17 Julho 2024
"Luzzatto Voghera oferece uma revisão das formas e das mutações do judaísmo, delineando uma constelação composta que chega até os nossos dias", escreve Lia Tagliacozzo, jornalista e escritora italiana, em artigo publicado por Il manifesto, 16-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Há um metajudeu que supera todas as representações históricas do judaísmo, inclusive a contemporânea, uma imagem sedimentada no senso comum que zera a multiplicidade das pertenças políticas e culturais, uma fotografia na qual "o judeu imaginado é muito diferente do judeu real". Sobre esse judeu imaginário e seu descendente, o sionismo imaginário, aprofunda seu pensamento Gadi Luzzatto Voghera - historiador do judaísmo e estudioso do antissemitismo, com muitos títulos a seu crédito - em Sugli ebrei, domande su antisemitismo, sionismo, Israele e democrazia (Sobre os judeus, perguntas sobre antissemitismo, sionismo, Israel e democracia, em tradução livre, publicado por Bollati Boringheri, pp. 135, euro 13): perguntas reais e respostas possíveis que não deixam de forma o presente. “Falar dos judeus como um grupo bem determinado e reconhecível no espaço e no tempo", escreve Luzzatto Voghera, "é uma operação no mínimo arriscada" e, a lhe servir como espelho, "se apresenta a constelação variegada que compõe o mundo do antissemitismo, que indica e define como judeus todos aqueles que correspondem às características negativas de sua retórica": mais que uma identidade única e compacta, é necessário flexionar os judaísmos na modernidade, adaptando-os ao contexto histórico que deu origem a cada flexão.
Luzzatto Voghera propõe, portanto, um caminho que tem como ponto de partida o Iluminismo: "Durante o processo de emancipação dos judeus nas sociedades europeias, prevalecia decididamente o impulso para uma rápida integração em uma sociedade que, por sua vez, estava passando por transformações profundas e radicais. O modelo social burguês que estava se afirmando na nascente sociedade industrializada exercia uma forte atração (...) era preciso participar do progresso, mesmo ao custo de renunciar a parte ou a toda a herança ancestral”. A partir de então, abre-se um processo, ainda em curso, que vê o mundo judeu se confrontar com o mundo fora dos guetos, agora fechados em grande parte da Europa, e explicitar-se em um encontro constante e com os mais diversos resultados com o contexto intelectual, econômico e social da sociedade circundante. Luzzatto Voghera oferece uma revisão das formas e das mutações do judaísmo, delineando uma constelação composta que chega até os nossos dias: descreve o confronto entre reforma e tradição que ocorre principalmente nos Estados Unidos, o nascimento de uma cultura judaica secular até então inimaginável, e relata a realidade judaica italiana a partir do final do século XIX, da qual é um dos estudiosos mais significativos.
Também é central a comparação com o nascente movimento sionista, que "não foi fruto, exceto em formas parciais, de um pensamento político judaico autônomo: os estudiosos concordam em julgar o sionismo como uma forma tardia dos nacionalismos ocidentais, dos quais tomou emprestado, em sua totalidade, as formas e as linguagens políticas", "por fim - continua Luzzatto Voghera - e esse talvez seja o tema mais problemático que estamos vivendo hoje, não se pode deixar de tentar um raciocínio sobre as dinâmicas do fundamentalismo judaico: um fenômeno moderno desconhecido da história do passado, exceto em formas muito limitadas e particulares (...). Em todos esses casos, resulta problemático e, em certo sentido, inútil e prejudicial chegar a uma definição unívoca de política judaica na época contemporânea".
Luzzatto Voghera propõe, então, uma pedra angular a que recorrer para a reflexão: a complexidade como categoria do pensamento, a capacidade de evitar os singulares enrijecidos e congelados para explicitar os plurais: "Trata-se, para todos os efeitos, do exato oposto da propaganda e tem o defeito – no plano do marketing intelectual e político - de não oferecer ao público as certezas das quais está em busca": essa - argumenta - é "a resposta mais eficaz à simplificação proposta pela linguagem antissemita".
Além disso, sugere o estudioso, "no âmbito da reflexão sobre a memória do Holocausto, a complexidade ligada ao uso e ao cruzamento de fontes diferentes se coloca em contraste com a prática doentia e perigosa do uso político da história e torna mais dificultosa a distorção da própria história". Perguntas reais e respostas pontuais se alternam nas páginas, propondo - sempre - uma pluralidade que supera a retórica dos "bons-bons" contra os "maus-maus".
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"Sobre os judeus", uma análise em torno da complexidade como pedra angular. Artigo de Lia Tagliacozzo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU