05 Julho 2024
Enquanto ocorre a Eurocopa de 2024, com as Olimpíadas de Paris prestes a começar, propomos às nossas leitoras e aos nossos leitores uma reflexão sobre o esporte e seu valor e significado na vida cristã.
O texto é um trecho da Introdução do livro Breve teologia dello sport, de Lincoln Harvey, reverendo anglicano e professor de Teologia no St Mellitus College, em Londres.
Breve teologia dello sport de Lincoln Harvey
O artigo foi publicado em Teologi@Internet, 01-07-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eu adoro quando o Arsenal joga em casa. Sábado passado não foi exceção. Primeiro, eu me encontrei com meus amigos em um pub local. Discutimos sobre a escalação inicial do time, revisamos seus adversários e saudamos com confiança as tentadoras previsões de vitória. Depois, bem antes do horário previsto, como átomos agitados no vórtice de um ciclone, saímos do pub para nos juntar aos outros 60 mil torcedores que caminhavam rumo ao estádio.
No meio de um mar de bonés, cachecóis e camisetas com as mesmas cores dos jogadores, marchamos por um túnel ferroviário – enquanto toda a coluna repetia “Exército Vermelho, Exército Vermelho”, cadenciando e fazendo as palavras ecoarem – e passamos por vendedores de cartazes colecionáveis, de publicações para fãs e de todo tipo de mercadoria, antes de finalmente chegarmos ao gargalo, totalmente lotado: seguranças, funcionários, catracas lentas com um surdo ruído metálico.
E, depois, finalmente, lá dentro: o gramado reluzente e brilhante, o barulho titânico, os jogadores saindo dos vestiários, o volume que aumenta, o apito do árbitro, o pontapé inicial da partida. Futebol, eu te amo!
Para ser sincero, a partida não foi nada de especial. Uma resistência extenuante do time adversário tentou esmagar a nossa criatividade para proteger o empate sem gols, adotando uma tática sistemática de lentidão estéril do jogo, de faltas contínuas e de desperdício estratégico de um tempo precioso.
Mesmo assim, a partida liberou sua magia. O tempo e o espaço se transformaram em pura diversão, a intensidade da vida – comprimida de alguma forma naqueles 90 minutos – se desdobrou ao longo do campo esmeralda, enquanto eu me via suspenso em momentos de ansiedade e de tensão, a milhares de quilômetros das minhas preocupações, a milhares de quilômetros das minhas preocupações, a milhares de quilômetros das coisas que mais importam para mim: a imediaticidade do jogo de alguma forma me prendia e me absorvia com todas aquelas voltas e reviravoltas contínuas, com os movimentos rápidos e acelerados, e com os passes engenhosos e rápidos que unem e abrem o jogo, livres e não inteiramente calculados... Ah, o futebol: não há nada como o futebol!
O jogo terminou pouco depois, e eu fui transportado de volta em um vagão de metrô inacreditavelmente lotado, para o espaço comprimido da vida cotidiana. Mas, enquanto os 22 jogadores se trocavam nos vestiários, vestindo roupas de grife antes de entrarem em carros de luxo para se dirigirem até suas mansões magníficas, eu me perguntei o que eu havia testemunhado.
Nada havia sido produzido, nada havia sido colhido. O jogo simplesmente tinha começado e terminado: um evento fugaz que não deixava nenhuma marca no mundo em que vivíamos. Obviamente, graças à vitória, o Arsenal ficou três pontos acima na tabela. Mas esses três pontos – a serem celebrados, de todos os modos – não tinham nenhum valor real além do universo como um fim em si mesmo constituído pelo campeonato que disputávamos.
Eu também sabia que os jogadores tinham ficado mais ricos, enquanto os meus amigos e eu tínhamos ficado um pouco mais pobres, mas as finanças distorcidas do jogo profissional não são o propósito do jogo em si mesmo: o dinheiro é secundário, no máximo um fator auxiliar.
