Raposa Serra do Sol sob ataque: o agro se lança contra os Povos Indígenas. Artigo de Gabriel Vilardi

Assembleia do movimento indígena na Raposa Serra do Sol | Foto: CIR

06 Julho 2024

Esse ataque não foi dirigido apenas aos parentes de Roraima, mas a todos os Povos Indígenas do Brasil. E mais, todas as pessoas de boa vontade que acreditam nos Direitos Humanos e são contrárias ao autoritário coronelismo e a violência da capangagem não podem se calar em um silêncio cúmplice. Esse projeto de poder propagandeado pelos inimigos da Raposa Serra do Sol só pode nos levar a mais sangue indígena e dos defensores da terra, às cinzas da maior floresta tropical do mundo e à lama fétida do garimpo. O grito desesperado que ecoou do Sul, fruto do evento climático extremo, não foi suficiente para romper com esse modelo econômico caótico?

O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Eis o artigo.

Há séculos guerras e rebeliões vêm sendo travadas pela sobrevivência de povos e culturas indígenas em oposição ao impiedoso extermínio promovido pelos ambiciosos colonizadores. Ao contrário da propalada passividade, que é ensinada nas escolas e constitui o imaginário nacional, os povos dessas terras resistiram e lutaram. Uma luta que, infelizmente, parece muito longe de terminar. Depois de quatros anos sem nenhuma demarcação de terra indígena e ataques frontais aos seus direitos, apesar das grandes expectativas com o atual governo, as ameaças não cessaram. Talvez como nunca desde a redemocratização, os representantes do atraso no Congresso contra-atacam com uma fúria raivosa!

Na última terça-feira (2), a Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados, realizou um debate segundo requerimento do Deputado Evair Vieira de Melo (PP-ES), com o seguinte tema: "A reversão das regiões de Raposa Serra do Sol, na área que foi produtora de arroz em Roraima". Quinze anos após a decisão do Supremo Tribunal Federal que confirmou a homologação da terra indígena e determinou a desintrusão dos invasores, os inimigos dos Direitos Humanos voltaram a carga.

Se o movimento indígena há décadas vem se articulando com força e criatividade para fazer avançar suas justas demandas, os fazendeiros e empresários do agronegócio jamais deixaram de confabular para que suas perversas estratégias de morte prevaleçam sobre o direito de existir com dignidade das comunidades originárias. Como já dizia o icônico Relatório Figueiredo, apresentado no auge da ditadura civil-militar (1968), “parece inverossímil haver homens, ditos civilizados, que friamente passam a agir de modo tão bárbaro”[1].

A audiência na Câmara teria sido cômica com argumentos estapafúrdios e cheios de desinformação que beiram ao ridículo e ao absurdo. Isso se não fosse chocante que em pleno ano de 2024 parlamentares e a elite do agronegócio do estado destilassem seus preconceitos e seu desprezo com tamanha desfaçatez e naturalidade. O triste espetáculo não se deu a portas fechadas, mas foi transmitido para todo o país. O que se desenrolou no Congresso, mais do que um show de horrores, foi uma sucessão de falas mesquinhas e que só demonstraram a visão estereotipada que os donos do poder possuem dos Povos Indígenas.

O Deputado Nicoletti (União-RR) não teve o menor pudor de mostrar a quem serve, a elite agrária que veio para salvar a região:

“Vocês, representantes dos rizicultores, são grandes guerreiros porque tiveram que se reinventar. Estavam lá produzindo, desenvolvendo o nosso estado, onde estavam ajudando as comunidades indígenas. São três gerações que estavam ali e vem o governo federal atropelando com um decreto, de uma hora para outra, retira essas pessoas que estavam desenvolvendo o nosso estado. São os pioneiros. Graças a vocês que os indígenas tinham atendimento de saúde, escola, estradas. Uma aberração jurídica o que aconteceu”.

Além de um olhar falso sobre uma suposta benevolência dos pioneiros para com os povos originários, o parlamentar atacou Joenia Wapichana, a primeira mulher indígena a chegar ao Congresso. “Nós temos uma presidente da Funai que sempre foi financiada por ONGs, tanto é que foi eleita deputada federal”, vociferou o deputado. Fiel aos seus princípios e a sua trajetória de mais de 20 anos como advogada do movimento indígena, Joenia sempre despertou a ira daqueles que estavam acostumados a humilhar seus parentes, sem ter alguém que pudesse contrariá-los no Parlamento. Enquanto liderou a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas conseguiu barrar inúmeros retrocessos na legislatura passada.

Não satisfeito, Nicoletti chegou ao ponto de afirmar que é “uma falsa narrativa do governo Lula, dizer que os Yanomamis estão morrendo por desnutrição”! Mesmo com todas as denúncias das organizações indígenas e do Ministério Público Federal, com os dados alarmantes de mortes, contaminação ambiental e crimes praticados pelas facções, o parlamentar prefere adotar uma posição negacionista. Que não possui a mínima preocupação com a sobrevivência do Povo Yanomami, não é novidade alguma. Agora, distorcer a realidade nesse ponto é escandaloso.

Infelizmente, esse olhar viciado de parte do Poder Legislativo não está circunscrito aos representantes de Roraima. O Deputado Domingos Sávio (PL-MG) fez questão de opinar, dando vazão às suas certezas sem fundamento: “alguns querem tratá-los mantendo-os numa condição de absoluto alijamento do desenvolvimento tecnológico, do processo civilizatório”. Resta saber qual é o seu conhecimento sobre a cosmovisão dos descendentes de Makunaima, para desqualificar sua cultura e seu modo de vida. “Não faz sentido, com milhares e milhares de hectares de terra, não ter uma política que incentive a aplicação de tecnologia, a orientação, a educação”, arrematou triunfante no seu etnocentrismo superior. Quem disse que os povos originários não tem um acumulado conhecimento ancestral e que quer ser ensinado pelos fazendeiros?

Como não poderia deixar de ser, os senhores do capital foram convidados para desfiar sua velha e carcomida ladainha. Andressa Silva, diretora executiva da Associação Brasileira da Indústria do Arroz (ABIARROZ), vomitou seus indicadores econômicos para quase concluir que as demarcações de terras indígenas são um péssimo negócio. Em uma lógica neoliberal, a especialista não conseguiu ver além da ótica da financeirização:

“O efeito da demarcação da Raposa Serra do Sol foi a redução de 25 mil para 12 mil hectares de área plantada. (...) O efeito social e econômico foi a grande redução no número de empregos e na arrecadação de impostos. O estado de Roraima teria potencial para se tornar o terceiro maior produtor de arroz do país, caso houvesse a reversão da Raposa Serra do Sol”.

Mergulhada na perspectiva da monocultura das commodities, que tem como único objetivo o lucro a qualquer custo, a representante dos arrozeiros jamais poderia compreender o Bem Viver dos Povos Indígenas. Para ela e seus sócios, não faz sentido uma agricultura familiar e orgânica, sem o uso de agrotóxicos e de sementes transgênicas. Ela não deve imaginar que as comunidades indígenas são as maiores responsáveis pela preservação das sementes crioulas, contribuindo com a manutenção da diversidade genética de milhares de espécies. No mais, os roçados indígenas apostam na variedade, superando a empobrecedora unicultura.

A insaciedade dos fazendeiros tem levado a expansão da fronteira agrícola, principalmente com a soja, por meio da destruição do rico bioma endêmico do Lavrado. Nesse ano, a previsão é chegar a 200 mil hectares de lavouras de grãos. Todavia, as queimadas e a seca extrema são uma ameaça para a saúde pública de todos os habitantes do estado, além dos óbvios impactos na produtividade da safra. Essa sanha incontrolável dos “produtores de riqueza econômica” do estado pode ser fatal para um meio ambiente ecologicamente equilibrado, como garante o art. 225 da Constituição Federal, conforme o estudo abaixo:

“Segundo o governo do Estado, a previsão de safra das grandes culturas, como soja, milho e feijão, é de 180 mil hectares para 2023. Ao mesmo tempo, o rebanho bovino do estado passou de 840 mil cabeças de gado em 2018 para mais de 1.1 milhão em 2022. Roraima registrou 122 % de aumento na área média anual de floresta desmatada entre 2019 e 2021, em relação ao triênio anterior (2016-2018). Foi a maior taxa de crescimento do desmatamento entre os estados da Amazônia no período analisado”.[2]

Apesar de toda a destruição promovida pelo agronegócio, seus investidores não parecem contemplados. E após décadas de aguerridas lutas pela garantia de seus territórios ancestrais, em que muito sangue de lideranças indígenas foi derramado por não aceitarem renunciar a sua terra sagrada, os produtores rurais juntamente com a classe política arremetem contra os direitos conquistados.

Foram mais de 30 anos de batalha pela Terra Indígena Raposa Serra do Sol, uma área demarcada de forma contínua, diferente das etnorregiões Serra da Lua e Amajari, por exemplo. Essas duas últimas foram demarcadas em ilhas, em que as comunidades indígenas ficaram cercadas pelas fazendas. Nesse segundo processo foi desconsiderado as áreas de pesca, os rios e igarapés, as matas com plantas importantes para o seu modo de vida tradicional. E hoje, com o crescimento das comunidades o território ficou pequeno para garantir a subsistência desses povos. Por isso, Raposa Serra do Sol foi uma vitória emblemática do movimento indígena. Se no começo parecia um sonho impossível, em razão da violenta oposição dos latifundiários, sua firmeza e persistência fizeram com que a força do direito prevalecesse em detrimento do direito da força.

Luiz Albrecht, advogado da Associação dos Arrozeiros de Roraima (AARR), que representou tais interesses no STF em 2009 e perdeu, teve a petulância de alegar que “a ilegalidade e o descumprimento da lei residem num fato: a questão da tradicional posse indígena”. Querendo convencer que os povos originários não possuíam a posse daquela região, asseverou que “posse indígena não se cria, ela pode se extinguir pelo abandono, mas não se cria porque é originária”. Então o nobre causídico tem a ousadia de defender que aquelas terras não eram habitadas pelos Povos Indígenas desde tempos imemoriais, como atestaram os laudos antropológicos?

Esse mito de que havia um vazio demográfico na Amazônia foi usado como estratégia de exploração da região pela ditadura de 1964. Repetiram a exaustão que se tratava de uma imensidão verde e selvagem à espera de ser domesticada pelos bons e corajosos desbravadores, vindos do Sul do país. Acontece que o bioma sempre foi a casa de centenas de diferentes povos, que ali viveram por milênios, como comprovam os estudos arqueológicos.

Por trás do imbrecável avanço colonizador, como salvaguarda para legitimar os desmandos e as crueldades perpetradas, estava o Direito e sua racionalidade jurídica. No país dos bacharéis, o império da lei sempre esteve voltado para os proprietários de terra:

“As várias constituições brasileiras após a Independência do Brasil (1824) e as que se escreveram após a proclamação da república (1891, 1934, 1937, 1946) sempre trataram os indígenas como seres inferiores a serem tutelados, e considerados como indivíduos, não como povos. A violência não teve sossego na vida cotidiana das populações originárias, sendo responsável, em suas diversas formas, pela curva negativa de crescimento da população indígenas no Brasil durante quatro séculos. Mesmo após a proclamação da independência (1822) e a da república (1889), o extermínio físico e cultural dos indígenas do Brasil continuou. A situação de opressão e exploração prolongou-se pelo século XX e adentrou o século XXI”.[3]

Passaram-se os séculos e a elite rural continua se valendo de subterfúgios legais para justificar o injustificável, a invasão e o roubo das terras indígenas. E por tabela a escravização desses corpos rebeldes, forçando-os a entrarem nos sistemas mercantil e capitalista. Segundo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), existem mais de 850 territórios indígenas que ainda não foram reconhecidos pelo Estado. Comunidades inteiras a beira da estrada ou espremidas em pequenos pedaços de terra, relegando-os à miséria e à indigência. Separados de suas terras ancestrais esses povos perdem suas referências e fragilizam sua existência ao extremo.

Rodrigo de Oliveira Kaufmann, consultor jurídico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) considera que o seu setor é a-ideológico e quer ressuscitar uma incabível demanda por indenização pela terra nua, em processos já finalizados há anos como a TI Raposa Serra do Sol. Acontece que a Suprema Corte foi clara ao estabelecer no item VI do julgamento do marco temporal que “descabe indenização em casos já pacificados, decorrentes de terras indígenas já reconhecidas e declaradas em procedimento demarcatório, ressalvados os casos judicializados e em andamento”.

Se se for pensar no peso do segmento agropecuário na economia do país e o tamanho de sua entidade patronal, revela-se surreal uma posição dessa magnitude tão diretamente contrária aos direitos dos Povos Indígenas. É verdade que existe uma parte do agro que sempre foi fascista e racista, mas daí a associação de classe assumir uma postura desse nível demonstra a gravidade do problema. A manifestação de seu preposto não dá margens para a dúvida de que o agro não é tão pop assim:

“A CNA sempre foi muito combativa nas demarcações que ignoram o direito de propriedade dos produtos rurais e ignoram sua posição de legítimos adquirentes de imóveis rurais e apresentarem dimensões produtivas de suas terras. Mas, a Raposa Serra do Sol no seu âmbito concreto é um exemplo eloquente dos efeitos negativos quando a demarcação de terras indígenas é tomada no seu sentido ideológico. A demarcação da Raposa Serra do Sol ainda pode merecer debate, especialmente, no âmbito dos direitos indenizatórios dos produtores rurais, com base no tema 1031 aprovado pelo Supremo Tribunal Federal e com base no art. 9 da Lei 14.701/2023”.

A esdrúxula tese do marco temporal foi uma dessas maldosas instrumentalizações do sistema jurídico pra travar qualquer avanço da luta indígena. Nos últimos anos paralisou as novas demarcações de terra, colocando centenas de comunidades em perigo. Entre idas e vindas em um demorado processo, no ano passado, a Corte Constitucional resolveu cumprir a Constituição e derrubou essa imoralidade jurídica. Entretanto, a bancada ruralista não aceitou e aprovou o PL 490, que virou a Lei 14.701/23, transformando o que era um parecer administrativo em lei. Acontece que a legislação contraria norma constitucional e deve ser novamente expurgada pelo Supremo.

Para surpresa dos estudiosos do direito constitucional e do movimento indígena – ou não tão surpreendente assim para quem acompanha os bastidores do poder, o relator da nova ação, Ministro Gilmar Mendes, não suspendeu cautelarmente a lei que rasgava o entendimento da Corte, como era esperado. Afinal, a decisão do Congresso é uma evidente afronta mais do que à Corte à própria Carta Magna. Não! Passando por cima do entendimento do pleno, o decano convocou uma mesa de conciliação para o começo de agosto, reabrindo uma discussão estéril. Nesses meses em que um desfecho razoável se adia, os Povos Indígenas continuam privados dos seus territórios ancestrais.

Qual a intenção do eminente magistrado? Pretende Sua Excelência que a decisão de seus pares seja atenuada, tornando-se mais palatável para os latifundiários? Quanto mais terão que renunciar os povos originários depois de séculos de perseguições e genocídio? O enviado do Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) aponta o rumo que as hostes do agro devem seguir. Mais do que discutir a reversão da simbólica Raposa Serra do Sol, é preciso defender a todo custo a acintosa Lei 14.701/23 e impedir a demarcação das centenas de terras indígenas que nunca foram reconhecidas pelo Estado:

“Mas há um debate muito importante que é a defesa da constitucionalidade da Lei 14.701/2023. (...) O Congresso tem um papel de mediador entre a produção agrícola, a garantia da segurança jurídica e o direito de propriedade de um lado e o direito da tradicionalidade indígena e a proteção cultural das comunidades indígenas. O que o Ministro Gilmar Mendes chama de ‘consenso estabilizador’, foi aquilo que foi buscado durante os quase 20 anos de tramitação do PL 490. (...) A Lei 14.701/23 é um exercício exemplar de diálogo institucional que foi travado no interior do Congresso Nacional”.

Valendo-se da retórica, o advogado chega a dizer que a Lei 14.701/23 foi fruto de um consenso costurado em vinte anos de discussão. Consenso entre quem? Só se for entre a patota anti-indígena que se autodenominada Frente Parlamentar da Agropecuária. Com incrível habilidade, porque o agronegócio tem muito dinheiro e muito poder nos corredores palacianos de Brasília, o indicado pela CNA instiga o Congresso contra o Supremo Tribunal Federal. Em um raciocínio de chocar qualquer mínimo conhecedor da teoria da tripartição dos poderes, a fala do consultor jurídico parece flertar, inclusive, com a aposta por uma ruptura institucional. Sim, descumprir as decisões da Corte Suprema é atacar o Estado Democrático de Direito e enfraquecer a democracia! Talvez ainda haja tempo para a confederação se retratar e renegar o discurso golpista.

Para júbilo da direita radical, um ex-aliado dos governos populares se prestou a um desserviço para o país. Aldo Rebelo, ex-ministro e ex-presidente da Câmara dos Deputados, destilou toda a sorte de desvarios ensandecidos para deleite de seus antigos detratores. Foi incensado e louvado tal qual a nova referência do velho discurso de integração dos povos originários, no apodrecido e malfadado desenvolvimento nacional. Seu discurso poderia ter sido feito por qualquer um dos generais ditadores que governaram o país autoritariamente por longos 21 anos. A mesma percepção ultrapassada da doutrina da segurança nacional e da necessidade de levar o desenvolvimento econômico para a atrasada Amazônia. Uma cantinela que apesar de tão desgastada continua causando morte e destruição:

“Revisitar o debate sobre a Raposa Serra do Sol é revisitar um grande erro cometido em nosso país. Um erro contra o Brasil. (...) Eu fui no Surumu e vi a índia chorando, você estava lá Quartiero, pedindo para que os arrozeiros não fossem removidos, porque além de gerar uma atividade econômica na região, eles ainda distribuíam uma parte do excedente para as próprias populações indígenas, além de exportar. (...) Empreendedores que se deslocaram para, em um esforço grande, produzir numa região hostil, difícil, sem infraestrutura. Dói no coração o que foi feito. É preciso incorporar os indígenas no projeto de desenvolvimento do país e oferecer a eles uma condição de vida que essa política não oferece. Aqui não é uma questão ideológica, mas sim dos interesses do Brasil!”.

É aviltante constatar como permanece entranhado em parte da elite política nacional uma imagem tão arrogante como essa em relação aos povos originários. O que diriam as lideranças indígenas que lutaram por décadas pelo reconhecimento do território ao ouvir uma fala estapafúrdia como essa? Dificilmente o próprio Rebelo acredita no que afirmou. A árdua caminhada pela demarcação do território custou a vida de dezenas de indígenas, que tiveram suas roças queimadas, suas mulheres estupradas, seus filhos humilhados. E uma pessoa que não conhece uma vírgula dessa história de resistência vem trombetear uma magnificente caridade dos fazendeiros para com os povos da Raposa Serra do Sol? Perdeu a oportunidade de ficar calado e não passar vergonha.

O ex-ministro parece convicto da necessidade de defender os “interesses do Brasil”. E esses interesses são contrários aos dos Povos Indígenas, ministro? Ou esses povos sequer são considerados parte do Brasil? Brasileiros, pelo visto, são os colonizadores. Resta saber quais interesses são esses, afinal. É interesse nacional aumentar a fortuna de uma pequena elite em detrimento da exploração do povo empobrecido? É interesse do país destruir a Amazônia, saqueando-a e contaminando com o mercúrio do progresso? É interesse patriota exterminar existências alternativas e culturas milenares? Interesse para quem, cara pálida?

Mas, todas essas obscenas pregações não estariam completas se não tivessem ido buscar um dos maiores inimigos dos Povos Indígenas de Roraima, Paulo Cesar Quartiero. O ex-governador do estado e algoz dos habitantes da Raposa Serra do Sol possui um extenso histórico de disputas e acusações de agressão contra as comunidades indígenas. Em 2021, foi condenado pela Justiça Federal a pagar 200 mil reais por liderar um ataque que incendiou e trouxe terror para as comunidades indígenas da região. Recentemente, foi multado pelo Ibama em R$ 1 milhão por crimes ambientais em sua fazenda, no arquipélago do Marajó.

O político ainda é acusado do crime de tentativa de homicídio, no caso que ficou conhecido como “10 Irmãos” e aconteceu em 2008. Na época da retomada do território, um grupo de lideranças indígenas foi covarde e duramente atacado, com o uso de extrema violência. Foram usadas armas calibre 12 e 38, além de bombas caseiras, deixando muitos feridos. Passados mais de 16 anos do crime, o processo judicial tramita a passos lentos. Mesmo porque quem se importa com as vidas indígenas? Esse é só mais um da longa lista de crimes impunes cometidos contra as comunidades indígenas.

Ainda assim, o último a ser objeto da desintrusão da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, não se sentiu constrangido em atacar a maior organização indígena do país, o Conselho Indígena de Roraima (CIR). Desprezando a legitimidade da luta indígena, Quartiero partiu para o ataque daquela que foi e é a maior aliada da causa indígena no estado, a Diocese de Roraima.

A Igreja local fez uma opção pelos Povos Indígenas, assumindo o lado dos oprimidos nessa sofrida história de injustiça e abuso. Ao longo de décadas, seus missionários indigenistas colocaram-se ao lado das comunidades originárias e, juntamente com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), apoiaram o fortalecimento da autodeterminação e da luta pela terra. O preço pago foi o ódio e a reação da elite colona que abandonou as paróquias ricas de Boa Vista, promovendo inúmeros ataques aos bispos e religiosos que se comprometeram com a causa indígena.

Pelo visto, o transcurso dos anos não foi suficiente para curar o amargor de seus líderes, porque Quartiero voltou a esbravejar:

“A Raposa Serra do Sol pode ser um ícone para discutirmos o que queremos fazer com a Amazônia. (...) Nós estávamos transformando os índios em empresários eles estavam se incorporando ao agronegócio. As áreas dos índios sempre foram respeitadas. Tínhamos 40% dos índios do nosso lado, porque as demarcações eram um fracasso. O único que defendia as demarcações era o CIR, que era um braço da Prelazia de Roraima. As outras estavam conosco, porque queriam se incorporar ao progresso e evoluir. Se nós continuássemos com a nossa política, hoje nós veríamos índios ricos.

Em sua insana fantasia, Quartiero se descreve como uma espécie de patriarca benfeitor dos indígenas, um salvador de suas misérias. Como se os critérios capitalistas de um sistema que pôs o mundo à beira de um abismo pudessem rechaçar o modo de vida tradicional dos povos originários. Na realidade, até os presentes dias, mencionar o nome do latifundiário em meio às comunidades da Raposa Serra do Sol faz tremer de asco o menos politizado dos indígenas.

Nessa fabulação alucinada, o velho coronel nega a crise humanitária do Povo Yanomami, infligida pelo garimpo ilegal. Chega ao despautério de afirmar que os garimpeiros estão fazendo bem aos indígenas e permitindo a resolução de seus problemas. Como pode alguém negar as centenas de mortes de crianças desnutridas e vítimas do surto de malária levado pelo garimpo? Como é possível ignorar os abusos e a exploração sexual praticados contra adolescentes e mulheres Yanomami? E a degradação ambiental de milhares de hectares e dos rios contaminados por mercúrio? É por gente como essa que os Yanomamis continuam a morrer, cercados pelo garimpo ilegal:

“A maior riqueza de Roraima é o minério e no governo passado, os garimpeiros se associaram com os índios, os Yanomami. E os índios estavam conseguindo resolver seus problemas. Hoje ficam aí com essa pantomima alimentando Yanomami. Então, nós temos a obrigação de reverter isso [a demarcação]”.

A audiência na Câmara transcorreu em uma sucessão interminável de três longas horas, em que fizeram uso da palavra outros interessados em reverter a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e paralisar o reconhecimento de novos territórios, como determina o art. 231 da CF. Os parlamentares de Roraima se revezaram para falar contra os Povos Indígenas, entre eles Stélio Dener (Republicanos-RR) e Gabriel Mota (Republicanos-RR), segundados pelos fiéis bolsonaristas General Girão (PL-RN), Bia Kicis (PL-DF) e Silvia Waiãpi (PL-AP).

Como era de se esperar, nenhuma organização indígena foi ouvida. Nenhum parlamentar com um posicionamento diferente fez uso da palavra. E assim, a bolorenta ideologia colonial foi mais uma vez reafirmada, como sempre acontece nesses círculos onde dinheiro e poder andam juntos. Os Povos Indígenas foram chamados de atrasados, subdesenvolvidos, incivilizados que passam fome e precisam ser ensinados pela avançada sociedade latifundiária.

Esse ataque não foi dirigido apenas aos parentes de Roraima, mas a todos os Povos Indígenas do Brasil. E mais, todas as pessoas de boa vontade que acreditam nos Direitos Humanos e são contrárias ao autoritário coronelismo e a violência da capangagem não podem se calar em um silêncio cúmplice. Esse projeto de poder propagandeado pelos inimigos da Raposa Serra do Sol só pode nos levar a mais sangue indígena e dos defensores da terra, às cinzas da maior floresta tropical do mundo e à lama fétida do garimpo. O grito desesperado que ecoou do Sul, fruto do evento climático extremo, não foi suficiente para romper com esse modelo econômico caótico?

A declaração de guerra dos senhores do agro não foi feita apenas aos mais de 32 mil habitantes da Raposa Serra do Sol, nem somente aos cerca de 100 mil parentes da Terra da Makunaimî, mas a todos os 1,7 milhão de indígenas do país e todos aqueles e aquelas que não compactuam com a barbárie. Para além da impossibilidade jurídica de reverter a homologação do território indígena em tela, essa cruzada promovida pelos inimigos dos Povos Indígenas é perigosa, porque tem o potencial de aglutinar forças poderosas. Se cair a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cai o Brasil democrático e assume o Brasil dos barões da agromorte! Que ecoem os gritos das malocas!

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Notas

[1] SANTOS, Adriana Gomes e NETO, Antonio Fernandes. Genocídio indígena e perseguição à Igreja Católica em Roraima: a ação e a omissão do Estado brasileiro diante das graves violações aos direitos humanos. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2016, p. 183.

[2] Ludivine Eloy, Estevão B. Senra, Andréa Leme da Silva et Ciro Campos, « A aceleração recente da produção de soja na Amazônia: uma história do desmonte ambiental “em prática” no estado de Roraima », Nuevo Mundo Mundos Nuevos, 13 out. 2023. Acesso em: 05 juillet 2024. Disponível aqui.

[3] VIEZZER, Moema e GRONDIM, Marcelo. Abya Yala: genocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários das Américas. Rio de Janeiro: Bambual, 2021, p. 132.

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