24 Julho 2024
“A humanidade está numa encruzilhada. Ou volta a acreditar que tem uma natureza diferente daquela das máquinas, ou será reduzida a uma máquina entre máquinas. O risco não é que a inteligência artificial se torne melhor do que a gente, mas que decidamos livremente nos submeter a ela e a seus donos".
Federico Faggin é um dos maiores inventores vivos. Talvez o maior inventor vivo. Ele é o pai do microprocessador, o bloco de construção no qual se baseia toda a computação moderna, inclusive a supercapacidade de cálculo da IA. De Vicenza, 83 anos, vive em Los Altos Hills, Palo Alto, Califórnia, há 56 anos. Ele está entre os homens que mais contribuíram para a aceleração da tecnologia no último meio século. Durante décadas, ele acreditou na tecnologia. Em sua capacidade de replicar o ser humano, sua inteligência e consciência. Faggin tentou isso durante anos. Então, no fim da década de 1980, no auge de seu sucesso profissional e econômico, ele passou por uma profunda crise existencial. Coroada por um episódio. "O despertar", como ele o chama hoje. Um evento que o levou a estudar e estudar a si mesmo. E a elaborar, junto com Giacomo Mauro D’Ariano, professor de física teórica da Universidade de Pávia, uma teoria sobre a consciência e a realidade que afunda as raízes nas questões ainda hoje obscuras e vertiginosas da mecânica quântica.
A entrevista é de Arcangelo Rociola, publicada por La Stampa, 13-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Faggin, suas invenções lançaram as bases da revolução da informática. Você é um físico, um homem da ciência. No entanto, hoje fala sobre um evento na sua vida que revirou todas as crenças, todas as perspectivas.
Conto essa história porque foi um evento fundamental. Antes daquela experiência, eu havia aceitado uma visão de mundo reducionista, a mesma que atualmente domina o mundo da ciência e da tecnologia. Eu me considerava uma máquina, sabia que era uma máquina e queria provar isso. Naquela época, eu estava estudando a consciência com a ambição de entender como ela funcionava e replicá-la em uma máquina. Tinha se tornado uma obsessão, mas eu não estava conseguindo.
Até que aconteceu seu "despertar".
Era o fim da década de 1980, época em que eu estava dedicando mais energia para resolver o problema da consciência. Eu estava de férias em Lake Tahoe, na Califórnia. Levantei-me à noite, voltando para a cama senti uma energia fortíssima saindo de meu peito. Foi uma experiência que durou vários minutos e me abriu as portas para uma nova maneira de ver o mundo.
O que percebeu quando olhou para o outro lado?
Que eu estava tentando resolver um problema impossível. Que o homem e a sua consciência não podem ser reduzidos a máquinas e matéria. Que eu achava que minha abordagem reducionista do mundo tinha me trazido riqueza e felicidade, mas não era verdade, porque eu estava fazendo isso à custa de abolir a interioridade. Naquela noite, descobri a união essencial entre exterioridade e interioridade. Que a consciência não nasce da matéria. Percebi que a única coisa importante a fazer era estudar a consciência, não para reproduzi-la em uma máquina, mas para unir ciência e espiritualidade.
Aquela experiência foi seguida por 30 anos de estudos que o levaram a elaborar uma teoria baseada em uma interpretação dos campos quânticos, do colapso da função de onda, desdobrando-os sobre o tema da consciência e do livre arbítrio. Com D’Ariano, vocês reúnem âmbitos de estudo até então irreconciliáveis. Como você acredita que a comunidade científica reagirá?
No momento, é muito cedo para dizer. Mas a ciência já sabe que não conhecemos a realidade apenas com os números. Que nem toda a realidade é redutível à matéria. Em meu livro, defendo que a consciência e o livre-arbítrio são capazes de explicar a física quântica, e não o contrário. Que é a consciência que cria a matemática, e não o contrário. Há uma parte do mundo, consciente, interior, que não pode ser calculada, mas que só pode ser experimentada.
Alguns pensarão que essa sua seria a extrema tentativa de uma humanidade destronada para retomar as rédeas do mundo postulando a sua própria superioridade.
É possível e somos livres para pensar assim, mas os fatos são fatos: é preciso explicar como a consciência emerge da matéria, caso contrário, a acusação é vazia. E, além disso, me permita dizer uma coisa.
Claro.
É a ciência que diz que somos máquinas e matéria. É um ponto de vista aceito por todos, eu diria que por 100% da comunidade científica e do mundo que atualmente domina a tecnologia. Pouquíssimos têm uma mente aberta para a possibilidade de que o mundo possa não ser como a ciência quer que seja, ou seja, materialismo e reducionismo.
Também é verdade que a maçã de Newton caindo sobre a cabeça é uma experiência que todos podem ter para entender a gravidade. Um despertar da consciência é para poucos afortunados.
Existem métodos para experimentar algo semelhante. Não estou falando de drogas, das quais não tenho experiência e não uso, mas também certas meditações ou métodos de respiração levam a uma percepção de si mesmo diferente.
É preciso se perceber como consciência para se aproximar à própria natureza irredutível.
Essa é uma experiência que uma inteligência criada em um laboratório poderia ter?
Não, a inteligência artificial é simbólica, não entende o significado do que elabora. Eu leio o debate dos últimos tempos sobre as máquinas e o perigo de que eliminem o homem, como trabalhador ou pessoa. Mas qualquer tentativa de tornar semelhante o ser humano à máquina é um crime contra a humanidade.
O debate sobre o advento de uma superinteligência artificial parece estar indo nessa direção. Você dedicou vários livros à diferença entre homem e máquina. O mais recente - Oltre l’invisibile (Além do invisível, em tradução livre, Mondadori) - talvez seja o mais acessível para o público em geral. Em resumo, o que nos diferencia de um dispositivo inteligente?
O fato de que nosso corpo e nossa mente são supervisionados pela consciência e a consciência não emerge da matéria. Não se questiona a capacidade de cálculo e de inteligência computacional, mais cedo ou mais tarde uma máquina as terá mais do que nosso cérebro. Mas que a consciência vai além dos números. Essa é a diferença fundamental.
Todos os temores sobre uma super IA são infundados?
Longe disso, são verdadeiros. Mas de uma forma diferente da defendida no debate atual. Se continuarmos a nos convencer de que somos máquinas, nos tornaremos máquinas. Meu trabalho parte da compreensão dos limites da IA e do que nos torna superiores. Mas temos que entendê-lo, integrá-lo em uma visão de mundo. Caso contrário, nos tornaremos ferramentas entre ferramentas, esquecendo a nossa natureza mais profunda por opção.
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“Somos feitos de consciência e matéria. Não superaremos as máquinas com os números”. Entrevista com Federico Faggin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU