10 Julho 2024
Diante dos desafios que o mundo e a Igreja enfrentam e do "fundamentalismo que ganha terreno em todos os lugares", o inglês Timothy Radcliffe, ex-mestre-geral dos dominicanos, e o polonês Lukasz Popko, biblista em Jerusalém, nos convidam a ler a Bíblia por meio das perguntas que ela apresenta, mais que pelas respostas que ela pode dar.
A reportagem é de Gaétan Supertino, publicada por Le Monde, 07-07-2024.
Timothy Radcliffe, 78 anos, ex-mestre-geral da Ordem dos Pregadores (o nome oficial dos dominicanos), é uma voz importante na Igreja Católica. Ele participou da primeira assembleia geral do sínodo sobre o futuro da instituição, guiando o retiro espiritual organizado na véspera de sua abertura, nos dias 1 e 2 de outubro de 2023, e participará da segunda assembleia, que começará em outubro próximo.
O dominicano polonês Lukasz Popko, 46 anos, é pesquisador e professor na Escola Bíblica e Arqueológica de Jerusalém. Ambos acabaram de publicar Interroger Dieu (Cerf, 336 páginas), no qual propõem uma releitura da Bíblia por meio das perguntas que os personagens apresentam a Deus e vice-versa.
Em vez de se concentrar nas respostas fornecidas pela Bíblia, o livro recém-lançado analisa as perguntas que o livro sagrado apresenta. Por que essa abordagem?
Timothy Radcliffe: Precisamos de imaginação teológica, caso contrário não seremos capazes de responder aos desafios de nosso tempo. Vivemos em um mundo onde o fundamentalismo está ganhando terreno em todos os lugares, até mesmo dentro da Igreja, onde há a tentação de adotar uma leitura literalista dos textos sagrados. Mas as perguntas feitas pela Bíblia estimulam a nossa imaginação e podem nos ajudar a ir além dos nossos preconceitos e descobrir novas maneiras de ver a realidade.
Lukasz Popko: Não pode haver uma boa conversa se, no início, não for feita uma boa pergunta. Ler a Bíblia pelo prisma das perguntas que ela levanta nos permite enfatizar o aspecto inesperado das respostas apresentadas. Por exemplo, o primeiro diálogo entre o divino e o humano começa com uma pergunta: "Homem, onde estás?" (Gênesis 3,9-13), dirigida por Deus a Adão, que se esconde depois de comer um fruto da "árvore do conhecimento".
Essa narrativa nos revela pelo menos duas coisas. Em primeiro lugar, o ser humano é punido porque presume poder comer de tudo, possuir tudo, incapaz de estabelecer limites para si mesmo. Em segundo lugar, é por meio de uma pergunta aberta e não de uma acusação que o silêncio é quebrado e o diálogo é restabelecido.
Qual foi a pergunta que mais chamou a sua atenção na Bíblia? Ainda pode ressoar em nós hoje?
Timothy Radcliffe: Gosto muito da pergunta que Deus faz ao profeta Elias (1 Reis 19, 9-18): "Por que estás aqui?"
Cada um de nós se faz essa pergunta, e a apresentamos de maneiras diferentes na escola, na universidade ou no leito de morte. Isso nos convida a renovar continuamente as nossas respostas e a reconsiderar o significado que damos à nossa existência.
A essa pergunta, Elias, escondido em uma caverna, responde: "Senhor, eu te amo tanto que não consigo mais suportar a maneira como os israelenses se comportam". Elias não consegue mais dar um sentido à sua vida. E Deus lhe diz que ele faz parte de um drama maior, do qual ele ignora a existência. Muitas vezes não entendemos a nossa vida, mas o texto nos diz que todo ato de amor produz frutos que não podemos prever.
Lukasz Popko: Outra pergunta importante é aquela feita por Deus a Caim depois de matar seu irmão Abel (Gênesis 4,2-11): "Onde está seu irmão Abel?" Essa pergunta é, antes de tudo, um convite à fraternidade, para ver na vítima Abel o rosto de todos os nossos "irmãos" humanos perseguidos. Mas acho que também deveríamos nos perguntar: "Onde está o nosso irmão Caim?"
Esse texto nos convida a retomar o diálogo, mesmo com os nossos inimigos. Nesse episódio bíblico, é claro que Deus castiga Caim e o obriga a uma vida de exílio. Mas não podemos esquecer de que ele também o protege. E eu gosto de imaginar que Abel e Caim se reencontrem no paraíso.
O diálogo é sempre possível?
Lukasz Popko: Para que haja diálogo, cada interlocutor deve estar ciente da dignidade do outro. Às vezes, não há escolha a não ser permanecer em silêncio diante de certas perguntas. Quando o rei Herodes pede a Jesus que faça milagres, Jesus não responde: o seu silêncio é uma forma de mostrar a ele que não é um animal de circo.
O diálogo requer confiança. Às vezes, precisamos de tempo para expressar a nossa raiva, para elaborar o luto, para poder compreender o outro. Qualquer reparação pode exigir um período de precariedade e de fragilidade. Eu moro em Jerusalém: lá, o desafio diário é restabelecer o diálogo, caso contrário, o ciclo da violência nunca terminará e as vitórias de hoje abrirão caminho para as guerras de amanhã. Ainda tenho esperança de que judeus e palestinos voltem a conversar entre si quando perceberem que são iguais diante da dureza do mundo.
Seu livro se opõe a qualquer busca por uma identidade demasiado rígida, independentemente de se tratar de um indivíduo, uma nação ou a Igreja. Mas, nestes tempos incertos, a estabilidade não seria tranquilizadora?
Timothy Radcliffe: A identidade assume diferentes significados. Tenho orgulho de ser dominicano e também de ser inglês. Mas posso usar essa identidade para me fechar em mim mesmo, como nos convida a fazer uma certa tendência populista atual, ou como uma forma de me abrir para os outros.
Prefiro viver a minha condição de frade dominicano como um chamado à fraternidade universal em vez de à fraternidade com a minha própria comunidade. A história da Irlanda do Norte, para citar um exemplo, mostra como a busca de uma identidade católica ou protestante leva a uma identidade fechada.
Gosto de citar esta passagem do evangelista João (3,2): "Agora somos filhos de Deus, mas ainda não se manifestou o que haveremos de ser". A identidade está no futuro, aberta. O mesmo acontece com os dogmas. Os grandes dogmas da Igreja não fecham as portas, nos abrem para os mistérios da existência.
Proclamar a divindade de Cristo não encerra o debate sobre a identidade de Cristo ou de Deus.
Lukasz Popko: Há outro texto no Livro do Apocalipse que vai nessa direção, onde Deus diz: "Darei (...) uma pedra branca; nessa pedra está gravado um novo nome, que ninguém conhece, exceto aquele que o recebe". Esse texto nos convida a ver a nossa identidade como um mistério à espera de ser revelado.
É claro que não podemos mudar tudo: nascemos em um lugar e em circunstâncias específicas. Isso constitui uma base. Mas a nossa identidade não se limita a isso. Quando Jesus, que nasceu judeu, fala com a mulher samaritana e declara que "a salvação vem dos judeus" (Jo 4,1-52), ele não está lhe pedindo para mudar de povo, nem está negando a sua história pessoal. Ele está simplesmente convidando-a a considerar o mistério que se abre diante dela.
O perigo surge quando a identidade se transforma em ideologia, quando propõe soluções fáceis para todos os problemas, fixando-se em uma bandeira ou até mesmo em um hábito. O próprio Jesus não fala muito sobre si mesmo, sobre a sua identidade.
Ele anuncia que faz a vontade "de seu Pai", viaja "com" os seus discípulos e oferece ensinamentos. Ele está sempre em relação com um outro.
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“O perigo surge quando a identidade se transforma em ideologia, quando é fixada em uma bandeira ou em um hábito”. Entrevista com Timothy Radcliffe e Lukasz Popko - Instituto Humanitas Unisinos - IHU