quando já não há nenhum ponto em comum dentro de uma mesma experiência de fé, como o cristianismo, igrejas cristãs que já não conseguem encontrar nenhum ponto em comum para um diálogo, para uma convivência, para um momento de partilha”. De novo, ele insiste na necessidade voltar às fontes da Igreja, “quando a comunicação básica dos cristãos desde o início, quando o diálogo era impossível com a cultura da época, se estabelecia pelo testemunho, que, na origem do cristianismo, era o próprio martírio, que se tornava a grande comunicação e conseguia inclusive descontruir, de certa forma, os valores e os pressupostos sobre os quais o Império Romano estava construído”.
Falando do tempo atual, ele diz que, “quando dentro do próprio cristianismo brasileiro, não há possibilidade de diálogo, por diferenças teológicas, políticas, é necessário, da nossa parte, fazer como aqueles cristãos das origens, que realmente se inspiravam e buscavam viver a experiência de encontro com Jesus de Nazaré, mantendo um testemunho de vida. Para além das palavras, a nossa prática tem que ser dialógica, tem que comunicar a fonte essencial do evangelho”.
Nesse sentido, Sbardelotto afirma que “talvez por meio desse testemunho seja possível, então, também, ao menos levantar algum questionamento, alguma possibilidade de interlocução, senão por parte das lideranças religiosas, pelo menos da sociedade, que possam olhar para nós e dizer: ‘Vejam como eles se amam, vejam como eles têm realmente uma prática diferente’. E que isso possa ao menos tentar abrir algum tipo de diálogo, de conversa, de questionamento por parte desses outros cristãos que são fechados, intolerantes, não buscam o diálogo. Porque isso também da parte deles é um contratestemunho, é uma incoerência com os valores do Evangelho”.