E foi assim que, amontoado naquele vagão, uma onda de niilismo me invadiu: as partidas não têm sentido, não levam a nada, não têm nenhum propósito. No entanto, por alguma estranha razão, essa consciência não me perturbava. Pelo contrário, fazia eu me sentir ainda melhor. […]
O futebol é o esporte mais popular do mundo, como fica claro a cada quatro anos quando ocorre a Copa do Mundo FIFA. Mais de 200 países competem por uma vaga nesse torneio, que dura um mês e culmina na final, na qual duas seleções disputam o célebre troféu de ouro.
Esse jogo em particular é transmitido ao vivo em mais de 200 países, com mais de um bilhão de pessoas assistindo pela televisão. Estima-se que mais de 90% dos lares com um televisor sintonizam essa final. Isso mostra que a popularidade do futebol é global. Mas o que torna esse jogo em particular tão popular?
Quando refletimos sobre isso, a resposta não é óbvia. Despojada do hype publicitário, dos investimentos e da superexcitação emocional que a envolve – reduzida às suas partes essenciais, por assim dizer – a final da Copa do Mundo envolve pouco mais de 22 homens, em concerto com alguns e em competição com outros, tentando fazer avançar um objeto esférico de cores brilhantes (historicamente, tratava-se nada mais do que uma bexiga de porco) ao longo de um gramado muito bem cuidado, empurrando-o para além de uma fina faixa branca marcada no chão entre dois postes verticais, fechados na extremidade superior por uma barra, nos quais se pendura uma rede. Isso é tudo. Nada mais do que isso.
Então, por que um bilhão de pessoas deveriam se sintonizar nessa manifestação esportiva? E não é só o futebol. Poderíamos falar facilmente também sobre muitos outros esportes. […]
Mas a pergunta permanece: por que as pessoas amam o esporte?
Assim como a agricultura, a construção civil e a saúde estão ligadas à sobrevivência, será que o esporte também não está? A bravura física, por exemplo, poderia estar ligada à nossa preparação para a batalha, significando – como George Orwell disse uma vez – que o esporte moderno é simplesmente uma “guerra sem fuzis”, algo que satisfaz a violência reprimida que ainda está latente em todos nós.
Ou poderíamos ver as coisas de outra forma, percebendo que o esporte é um resíduo fóssil de algum antigo ritual em que os nossos antepassados faziam pedidos aos deuses, implorando suas bênçãos ao longo da existência a fim de poderem sobreviver em meio a ameaças e medos. -Parafraseando Orwell em outro contexto, talvez o esporte seja simplesmente uma “religião sem sacrifícios”.
Mas unir os pontos do desenho oculto de qualquer uma dessas maneiras seria um erro. Por mais próximas que ambas as respostas – a guerra e a religião – estejam de estarem certas, elas também estão extremamente erradas. De fato, elas apontam o dedo para o objeto certo, mas da maneira errada.
O esporte tem tudo a ver com a nossa identidade mais profunda, mas é uma identidade muito mais fundamental do que o corrompido desejo de sobrevivência, quer mediante a batalha violenta, quer mediante a negociação religiosa.
O esporte tem a ver com a nossa natureza autêntica, tem a ver com o que realmente somos: é uma questão ligada ao nosso ser criaturas.
Trata-se, portanto, de compreender o nosso amor pelo esporte por meio de um exame da nossa identidade mais fundamental como criaturas, como seres criados. O exame que ofereceremos aqui – como qualquer explicação – exigirá que olhemos para o esporte a partir de um ângulo particular. Isso não quer dizer que se trata de argumentações escritas do ponto de vista de um torcedor do Arsenal, embora isso seja verdade.
No mínimo, é reconhecer que o livro foi escrito pela perspectiva de um cristão.
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Teologia do esporte. Artigo de Lincoln Harvey - Instituto Humanitas Unisinos - IHU