08 Julho 2024
"A modernidade morde sua própria cauda: essa é a sua força. Também poderia ser um comportamento autolesivo do qual seus inimigos muitas vezes se aproveitam!, mas se renuncia ao modernismo e se torna acrítica, trai a si mesma", escreve Filippo La Porta, ensaísta, jornalista e crítico literário italiano, em artigo publicado por l’Unità, 08-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Com uma manobra felizmente surpreendente, o Festival de Setembro de Pordenonelegge foi inaugurado nos últimos dias em Praga, iniciando entre outras coisas uma espécie de "Erasmus especial", um intercâmbio virtuoso entre os estudantes de Praga e Pordenone a partir de suas histórias. Na inauguração proferi um discurso sobre “A liberdade da Europa e o sonho da literatura”. Antes da minha palestra, Edith Bruck, uma esplêndida nonagenária, cheia de juventude, falou online de Roma. Depois de uma existência atormentada pelo horror (só me lembro dela como uma sobrevivente do Holocausto), embora o horror tenha sido depois traduzido em escrita e, portanto, pelo menos parcialmente “resgatado”, ela insistiu – justamente ela! – sobre a necessidade de ter esperança.
No coração da tradição judaica, refratária ao trágico (ao contrário da grega), persiste uma atitude “positiva”: até o sofrimento mais terrível, aquele de Jó, recebe no final alguma compensação. Benjamin dizia que é preciso arrancar do infortúnio todas as oportunidades que ele traz. Edith Bruck, sem qualquer traço de retórica, não se cansa de nos lembrar dessas inúmeras oportunidades. Mas chego ao “sonho da Europa”. A Europa (e aqui uso o termo, ainda que um pouco indevidamente, como sinônimo de Ocidente e de modernidade), produziu na sua história horrores e atrocidades, mas sempre foi capaz de criar também os anticorpos necessários.
Krishan Kumar, um sociólogo inglês de origem indiana nascido em Trinidad, observou que a modernidade na literatura gerou o modernismo no século XX (preanunciado no século XIX pelo menos por Rimbaud e Baudelaire), que é também uma crítica radical da modernidade, última forma do romantismo: rejeição da modernidade burguesa e, portanto, da razão, da ciência, do industrialismo, do progresso em nome do sentimento e da imaginação. Em suma, a modernidade morde sua própria cauda: essa é a sua força. Também poderia ser um comportamento autolesivo do qual seus inimigos muitas vezes se aproveitam!, mas se renuncia ao modernismo e se torna acrítica, trai a si mesma. Para Marshall Berman, teórico radical e sociólogo estadunidense, é impossível ser modernos sem ser antimodernos: aqui está, é a mais bela e convicta apologia do Ocidente, uma civilização, como todas as outras, cheia de defeitos, mas capaz de se criticar! Vamos tentar aprofundar esse aspecto.
Acredito que dentro da tradição europeia (e ocidental) existe uma promessa bem enraizada de liberdade e igualdade, ao lado - como eu dizia - de todo o resto, ao lado da vergonha das cruzadas, do colonialismo, da escravatura (mesmo que, é preciso lembrar, os outros povos não são melhores: o tráfico de escravos já era praticado pelos mercadores árabes). Gostaria de sugerir uma imagem particularmente vívida: o "pacote", por assim dizer, inclui tanto Handel, como o horrível fenômeno dos castrati, milhares de crianças órfãs castradas para simular a voz feminina (e muitas das quais morriam por infecção). O pacote, infelizmente, deve ser levado integralmente.
Mas não é por acaso que nos libertamos dos castrati e das vozes brancas em 1861. Algum progresso, embora contraditório, precário e incerto, ainda existe, assim como existe alguma dialética da História, mesmo que corresponda mais a uma tarefa do que a um evento inevitável.
Tocqueville dizia que a ideia cristã subversiva de igualdade uma vez entrada na história, e depois sancionada nas grandes revoluções da modernidade, nunca mais desparece. Enquanto Proudhon falava de uma necessidade elementar de justiça – que surge da simples constatação de uma personalidade igual à minha no outro, da qual nenhuma política pode prescindir.
Ora, esta Europa, esta modernidade cheia de facetas, mas capaz de criticar a si mesma de maneira inesgotável, tem hoje essencialmente dois inimigos: o totalitarismo russo-chinês (com aquele distópico arcimboldo feito de comunismo autoritário e capitalismo selvagem) e o fundamentalismo islâmico.
Dois inimigos aguerridos, muitas vezes até sedutores, capazes de uma retórica sorrateira (apresentam-se, de forma basicamente hipócrita, como alternativas ao nosso mundo “materialista”, centrado nos bens e nos consumos), mas dentro deles não vejo nenhuma promessa de liberdade e igualdade. Prometem outras coisas: identidades fortes, pertenças graníticas e tranquilizadoras, sonhos de supremacia econômico-militares. Volto à promessa inscrita no DNA do Velho Continente. Dela falaram filósofos como Schelling, mais tarde retomada pela Escola de Frankfurt, mas também Vàclav Havel, o presidente-dramaturgo e protagonista da Revolução de Veludo da República Checa, e foi associada à arte, à literatura e à poesia. Insisto num ponto: provavelmente Ariosto, Tasso e Metastasio não teriam nada a opor ao genocídio dos povos indígenas na América, mas na sua obra é cultivada uma semente de humanidade que está destinada a florescer mais cedo ou mais tarde (além do fato de que um autor como Montaigne na verdade se opunha). Assim afirma Adorno: “Mahler parece às vezes perceber o que o seu olhar apontado da terra para o céu esperou durante uma vida inteira… promete algo diferente, promete perfurar um véu…”. Aqui está a grande ideia de Adorno, da arte ao mesmo tempo como harmonia e dissonância, ao mesmo tempo como utopia e crítica do mundo tal como é.
Mas aqui chegamos à questão mais radical de todas. Um ano atrás, estava em Nova York para um curso de literatura trimestral. A certa altura, uma estudante estadunidense me pergunta: “Vocês na Europa têm um patrimônio extraordinário – artístico, cultural, arqueológico – mas a que serve se não serviu para se defender do nazismo e, na verdade, muitas vezes justificou o nazismo?” . Pergunta incontornável.
Os torturadores dos campos de extermínio podiam ler Goethe e Schiller e emocionar-se ao ouvir Schubert.
A própria cultura falhou no século XX, o humanismo necessariamente não humaniza e, de fato, a sensibilidade artística pode ser um álibi gigantesco e um ressarcimento. George Steiner observava que uma hipersensibilidade ao destino do dickensiano Hanno Buddenbrook pode nos tornar insensíveis ao sofrimento do vizinho de casa. Hitler lia um livro por dia. E chegamos ao cerne da questão. Se a cultura não necessariamente emancipa, deveríamos então elogiar a falta de cultura e a barbárie? Claro que não. A questão é se entender: qual cultura? Qual abordagem da cultura? Hitler buscava apenas autoconfirmações tranquilizadoras nos tantos livros que lia. Mas a cultura é dúvida, inquietação, cada leitura é uma aventura cujo desfecho ignoramos, é uma aposta para si mesmos.
Aquela mesma obra pode libertar-nos e tornar-nos melhores, mas também pode anestesiar-nos e tornar-nos indiferentes à dor do mundo. É preciso redescobrir uma ligação entre os livros e a vida, entre a cultura e a experiência, entre o saber e a nossa condição de seres igualmente expostos ao infortúnio.
A Divina Comédia que Mussolini deu ade presente a Hitler quando desceu do trem na estação Ostiense de Roma não é a mesma Divina Comédia da qual Primo Levi tentava lembrar os versos em Auschwitz para sobreviver àquele inferno? Claro, é a mesma obra, mas diz coisas diferentes a cada um dos dois.
Qual é a verdadeira Divina Comédia? A última palavra não cabe tanto aos filólogos, mas a nós, aos seus leitores, à capacidade que temos de a traduzir na nossa vida cotidiana, de reter a sua mensagem mais radical - que vai muito além da época em que nasceu, que é um apelo para nos transformarmos, para nos tornarmos de vermes em “angélicas borboletas”, com a nossa natureza pecaminosa, é claro, mas capazes de perdão e mansidão.
Vou lhes contar um episódio que me aconteceu durante uma aula na prisão romana de Rebibbia. Acompanhando a aula tinha um detento que cumpria uma pena particularmente longa (trinta anos, efetivamente o máximo, excluindo a prisão perpétua), pelo crime de sequestro de criança. Era um pastor da Sardenha, que entrou na prisão analfabeto, mas depois formou-se na prisão e finalmente diplomou-se em Literatura Moderna.
Perguntei-lhe no que ele se sentia mudado desde que tinha entrado na prisão como analfabeto. Ele pensou um pouco e respondeu: “Estou mais inseguro do que naquela época”. Quando entrou estava mais “confiante”, portanto arrogante, brutal, refratário à escuta e ao diálogo... Resposta maravilhosamente socrática, que diz respeito à promessa de que falava no início. Uma promessa de liberdade e igualdade, à qual acrescentaria apenas: integrada pelo exercício contínuo da dúvida. Aquela promessa que Habermas, herdeiro da Escola de Frankfurt e, no entanto, não avesso ao Iluminismo como os outros frankfurtianos, mas paladino de uma razão humedecida pelo amor e pela piedade, convida-nos a reavivar, sob pena da extinção da própria Europa.
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A eterna promessa da Europa. Artigo de Filippo La Porta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU